segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Prosa da dor.


Acordar. Sobreviver. Voltar a dormir. Acordar. Sobreviver. Voltar a dormir.
A rotina mata-me aos poucos. Está doendo. Está sangrando.
A cada minuto dói mais.
A cada minuto, a poça aumenta.
Cada minuto parece toda uma vida.
Tique-taque, tique-taque.
A hora não passa.
Estou presa nos ponteiros.
Estou cega.
Estou surda.
Estou muda.
Estou morta.

sábado, 29 de agosto de 2015

Sonho n° 4 - Da ponte e do choque



Diante de mim, havia um breve precipício, que abrigava um lago cinzento e opaco, um píer de madeira e uma ponte feita de duas cobras gigantes entrelaçadas que ligava uma ponta do precipício à outra.
- Cuidado pra você não cair no lago. - Gustavo me disse - Os peixes de lá não são uma coisa bonita de se ver.
Minha mente prestou atenção no que ele disse, mas meu corpo pareceu não se importar.
Num impulso precipitado, tentei atravessar as cobras correndo, mas elas se mexeram e eu não soube ter equilíbrio sobre suas escamas escorregadias. Depois do segundo passo, eu cai desastrosamente no lago turvo. Tentei saltar rapidamente até a beira para que os peixes não me pegassem, mas sem sucesso.
No mesmo momento em que cai na água, já pude sentir centenas de peixes, que se assemelhavam a enguias, deslizando entre um e outro e ao mesmo tempo em minha pele também. Eu podia dizer que havia mais peixes que água naquele lago. Eles me proporcionavam uma sensação horrivel quando encostavam em mim, era como um choque. Meu corpo inteiro estremecia por dentro, como se meus órgãos estivessem vibrando e minha pele estivesse adormecendo. A cada toque horripilante que os peixes me davam, eles iam me jogando em direção à beira, como se eu me estivesse sendo arremessada como uma bola de basquete.
Eu finalmente fui jogada para fora do lago, no chão de pedregulhos e areia que antecedia a água, e por um tempo não fui capaz de me mexer. Meu corpo continuava tremendo por dentro, e eu parecia estar tendo uma leve convulsão. Meus músculos perderam toda a força.
Gustavo desceu para me ajudar. Quando ele me pegou pelo braço, eu já consegui me recompor. Ambos subimos novamente para o começo da ponte. Eu tentaria de novo, com mais cuidado. Afinal, precisava chegar do outro lado de qualquer jeito.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Cartas à Severina IV


Querida Severina,
Tenho mandado-lhe cartas a miúdo, não se incomode. Não sei porque insiste em bater na porta, se sabes que ela não se abrirá.
Não, Severina, não tente passar pela fechadura. Tu não passarás.
Pare, pare de bater incessantemente! Deixe-me. Não há lugar para você.
Tome, dou-te um lençol rasgado. Fique como lembrança porque não voltarás nunca mais. Não sou albergue.
Passar bem.
Tua velha amiga

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Angelus (parte 8)



