quinta-feira, 2 de abril de 2020

Terras Brancas (parte 9)



Acordei com um sopro quente levantando as folhas. Sobre mim, o céu estava claro. Laranja e amarelo. Eu levantei-me devagar, ainda receosa sobre as raízes.
Quando apoiei os pés no chão, pode sentir que não doíam mais, e estavam tão livres quanto as folhas secas que o vento levava. Eu soltei um suspiro aliviado.
Em minha frente, agora com o ambiente iluminado, eu podia ver o final do bosque. Algumas últimas árvores altas antecediam um declive de grama. Eu me enchi de empolgação e corri até ele, atravessando os troncos derradeiros.
No topo do declive, toda uma extensão de ipês amarelos invadiam meus olhos. Eles estavam esperando por mim lá embaixo. Eu não pude resistir a correr contra o vento na descida verde e mergulhar naqueles tons de amarelo vivo dançantes. Rodeei-me deles em poucos segundos, tocando com as mãos as sensações de alegria, conforto e, consequentemente, um medo iminente de que tudo sumisse.
Mas eles estavam ali, tingindo energeticamente tudo ao meu redor. Não tinha motivos para temer, eles estavam ali.
Havia, em meio àquelas árvores, uma sensação intensa de reencontro. Entusiasmada por essa sensação eufórica, despontei a dançar ao redor delas. Toquei em cada variação do amarelo, em cada casca de madeira. Pulando e pulando, adentrando o quando pudesse.
A floresta de ipês abraçava-me.
Sem mensurar tempo, eu encostei em cada elemento arbóreo que se colocava diante de mim. Poderia jurar que reconhecia um elemento diferente em cada tato.
Rindo e rindo, eu sentei-me sob um deles. Senti seus pés. Seu braços sobre mim.
Eu recostei a cabeça em seu tronco. E ri.

