segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Sonho nº 14 - Errante



Meus passos arrítmicos contrastavam com o movimento da avenida, dos carros e pessoas que iam e vinham. Talvez eu pudesse dizê-los destemidos, percorrendo o caminho cinzento, atravessando paralelamente um por um dos prédios amarelos desbotados e grafitados que erguiam-se, buscando o céu. Os edifícios e toda a publicidade escondiam as árvores sobreviventes, que por trás das construções, ultrapassavam-nas, e mesmo sem a esperança - que deveria verdejar através delas -, continuavam se impondo sob o gris celeste. Meus ouvidos, embora atingidos pelos sons do trânsito e pela voz dos vendedores insistentes nas beiras da calçada, eram oprimidos pelo turbilhão de pensamentos e vozes na minha cabeça. Guiando-me. Dizendo-me o que fazer. Não havia nenhuma parte em mim para negá-las.
Buscava com afinco alguma forma de fazê-lo, mas não havia caminho, nem instrumento, nem meio viável ou sequer possível. Eu buscava. Com anseio. Mas não me era permitido realizar.
Quando então olhei para o movimento da calçada oposta, além dos carros apressados. Uma pessoa estava parada, dentre as muitas que seguiam roboticamente suas próprias rotinas, voltada à direção contrária da qual eu estava caminhando. Uma faca estava em sua mão direita. A pessoa ergueu então a faca e envolveu-a também com a mão esquerda. Segurando firme, apertando forte o cabo, investiu contra o próprio peito de forma brutal, caindo de joelhos. Seu corpo despencou ao chão logo em seguida.
O turbilhão ensurdecia-me. Cegava-me. Porque não conseguia ao menos olhar para o rosto da pessoa. Porque não era capaz de definir o que estava sentindo ou de ouvir qualquer que fosse a consciência como ponto de auxílio. Porque aquela era minha única oportunidade e impulso de fazê-lo.
Porque aquela pessoa fez. Ela agiu, e foi como se me dissesse: "Faça também".
Eu apenas voltei alguns passos e corri pela faixa de pedestres, atravessando a avenida até onde estava o corpo. Eu retirei a faca encravada, seu cabo negro, sua lâmina brilhante e prateada. O único instrumento.
Segurando-na, atravessei de volta, para o lado da calçada em que eu estava originalmente. Olhei para a faca, segurei com as duas mãos. O único meio possível.
A respiração irregular. A sensação sobrepujante. O coração batendo. Batendo. Batendo.
Tentei empunhar a faca contra meu peito. Puxei, enfrentando a resistência firme da matéria do meu corpo. A ponta da faca feriu pouco mais que superficialmente, mas não atravessou a proteção da caixa torácica, fazendo um som áspero. A dor extrema, pungente. Forçar o instrumento iria trincar uma costela. Meu cérebro não me permitia forçar mais. Não conseguia.
Ainda segurando firme, direcionei um pouco mais para baixo, apontando então para o abdome, em direção ao diafragma.
Minhas mãos trêmulas puxaram com força.
A lâmina desceu, inclinada, enfrentando baixa resistência, deslizando através dos tecidos moles. Senti romper o estômago primeiro. Alguns outros órgãos adjacentes foram feridos também.
A sensação.
Sobrepujante.
Retirei a faca e a deixei cair no chão. Sangue refluxado subiu até minha boca. Coloquei a mão direita sobre o ferimento, apertando, enquanto o sangue fluia e manchava minha roupa. Era possível aguentar a dor. Era intensa, intensa demais, porém suportável.
Ferida, continuei. Em meio às pessoas alheias ao acontecimento, curvada, segurando o ferimento, me arrastava para continuar caminhando. Caminhando até que a vida finalmente esvaisse por completo. Apreciando a morte lenta.
As forças oscilavam. Fui ao chão duas ou três vezes durante o caminho, sempre levantando novamente e continuando. As pernas falhavam. Mas eu me arrastava. Esgueirava-me às paredes e superfícies.
As mãos tremiam, a testa suava, a respiração era expulsa dos pulmões, cambaleando e sem equilíbrio todas as vezes que tentava entrar ou sair.
Muitas pessoas das quais eu conhecia passaram por mim. Se reuniram, conversaram, riram, voltaram, dormiram, acordaram, se reuniram de novo, em ciclos. Muitos ciclos. Muitos sorrisos despretensiosos e inocentes. Engrenagens. Eles não viam. Não eram capazes de ver.
Círculos retorcidos feitos de chuva e calor e sangue e terra e sono.
A vida seguia. Eu quase me esquecia.
Mas eu sempre retirava a mão da barriga para olhar. Para me lembrar que era real. O sangue seco grudado na palma, e mais sangue fluindo, persistindo, constante.
A vida acabando mas nunca chegando ao fim.
A dor, a sensação, o instrumento, o meio. Sobrepujando.
Mas nunca chegando ao fim.