Fui tocada pelo sopro matinal. Lentamente acordei, lembrando-me do que havia acontecido no dia anterior. A tristeza pesou meu coração novamente.
Olhei para o lado, e percebi que Guilherme não estava mais ali. Uma lembrança vaga o mostrou beijando minha testa enquanto eu dormia, e dizendo que iria até minha casa e voltaria em breve.
Eu me levantei da cama e abri as cortinas da janela. A luz do sol me banhou com suavidade, enquanto eu tentava novamente procurar a energia em mim. Eu havia percebido então que eu não poderia usá-la enquanto não tivesse domínio sobre mim mesma.
Voltei para a cama, dessa vez sentando com as pernas cruzadas. Eu já havia feito isso antes, há muito tempo atrás. Em meu mesmo instinto primitivo que fazia-me saber o que fazer com a luz, eu sabia que isso me ajudaria. Deixei que meus olhos pesassem e se fechassem, de pouco em pouco, fui deixando meus membros, esquecendo meu corpo físico, mergulhando na escuridão da minha consciência evidenciada através da minha mente vazia. Concentrada no ritmo da minha respiração e do meu coração, eu sentia apenas a fonte de energia emanando luz entre os dois pólos emocionais do peito e do umbigo, além da consciência completamente revelada. Era bem diferente da última vez que havia meditado. Eu não lembrava-me de ter conseguido ir tão fundo.
Eu deixei tudo fluir naturalmente, deixei que tudo se movimentasse sem nenhum tipo de trava ou impedimento. A luz brilhou e começou a caminhar por todo o meu eu, até encontrar a tristeza e o pesar. Ela os encobriu, levando um certo tempo até desmanchá-los por completo.
Lentamente, fui voltando a inundar meu recipiente. Senti meus músculos, minha pele. Pensamentos voltaram a habitar a mente. Por fim, abri os olhos.
No mesmo momento, movimentei minhas mãos, fiz a energia percorrer até elas, dessa vez sem obstruções, e ela as iluminou com intensidade.
Meu momento de satisfação foi interrompido pela campainha. Guilherme já havia voltado? Não, ele não tocaria a campainha.
Eu vesti rapidamente minha roupa do dia anterior e fui para a porta da sala, verificar quem era. Um rapaz magro, vestindo uma camiseta azul clara e uma calça jeans, aguardava do outro lado do olho mágico. Abri a porta, e ele sorriu ao me ver.
- Bom dia, senhorita. - Tuan me cumprimentou, levemente surpreso.
[...]
- Eu lamento por sua perda, Amelie.
Eu sorri, agradecendo.
Ele se servia com o café que o ofereci, encontrado por mim na cozinha, certamente preparado por Guilherme antes de sair.
- Bom, um dos motivos da minha visita é perguntar se vocês estão cientes da bagunça que fizeram.
- Como assim?
- Você não andou vendo o noticiário de hoje, não é?
Peguei o controle na mesa de centro e liguei a TV. Depois da previsão do tempo do dia, os repórteres falaram sobre um tiroteio misterioso numa das estradas locais. Não tinham muitos detalhes a fornecer, mas diziam que as testemunhas contaram sobre duas pessoas armadas num carro preto em alta velocidade.
- Ah, caramba... - eu me surpreendi.
- Eu não tive dúvidas de que eram vocês dois.
Ele deu risada antes de continuar.
- E eu daria tudo pra ver a cara dessas pessoas, quando viram vocês atirando em demônios no meio da noite.
Eu também ri ao imaginar de repente a cena.
- Com certeza esse detalhe elas não deram aos jornalistas. - falei.
Nunca em minha vida eu imaginei essa situação. Nem nos meus breves devaneios loucos.
Eu abrira meu coração para achar graça das coisas. A meditação permitiu que o pesar sobre a morte de Daniela não impedisse meus sentimentos bons de surgir, da mesma forma que não impedia minha energia de correr. Eu ainda o sentia, porém ameno, como se eu a tivesse perdido há vários anos, como se eu simplesmente tivesse superado.
Observei Tuan levando a xícara à boca, atento ao noticiário.
- Como vocês se conheceram? - perguntei, curiosa.
- Ah... - ele pareceu se empolgar.
Sorveu o último gole de café e deixou a xícara vazia na mesinha.