~

Pairava uma estranha atmosfera sobre cada elemento daquele recinto, sobre cada amontoado de pessoas mais íntimas, salpicadas pelos cantos, e cada pessoa dentro desses amontoados, falando baixinho entre si, como se o volume dos diálogos pudessem acordar os mortos ali próximos. Cada planta alimentando-se da luz branda do sol por trás dos vidros das janelas, cada botão no estofado das poltronas e cada centímetro do chão frio de mármore pareciam encobertos por um tecido lúgubre. Ainda era manhã, perto do horário do almoço, e o enterro só aconteceria no fim da tarde. Até lá, eu haveria de receber todos os abraços carregados e pesados.
Avistei Ana entrando pela porta de vidro. Os cabelos negros e lisos até um pouco abaixo do queixo balançava enquanto ela andava sob as roupas do uniforme. Eu dera a notícia à ela bem cedo naquela manhã. Os olhos dela ligaram-se imediatamente a mim e ela pareceu ser puxada por uma corda até a poltrona onde eu estava.
-Dia - sentou-se do meu lado - Eu consegui sair mais cedo pro almoço pra dar um pulinho aqui. Como você está?
-A princípio, estou aliviada por não estar recebendo outro abraço.
Ela expeliu o ar, fazendo-se perceber que ela segurou a expressão espontânea por medo de que rir fosse um desrespeito.
-Sabe, - eu olhei para minhas mãos - Você foi a primeira pessoa a perguntar verdadeiramente sobre o que estou sentindo. Todas essas pessoas que estão aqui não estão interessadas nisso. Elas se preocupam em cumprir todas as formalidades das condolências para manter a imagem preocupada. Mas elas não se importam, nunca se importaram.
Um silêncio respeitoso se seguiu.
-Você pode me dizer o que aconteceu com a sua mãe?
-Bom - eu suspirei - ela sofria de pressão alta e de estresse crônico. O médico disse a ela que o problema dela era decorrente do estresse. Ela tinha sintomas de transtorno pós-traumático. O ideal seria um tratamento decente e um psiquiatra, mas meu pai não permitia que ela fizesse qualquer tipo de terapia.
Algumas pessoas saíram da salinha onde estava o caixão e foram em direção ao meu pai, que estava de pé em um canto. Faziam gestos perto dele, colocavam a mão sobre seu ombro, demonstrando expressar seus sentimentos para o sofrimento dele.
-Ela começou a passar mal na sexta, mas não quis dar trabalho pra ele. Demorou até que ele a levasse para o hospital. Do Mirante, depois que vocês me deixaram na estação, eu já fui direto pra lá. Disseram que ela teve um AVC seguido de parada cardiorrespiratória. Ela ficou pouquíssimo tempo em coma antes de falecer. Não houve tempo nem pra entender muito bem o que tinha acontecido.
Ana não dizia nada. Ela sabia bem como ouvir.
-Ele matou ela, Ana. Eu sei disso, você sabe disso, todo mundo aqui no fundo sabe disso. Mas eles utilizam toda a energia necessária pra ignorar esse fato e a violência que ela sofria. Ninguém quer se sentir culpado por não ter metido a colher.
Eu olhei de novo para ele, parado perto das plantas. No final de tudo, ele acabara como uma vítima do destino. Simplesmente um viúvo.
-Dia, se você precisar de alguma coisa, você pode me procurar. O que eu puder fazer você sabe que eu farei.
-Obrigada. - eu sorri.
Ela sabia que agora eu estava inserida nas portas de um inferno premeditado.
-Você perguntou como eu estou. - meus dedos procuravam alguma maneira de interagir entre si - Eu não sei dizer como eu estou. Às vezes parece raiva, às vezes parece medo, às vezes parece tudo junto e outras não parece nada. Eu não sei como me sinto em relação à morte dela. Sinto que não consigo perdoá-la. Não consigo perdoar ninguém. Não estou sofrendo como se tivesse perdido alguém cuja importância fosse recíproca. Ela não se importava comigo, Ana. Não se importava com ela mesma, só se importava com ele. Então, eu também deixei de me importar. Eu já a havia perdido há muito tempo.
Algumas pessoas começaram a sair, provavelmente para procurar algum lugar para almoçar.
-Vai lá Ana, você ainda precisa almoçar pra voltar pro trabalho. Obrigada por ter se preocupado em vir, eu estou bem.
-Tudo bem - ela se levantou, sem fazer objeções. Devia estar atrasada, mas do jeito que era, não falaria nada antes que eu dissesse. - Não se esqueça, qualquer coisa, pode me ligar. - ela olhou em direção ao meu pai, e em seguida para mim. - Ok?
-Ok.
Ana deu um último sorriso antes de se virar e andar de forma musical até a porta.
Após a sua saída, ainda permaneci alguns minutos sentada. O ambiente se esvaziava aos poucos, dando espaço aos ecos soturnos estranhos que pareciam colidir em uma camada que me revestia por dentro. Poucas pessoas ainda faziam com que meu pai e eu não fossem as únicas almas ali. Remexi desconfortavelmente na poltrona. Era impossível ignorar sua opressão sobre meus sentidos. Sem conseguir aguentar mais muito tempo, levantei e saí.
Desci os degraus de mármore além da porta de vidro, em seguida virando à esquerda para ter acesso ao portão de ferro, que permanecia aberto. Passei por ele, avistando os jazigos de pedra sob os ipês amarelos. Respirei fundo o ar ensolarado. Caminhando calmamente nos caminhos de paralelepípedos, pisando nas flores amarelinhas caídas, deixei minha mente se encher.
Por que ela não foi embora comigo quando disse que iria? Por que ela se importava mais com ele do que comigo? Por que ela se permitiu e me permitiu viver um inferno?
A camada que me revestia não deixava qualquer coisa entrar ou sair. Eu não podia me livrar ou entender os sentimentos que se agitavam e logo se amorteciam.
Ela disse que íamos embora quando eu tinha doze. Ela morreu na mesma casa enquanto eu tinha dezenove.
Eu nunca a perdoaria.
Sentei sob um dos ipês e tirei um papel e um lápis do bolso. Passei o resto da tarde traçando flores mortas. Apenas o sol laranja começando a se deitar conseguiu trazer-me novamente para o presente, e o meu coração gelou.
Eu não voltaria para aquela casa com ele. Eu preferia a morte.
Levantei-me depressa e voltei o papel e o lápis para o bolso. Logo seria realizado o enterro, o que certamente eu não fazia questão de presenciar. Saí do local sem me importar se me veriam ou não.
Em metade de uma hora, depois de pegar um metrô, eu estava em casa. Subi correndo as escadas, como se a polícia estivesse em meu encalço. Em uma mochila, coloquei algumas mudas de roupa, meus lápis, pincéis e tintas que eu ainda tinha, mais papel e, por último, o cisne de cristal da mesinha ao lado da cama. Deixei todo o resto dispensável lá. Passando pela sala, abri a adega e peguei de lá uma garrafa de whisky doze anos que o filho da puta guardava sabe se lá com que milagre - álcool nenhum se sustentava por muito tempo ali. Com a mesma velocidade que entrei, vesti um casaco e saí daquela casa pela última vez.
Em menos de um par de horas desde que eu saíra do cemitério, eu já me encontrava sentada no meio fio de uma rua qualquer, iluminada pelo amarelo alaranjado das luzes dos postes que era disputada pelos insetos voadores noturnos. A mochila permanecia nas costas. Pouco me importava o que acontecesse ou para onde eu poderia ir. Era certo que não haveria para onde voltar. Talvez eu ligasse para Ana mais tarde. Por ora, sem entender com exatidão o motivo, longe de tudo e de todos, eu deixava os soluços e as lágrimas emergirem, enquanto eles tivessem força para atravessar a camada.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Terras Brancas (parte 8)



Com mais calma, espalhei as folhas secas e esfreguei a sola dos pés na terra sob elas.
Todo o rebuliço das raízes estremecia em mim. Eu sabia que tinha que deixá-las para poder andar. Eu tinha de arrancá-las dos meus tendões.
Puxei o calcanhar para frente e para cima. Uma dor profunda e elástica intensificava conforme eu movimentava. Meus nervos aparentavam estar sendo puxados pra fora. Era impossível continuar, suportar a dor. Cedi, e meu pé retornou ao chão com força elástica. A pressão causou um choque em meus nervos e um consequente estado de dormência. Eu respirava tremulamente, tentando engolir a agonia seca.
Na calmaria roxa do bosque, uma luminosidade sutil começou a despontar ao longe, além das árvores. Vinda do além do horizonte escuro, trazia um vento quente diurno. Muito, muito sutil. Quase imperceptível.
Era o amanhecer?
Não tinha como ter certeza. Parecia apenas uma extensão da madrugada. Era apenas a minha vontade de ver a luz do dia, projetada na realidade. Indução de pensamento.
Contudo, eu precisava. Precisava que fosse. Mesmo que eu não conseguisse distinguir se a luz estava realmente crescendo, ou se meus olhos me iludiam.
Eu tinha a necessidade instintiva e impulsiva de correr em direção ao possível amanhecer. Eu o queria, como se o precisasse para viver.
Juntei tudo o que havia dentro de mim para puxar os tendões. Toda a coragem e força visceral. A dor de puxar mil elásticos rígidos fez irromper um grunhido incontrolável em minha garganta. Impulsionada pela luz opaca, puxei com força. Um seguido do outro, vários ligamentos arrebentados causavam um pequeno impacto. Barulho áspero de matéria orgânica rompendo. O último rompimento fez meu pé vir para frente de súbito devido à força empregada. O choque subia até atrás dos joelhos, pela panturrilha.
Aproveitando-me do estresse da dor e da adrenalina, puxei com ainda mais força o outro calcanhar. Gritando madrugada adentro, rompi todos de uma vez, desequilibrando para frente e caindo sobre as folhas.
Eu estava livre.
Meus olhos captaram o laranja e o rosa invadindo o roxo, atrás das árvores agitadas, antes de cair em um torpor escuro.