- Eu era uma criança meio problemática, com pais mais problemáticos ainda. Inventei de fugir de casa aos 10 anos de idade, e acabei indo parar em uma outra cidade, com frio e com fome. Lembro-me muito bem dessa noite. Eu me perdi no interior de um bairro, e dei de cara com uma rua sem saída, com casas de veraneio que abrigavam o vento como as únicas habitações. Sentei-me no canto da calçada, para dormir ali mesmo e tentar encontrar o caminho de casa quando amanhecesse. Foi quando eu avistei uma criatura horrorosa que eu só tinha visto em pesadelos até então, que me olhava da calçada oposta. Aquilo correu em minha direção e eu nem tive tempo de fugir. Ele me feriu com as unhas afiadas e começou a sugar minha vida, que aliada à dor, era um prato cheio para ele. Guilherme me encontrou a poucos segundos da minha morte. Era uma criança como eu, mas matou a criatura e me carregou nos ombros até uma das casas vazias da rua, onde ele tinha um lugar improvisado para morar. Ele me contou sobre os demônios e sobre quem ele era. Na verdade, ele teve que me provar que fazia ilusões para que eu acreditasse. Nós nos tornamos parceiros, e desde então nos virávamos juntos pra fugir dos demônios e para sobreviver. Eu poderia ter tentado voltar para casa, não havia motivos para que eles me caçassem além do fato de eu estar com Guilherme. Entretanto, eu duvido que meu pais sentiram minha falta. Por que eu voltaria? Eu não o deixaria sozinho em troca de um teto e um prato de comida, em um lugar onde eu não era tão bem-vindo.
Tuan olhou bem para mim. Percebeu que eu estava atenta à história, e continuou.
- Mais ou menos aos 16 anos, mas com identidades falsas de 18, nós conseguimos nos estabelecer cada um em um lugar. Guilherme foi morar sozinho em uma casa pequena de um canto esquecido da cidade. Eu consegui ir morar com uma moça mais velha, mas não por muito tempo. Quando os demônios a mataram, percebi que nunca conseguiria voltar a ter uma vida comum ou me distanciar de Guilherme, pois eles tentariam chegar a ele através de mim, do meu ódio, do meu corpo.
Eu lembrei de Daniela novamente. Por um breve momento. Contudo, não lamentei.
- Foi nessa época que meu interesse, e é claro, minha necessidade, por armas se intensificou, e eu comecei a fabricar a própria munição quando descobri o que a prata fazia nos fedorentos.
Ele colocou um pouco mais de café na xícara.
- Diga-me uma coisa. - eu disse.
- Se eu puder.
- O que há nas ilusões de Guilherme que deixam os demônios vulneráveis?
- Bom, ele nunca me disse. Em todo esse tempo, minhas próprias deduções me disseram que a couraça dura que eles possuem é como uma armadura de batalha. Eles mesmos a endurecem enquanto estão nesse mundo. Guilherme faz com que eles de alguma forma relaxem, fiquem mais fracos. Mas não há como saber que tipo de ilusão faz isso.
Fomos interrompidos pelo motor do carro de Guilherme, que estacionava em frente a casa. Ele abriu a porta e entrou, nos vendo sentados no sofá.
- Tuan. O que o traz aqui?
- Bom dia pra você também, parceiro.
- Se é sobre o que passou no noticiário, eu já estou sabendo.
- Não é só sobre isso.
Guilherme percebeu o tom sério de Tuan, e veio sentar ao meu lado no sofá.
- O que está acontecendo?
- Não sei se você já percebeu, mas demônios mais poderosos estão aparecendo.
Eu me lembrei do que havia matado Daniela, mas pelo que eu tinha concluído, aquele era do tipo que se apoderava do corpo de humanos, um pouco mais evoluídos, mas ainda sim comuns. Ele certamente falava de demônios ainda mais fortes, que eu ainda não tivera a oportunidade de ver.
- Sim, eu percebi.
- Você sabe que eles não aparecem assim do nada. Isso não está me cheirando nada bem.
Tuan voltou seus olhos escuros a mim. Não olhos acusadores, e sim alertantes.
- É por minha causa. - afirmei o que eles já sabiam.
- Guilherme... - chamou a atenção dele, que estava pensativo. - O que você pretende fazer?
- Eu já previa isso há muito tempo. Não há muito o que ser feito.
Percebi o quanto o assunto os preocupava. Não perguntei, mas tinha certeza que eles já haviam tido um encontro nada agradável com esses demônios poderosos.
- Eu acho melhor vocês se prepararem. - Tuan avisou. - Algo me diz que há coisas terríveis por vir.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Vômito, doce.


Aqui estou, olhando para o céu cinzento, deixo a tristeza sair aos poucos. Num beco sem saída, é aí que estou. A tristeza me encurrala e me vejo coberta de pombos, bicando-me os olhos, deixando-me cega. Mas não os afasto; a dor alivia o nó que você apertou em minha garganta.
Você está ouvindo?
Eu simplesmente me perdi na mistura da ânsia, medo, falta de ar, olhos cegos e doces, doces que enfio goela abaixo para vomitar toda esta angústia dentro de mim.
Mas por que você tinha que proferir aquelas palavras, eu gritei chutando a parede, escorregando em meu vômito, doce.
Caída no chão, os pombos continuaram a bicar-me os olhos. Não senti vontade de levantar. Continuei ali, deitada, cega, respirando teu cheiro, ansiando a tua mão.

Angelus (parte 7)



Guilherme dirigia em alta velocidade na estrada. Alguns demônios seguiam o carro, ele mantinha a Desert Eagle em uma das mãos, atirando nos que alcançavam a janela dianteira. Como ele conseguia atirar, recarregar a arma e dirigir ao mesmo tempo, era um mistério.
Eu tentei sentir a energia em mim. Eu sabia que ela estava lá, no fundo, mas eu me sentia pesada, aflita. Sentimentos ruins que se misturavam, que tomavam-me por completa, não permitiam que eu a movesse. Obstruíam-na. Tudo o que eu podia fazer era observar as criaturas nos alcançando.
Olhei novamente para Guilherme, para a pistola em sua mão. Talvez fosse a hora de colocar em ação o que eu havia aprendido.
Eu me virei, puxei a mochila preta que estava no banco de trás e trouxe-a ao meu colo, abrindo e retirando dela uma pistola Glock 18. Guilherme apenas me olhou por um segundo, e em seguida voltou a atenção aos demônios. Ejetei o cartucho para conferir se ele estava carregado. A munição prateada brilhante enchia-o por inteiro. Empurrei-o de volta, desci o vidro da janela do carro e coloquei a cabeça e o braço para fora, empunhando a arma e mirando nos demônios que voavam bem próximos a nós. Sem pensar demais, puxei o gatilho, segurando firme a pistola automática que lançou uma bala seguida da outra e controlando sua força de recuo. Os projéteis atingiram quatro demônios, pude ouvir um grunhido estridente emitido por cada um deles. Ao caírem no chão, afundaram, como se o asfalto tivesse derretido de repente, num liquido negro borbulhante semelhante ao que eu acabara de ver em minha casa. Quando sumiram, liberaram a visão para outros demônios iguais ao que possuíra o colega de Daniela que corriam com velocidade. Um deles deu um salto alto e longo para alcançar o carro. Ele grudou na traseira do veículo com os quatro membros e tentou vir até mim andando como uma aranha. Dei três tiros, acertando-o em cheio. A criatura soltou da lataria e ficou para trás, sendo absorvido pelo líquido assim que atingiu o chão.
As criaturas que ainda corriam tornaram-se cautelosas. Eu tentei atirar neles, porém desviaram rapidamente das balas. Guilherme acelerou ainda mais. Os demônios ficaram um pouco mais afastados com a diferença de velocidade, mas não por muito tempo. Seis deles partiram para cima com tanta velocidade que quase não pude vê-los se movendo. Num reflexo rápido, desferi vários disparos que derrubaram a maior parte deles. Ao puxar o gatilho para ferir o último, a pistola não respondeu e nenhum projétil foi atirado. A munição havia acabado. Antes que eu pudesse voltar meu corpo para dentro para repor as balas, o demônio segurou meu braço e alcançou a janela. Olhei para ele sem deixar que meu olhos fossem aprisionados pelos seus. Um flash da cena pavorosa do corpo morto de Daniela veio em um instante à minha visão. O sentimento ruim e pesado que estava em mim tornou-se de súbito esbraseante, queimando-me por dentro. Eu usei essa energia mordaz que havia acabado de surgir para lhe desferir socos violentos em seu rosto monstruoso. Eu sentia que podia socá-lo até que meus músculos não pudessem mais se mover, e ainda sim aquele sentimento não iria ser saciado.
Um disparo forte interrompeu meus golpes na criatura. A bala passou muito próxima ao meu rosto, atingiu a testa do demônio e o impulsionou para longe. Virei-me para Guilherme, que apontava a arma para o meu lado da janela. Ele a recolheu em seguida.
- O que você está pensando? - bradei, irritada.
- Não dê entrada para eles, Amelie. Você não pode deixar o ódio tomar você.