~

A tela em branco esperava pacientemente o carinho das cerdas molhadas do pincel. Os caminhos sinuosos coloridos que davam-na sentido de existência. A mão que segurava o instrumento, por sua vez, ainda doía, devido ao movimento da articulação que esticava a pele e forçava os cortes ainda não cicatrizados completamente. Era a primeira vez em muito tempo que eu tentava fazer algo fluir através delas. Entretanto, mesmo há minutos diante da superfície branca, nenhuma cor ousava pousar em minha mente.
Léo então entrou pela porta da sala. Irredutível, andava com a solidez de uma estátua de gesso. Há quatro dias não olhava para mim. Eu o ouvia chegar no meio da madrugada a cada última noite, fazendo ruídos na cozinha, com a mente flutuando em algum outro lugar, estimulada por seu cérebro sob efeito de qualquer coisa que o tornasse entorpecido, pegasse-o com mãos gigantes e macias e o sustentasse longe da sobriedade. Deitava pela sala mesmo, com a roupa ébria que trazia da rua. Era sua própria anestesia, seu jeito de atingir o mesmo objetivo que o meu, por meios diferentes e mais ortodoxos.
Léo trazia na mão a guitarra, que há tempos também não tocava, senão por ocasiões necessárias à nossa renda, sem criação. Em três anos, eu nunca tinha visto isso acontecer.
Tentei não deixar que minha consciência colocasse a frente qualquer elemento que fortalecesse ainda mais o bloqueio. Sentada, de costas para ele, fechei os olhos. Eu queria ver qualquer cor, qualquer uma, que não fosse o negro inquebrável do meu interior.
Subitamente, o som arrastado de uma das cordas medianas atingiu meus ouvidos, e ao mesmo tempo, uma névoa roxa pulsou dentro das minhas pálpebras. Logo em seguida, uma sequência lenta de notas escuras, tocadas com sentimento latente. Tons profundos de púrpura. Abri os olhos, e mergulhei as cerdas na tinta roxa. Com lentidão, tracei linhas tímidas no apático branco.
Ele tocava com a intensidade pungente do sofrer e do amar. Ele enfim estava criando algo. E era lindo.
Eu segui traçando, misturando, colorindo todo o espaço. Azul marinho, fúcsia e um pouco de cinza escuro.
Ele dedilhava destemidamente um caminho tortuoso, como se estivesse tentando atravessar um mar tempestuoso e profundo. Como se a noite fosse infindável. A melodia subia e descia como um pedaço de madeira à deriva. Estava tentando não se afogar nas próprias ondas, em si mesmo.
Eu o sentia.
As notas, lenta e suavemente, deslizaram para um final calmo. A calmaria de um amanhecer róseo. No horizonte mareado, com suavidade esfumacei o fim da madrugada com tons claros, apenas o suficiente para que se houvesse dúvidas se o amanhecer realmente viria.
Alguns segundos longos após o final do soar da última nota, dentro de um silêncio massivo, senti-o se aproximar. Léo se ajoelhou devagar do meu lado esquerdo, pegou minha mão borrada de tinta com o cuidado que se toca em algo rachado, levou à boca e beijou os cortes. Imediatamente, as lágrimas saíram dos meus olhos, transbordando o mar que ele havia acabado de transformar em música. Ele puxou minha outra mão e beijou também as linhas avermelhadas dela. Beijou os pulsos. Só então levantou os olhos de lua nova até os meus.
-Eu senti tanta falta dos seus olhos... - não pude evitar dizer em meio às lágrimas.
Ele me abraçou, aninhando o rosto em meu peito. Eu envolvi sua cabeça com meus braços. Meu coração não sabia mais como se mover. Senti as lágrimas dele molhando minha blusa e os soluços tremendo seu corpo.
-Me perdoa... - foi só o que ele conseguiu murmurar.
Deixamos por longos minutos que o mar nos balançasse e nos inundasse. A noite avançava lá fora. O silêncio confortavelmente nos abraçava, permitindo vir as ondas fortes. Por um momento eu queria não ter pegado a lâmina. Queria não ter causado isso a ele. Mas não consegui. Eu precisava. Precisava sair daquele limbo de torpor, que só cedia para dar lugar àquela tristeza profunda. Precisava da minha anestesia. 
-Se você tivesse feito, se tivesse realmente feito, eu não sei se conseguiria... - ele pausou para dar espaço a mais lágrimas - Se um dia você fizer, Dia, eu não sei se posso lidar.
-Eu sei.
-Me perdoa.
-Não tem o que ser perdoado - eu o abracei mais forte.
Eu conhecia cada parte - algumas não reveladas - do seu interior. A sua intensidade, a sua sensibilidade, mas o seu orgulho também. Ele abaixou as águas para se permitir ceder, dessa vez. Entretanto, eu sabia o quão marmóreas poderiam ser as suas decisões. Ele conhecia os problemas nos quais eu estava imersa, porém eu também conhecia os dele. Haviam coisas que eu tinha em mente que não poderiam ser perdoadas. Nunca.
Depois que as lágrimas cessaram, ele olhou com atenção o quadro. Não estava terminado, eu ainda traçaria alguns delineados, mas continha todos os sentimentos em forma de cores. A ideia do mar noturno agitado e do céu roxo sobre ele, um provável amanhecer púrpura, as nuvens escuras. Elementos não claros e nítidos, mas instintivos.
-Talvez eu coloque um piano, uma progressão de acordes diminutos ou menores pra contextualizar a melodia. No final posso fazer um contraponto com o piano arpejando em maior.
-Isso quer dizer que há um amanhecer afinal?
Léo olhou para mim novamente.
-Eu amo você. Amo como nunca amei e como nunca poderei amar ninguém.
Relaxei todo o meu corpo. Ele me perdoara. Respirei o ar que faltava.
-Noturno. - ele ponderou - É assim que vou chamá-la.
-Diz muito sobre você.
Eu aproveitei a proximidade para beijar sua testa.
-Eu também amo você, com tudo o que tenho.
Léo abriu espaço para um sorriso. Ele levantou-se, suspirando, na mesma delicadeza com a qual ajoelhou-se, e caminhou até a janela fechada da sala, arrastando a mão sobre o maço de cigarros e o isqueiro sobre a mesinha enquanto passava. Abriu as cortinas e escancarou a janela, dando passagem para que a noite urbana adentrasse o recinto e soprasse o ar movimentado em meio ao apartamento estagnado. Acendeu um cigarro, e mergulhou o olhar no longínquo.
Eu levantei-me e juntei-me ao seu lado na janela, estendendo a mão para que ele me desse um cigarro. Ele sorriu ao virar-se para mim, nos olhos havia o brilho das lembranças.
Permanecemos ali, desfrutando a presença um do outro, soprando fumaça para o céu noturno estrelado. Dividindo calor, fitávamos a mesma extensão celeste escura, cuja imensidão, por mais que tentasse, não era capaz de equiparar em número e tamanho as sensações que entrelaçavam-se entre nós.