Respirei fundo. Só então percebi o quanto aquela energia que utilizei era maligna.
- E além disso, eu nunca acertaria você.
- Nem pensei nisso. - eu simplesmente confiava inteiramente nele.
- Quer ajuda para se acalmar?
- Não é necessário. Já estamos chegando, posso me controlar.
Demorou menos de dois minutos para chegarmos a casa de Guilherme. Tenho certeza que vi carros passando por nós, mas não sabia dizer se aquelas pessoas tinham visto algo, e nem o que pensaram a respeito da cena. Ele parou o carro de qualquer jeito, rapidamente desligando o motor. Descemos do carro e corremos para a porta de entrada. Ele se certificou de que o sal ainda bloqueava a passagem, e então abriu a porta, dando passagem para mim e fechando-a logo em seguida.
Eu olhei pela janela assim que entrei na sala. Vi os demônios de longe, olhando para a casa, e em seguida indo embora.
- Eles não vão nos importunar aqui. - Guilherme disse.
Ele se aproximou de mim, com uma expressão preocupada. Tocou com os dedos meu pescoço, onde o demônio me segurou. Julgando pelos seus olhos que não conseguiam esconder a raiva, devia haver uma marca bem feia ali.
- O banheiro fica na segunda porta do corredor. Tome um banho. Eu vou arrumar o quarto para você. - ele disse, num tom onde ele não conseguia controlar as sensações ruins que estava sentindo.
Talvez ele nunca tivesse vivido uma situação assim. Talvez ele não soubesse como agir diante desse sentimento de preocupação.
Guilherme deu as costas, entrando pelo corredor. Voltou segundos depois com uma camiseta verde escura nas mãos.
- Eu não tenho roupas limpas para você. Mas talvez você ache isso confortável. - ele me entregou a camiseta.
Não tive tempo de agradecer. Ele deu as costas novamente para ir preparar o quarto para mim.
Segui até o banheiro. Ao fechar a porta, voltei meu rosto ao espelho. Uma marca levemente roxa e algumas escoriações circundavam meu pescoço. Tirei a roupa e soltei meu cabelo, dando uma última olhada no espelho antes de ligar o chuveiro. A água quente caiu sobre mim, e eu deixei ela lavar as coisas ruins.
Daniela. Por mais que eu parecesse distante, por mais que eu não ligasse com frequência. Ela era minha irmã mais velha.
Eu a amava. À minha maneira.
E agora ela estava morta por minha causa.
Dei um soco na parede de azulejos. Era luz. Só luz. Por que tinha que atrair desgraças? Por que tantas vidas tiradas, tantas vidas destruídas? Por causa de luz?
Eu simplesmente terminei o banho, me sequei com uma das toalhas dobradas e empilhadas em cima do armário e me vesti com a camiseta macia de Guilherme, cujas mangas chegavam no cotovelo e que me cobria até quase metade das coxas. Eu não me lembrava dele ser tão grande. Ou talvez eu que fosse pequena.
Sai e fui em direção ao quarto de hóspedes, onde eu havia dormido pela primeira vez. Um travesseiro branco e um cobertor fino, cinza e felpudo me aguardavam.
Olhei para trás. Guilherme estava parado na porta, com o mesmo olhar de preocupação e culpa.
- Por favor, pare. Não há nada pelo que se culpar. - falei, sentando na cama.
- Eu não deveria ter deixado você entrar lá sozinha.
- Do que você está falando? Não importa se eu estava sozinha, eu o matei.
- Você poderia ter morrido.
- Mas eu não morri!
Minha voz saiu num tom mais alto do que eu pretendia.
- Desculpe. - ele murmurou - Eu quero proteger você. Eu não quero que aqueles desgraçados com aquelas mãos imundas tentem te machucar.
- Guilherme, confie em mim, na minha capacidade. - suspirei - Eu sou capaz de matá-los, sou capaz de me defender sozinha.
Ele não quis dizer mais nada, apenas me fitou por longos segundos, e a cada instante, toda a carga daquela noite crescia em mim.
- Eu... Sinto muito por sua irmã. - disse por fim.
Ele apagou a luz e se virou para sair dali.
- Espere. - eu o impedi.
Pela primeira vez naquele dia, não pude evitar que a carga transbordasse. Lágrimas começaram a escorrer dos meus olhos.
- Fique comigo essa noite. - eu pedi.
Guilherme veio até a cama, sentou-se e me abraçou. Eu deitei e me aninhei em seus braços deixando as lágrimas escorrerem enquanto elas tinham força.
Embalada pelo seu calor e pelos batimentos do seu coração, eu então adormeci.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Désespoir Agreable


Daquele vento frio cortante, só me vinha à cabeça a imagem daqueles olhos perfurantes, corpos pulsantes, palavras saltitantes. E a minha mente reproduzia gritos tapas choros raiva angústia e eu só queria fechar as janelas mas era inútil porque eu abri cada uma delas depois e eu procurava alguém que nos tirasse daquela casa que era dele, ele gritava. Ele gritava, o outro gritava e quem queria gritar apenas chorava. E o vento continuava frio e as palavras faziam com que ela sangrasse e eu estava naquela mistura de desespero raiva medo e leite quente e eu queria subir as escadas e dar adeus ao meu velho porque o meu triste coração já sabia que talvez eu não pudesse vê-lo outra vez.
E pude, em um outro dia também frio. Mas por que não abrem a maldita porta, eu quis gritar, mas continuei caladinha. Ele veio de terno azul, mas os olhos cegos dele cegavam os meus, e as lágrimas escorriam sem parar.
Difícil, assim era é.

domingo, 23 de agosto de 2015

Sonho n°3 - Da fuga e da morte



- Vamos fugir? - aquele garoto virou e falou para mim.
Seus olhos brilhavam, assim como os meus.
-Sim! Claro!
Fugir daquela vida patética que eu levava. Fugir sem rumo, para algum lugar que me acolhesse como eu mesma. Fugir ao lado de alguém que eu gostava muito. Eu nunca recusaria o convite.
Eu ja tinha arrumado minhas coisas. Apenas uma pequena mochila com algumas peças de roupa. Ele estaria me esperando com sua moto preta e vermelha na frente de um mercadinho.
Era dia. Eu cheguei no lugar marcado, a moto estava estacionada no meio fio. Decidi entrar no mercado para comprar algo antes de partir.
Ao entrar, o ambiente ficou escuro por conta do sol a que eu estava exposta lá fora. Logo, minha visão foi se acostumando com a luz do ambiente. O mercado era iluminado apenas pela luz do dia que entrava pelas laterais, não havia luzes acesas. Algumas pessoas escolhiam legumes e verduras, e o único caixa do simples estabelecimento aguardava para atendê-las.
Eu me mantive de costas para a porta, observando e pensando o que eu podia comprar. Apenas alguns segundos estando parada, vi as pessoas de repente gritarem e se jogarem no chão, com as mãos na cabeça. Não tive tempo de virar para ver o assaltante. Ouvi dois disparos. Senti o impacto nas minhas costas, e sem conseguir mater o controle sobre meu corpo, caí.
Eu não conseguia me mover, e minha visão já estava escurecida. Eu apenas sentia minha vida escorrer junto com o sangue e se espalhar no chão.
Ainda tive tempo de pensar onde estaria o garoto, e que eu não poderia mais fugir com ele. Mas, de qualquer forma, aquela também era uma fuga justa.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Cartas à Severina III


Severina,
Que problema tua visita me trouxeste! Tu tens me dado trabalho! Estou FARTA de tua comodidade Severina.
Expulso-te de mim, vá! Além disto, Esperança está de volta, preciso do sofá vago.
Passe bem.
Tua velha amiga

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Angelus (parte 6)



Ele havia me levado a um local desconhecido, um campo extenso e verdejante, que tinha como único acesso uma trilha fechada e escondida em meio às árvores. Completamente sozinhos, tínhamos espaço suficiente para destruir uma grande horda de demônios.
-Você esta pronta?
-Sim.
Eu me concentrei e deixei a energia tomar meus braços, pronta para sair.
-Guilherme, não amenize a dor. - eu disse.
Olhou-me como se estivesse perguntando se eu tinha certeza disso.
-Estou falando serio.
Ele assentiu com a cabeça.
O céu foi se tornando vermelho escuro aos poucos. Eu olhei em volta, e não o vi mais. À minha frente, em meio as árvores, surgiram quatro ou cinco demônios, que vinham em direção a mim.
- Eles têm uma couraça e uma carne resistente, o que os tornam duros de matar. - ouvi sua voz dizer - Não tenha dó de usar seu poder.
Certo. Coloquei mais intensidade na energia que fluía em mim, e a liberei através das minhas mãos, como eu havia feito sozinha em casa. A luz surgiu em forma de esfera novamente, mas eu a contrai, deixando a luz intensa compactada no tamanho de uma bola de gude. Joguei em direção a um dos demônios, como uma bala. Ela o atingiu no peito, penetrando através de sua couraça. Com o impacto, ele caiu para trás, e logo parou de se mover, esfumaçando em cinzas no ar.
Fiz o mesmo com outros dois, dessa vez com mais rapidez e usando as duas mãos. Eles caíram e se desfizeram da mesma forma que o primeiro.
Eu então experimentei algo novo. segurei com força a luz em meu braço, e um brilho começou a escapar dele. Quando eu já não podia mais conter, movimentei meu braço na diagonal com rapidez, lançado a luz em forma de lamina. Ela atingiu e cortou na altura do ombro os demônios que restavam.
Tudo o que eu realizava com a luz era movido por um instinto que ate então eu não sabia que tinha. Eu não pensava sobre o que eu estava fazendo, eu simplesmente fazia. E aquilo deixava-me satisfeita, confiante. Como se eu tivesse encontrado a mim mesma.
Por um segundo de distração, um outro demônio surgiu do céu. Ele pousou na minha frente, bem perto de mim, e me empurrou com força para o chão, caindo por cima e me segurando contra a grama, como na praia. Usou suas garras para me cortar nos braços e no tórax, a dor que Guilherme não amenizou afligiu minha pele. Automaticamente olhei em seus olhos, e então não consegui mais me mover. Ele puxou minha vida para si, me fazendo perder todas as forças. Tentei usar minha magia, mas ela não fluiu, e eu me desesperei.
A ilusão foi interrompida, todo o cenário então mudou em um segundo. O céu voltou ao azul habitual, o demônio desapareceu e minhas forças voltaram.
Guilherme caminhou até meu lado, e me olhou de cima. Eu permanecia deitada na grama, respirando ofegante.
- Jamais olhe nos olhos deles. - ele me disse, estendendo o braço. - E saiba que eles gostam de te fazer sentir dor antes de se alimentarem.
Eu segurei sua mão e ele me puxou, ajudando a me levantar.
- Você é boa. - ele falou, sem soltar minha mão.
- Você também. - referi-me à todas as suas habilidades - Como você faz para matá-los apenas com as mãos?
- Eu os deixo vulneráveis com minhas ilusões.
- De que jeito? - perguntei sem pensar.
Percebi seus olhos mudarem, ele não me respondeu. Aquela pergunta com certeza o incomodava.
- De qualquer forma, não importa. - acabei por dizer.
Eu o puxei até debaixo de uma árvore, e o convidei a sentar sob a sombra fresca.
- Eu estou gostando de estar aqui. Nesse lugar. Com você.
Nós nos beijamos intensamente, e ele me envolveu com um dos braços logo depois, sentado na grama ao meu lado.
Guilherme não disse nada e eu não me incomodei com isso. Pelo contrário, eu apreciava o silêncio ao lado dele, pois seu silêncio me contava mais do que suas palavras.
Ficamos o resto do dia naquele lugar. A cada hora que se passava, eu parecia me apaixonar mais por ele.
E a cada dia.
E a cada semana.
Dois meses correram mais rápido do que normalmente correria. Nesse tempo, Guilherme ensinou-me a atirar e a lutar, a pedido meu, caso eu precisasse. Eu nunca havia vivido à sombra de ninguém, e eu não viveria à sombra dele agora, não viveria restringida sob sua proteção.
Embora eu acreditasse que o breve treinamento havia surtido mais efeito do que o esperado, não tive muitas oportunidades de colocar minhas novas habilidades em prática, já que não houve muitos encontros com os demônios nesse meio tempo. Eles recuaram, sem um motivo aparente. Porém, isso não fez com que abaixássemos a guarda. Pelo contrário, eu e Guilherme estávamos preocupados com o que estava por vir.
Novamente no campo verdejante escondido, sentei-me no chão, cansada, depois de matar demônios de mentira apenas com golpes corporais.
Guilherme olhou o sol, que começava a caminhar em direção ao poente.
- Eu acho melhor irmos. - falei, sem esperar que ele dissesse primeiro.
- Você está com medo?
- Eu posso enfrentar essas coisas, se elas aparecerem. Mas vamos evitar a noite, só por hoje.
Eu não sabia bem porque, mas naquele momento eu não me sentia confortável ao pensar no anoitecer.
Nós saímos pela trilha e Guilherme levou-me para casa, que não ficava muito distante daquele lugar.
- Posso vir te buscar amanhã novamente? - disse, ao estacionar na frente do meu portão.
- Claro que sim.
Ele me beijou levemente nos lábios.
- Até amanhã.
- Até.
Abri a porta do carro, mas Guilherme segurou meu braço.
- Espere. - ele olhou minha casa.
Eu procurei o que ele estava vendo, e vi a luz acesa através da cortina fechada da janela.
- Daniela tem uma cópia da chave. Ela deve ter vindo e entrado para me esperar.
- Tem certeza?
- Sim. Eu protegi a casa com sal.
Ele hesitou por alguns segundos.
- Vou esperar aqui na frente por um tempo. Se algo estiver errado, grite.
Eu assenti, mesmo achando desnecessário, e desci do carro. O portão estava trancado, a porta da sala encostada, tudo aparentemente normal. Porém, a visão de "aparentemente normal" mudou assim que entrei pela porta.
A parede da sala que ficava de frente para a entrada estava marcada com manchas de sangue que ainda pareciam frescas, e pelo chão, poças vermelhas e escuras se espalhavam. A sala revirada, cadeiras derrubadas, objetos pelo chão. Um rastro de sangue seguia até a cozinha, onde um homem de cabelos claros surgiu atrás do balcão. Ele me olhou com olhos devoradores e me direcionou um sorriso macabro.
- Você demorou, pequena maga.
Eu imediatamente olhei a beira da porta, e a fileira de sal que eu havia colocado não estava mais lá.
- Não podemos entrar com o sal bloqueando a passagem, mesmo dentro do corpo nojento de vocês. Mas não é difícil para nós manipular um humano para removê-lo.
Ele saiu de trás do balcão, arrastando pelos cabelos um corpo morto. Meu coração gelou.
Daniela.
Sua roupa estava ensanguentada e vários cortes profundos se espalhavam pelo seu corpo. O homem a jogou no chão, sem vida. Neste momento, esqueci de Guilherme do lado de fora, esqueci da voz que podia arrebentar em minha garganta com um grito, esqueci como mover as pernas para correr para fora.
- A luz do sol começou a se esconder. Já posso sair desse receptáculo imundo.
Ele começou a se contorcer, quebrando seus próprios ossos com movimentos brutos e emitindo um som horroroso. Ele inclinou-se para o chão, vomitou um líquido negro e viscoso, e em seguida caiu torto, também sem vida. Do líquido negro, uma criatura foi emergindo e rastejando, livrando-se aos poucos da poça que parecia profunda através do piso da sala. O demônio se levantou, mostrando-se diferente dos outros que eu já tinha visto. Ele era menos bestial, porém possuía largos espinhos elevando-se por baixo da pele espessa de seus braços.
O cheiro de enxofre misturava-se ao cheiro de sangue e fazia minhas pernas paralisarem. Ele se aproximou rapidamente de mim e ergueu-me pelo pescoço. Eu desviei meus olhos dos seus, para que ele não acorrentasse e puxasse minha vida. Porém, sua mão me apertava e me sufocava. Meu cérebro pesava, e minha garganta agonizava.
O instinto então despertou em mim de repente e meus olhos clarearam. Através de minhas mãos fracas que seguravam seu braço, transferi toda a energia que surgiu em mim. A luz entrou em seu corpo, e ele largou-me imediatamente. Meus pulmões, aliviados, puxaram todo o ar que podiam, e tosses dolorosas irromperam pela minha garganta. Eu olhei o demônio, que se debatia. Sua carne era torturada pela minha luz, e ele começou a desfazer-se de dentro para fora, sua couraça oca desmoronando aos poucos.
Quando me dei conta, Guilherme já estava segurando-me contra si.
- Por que você não gritou? - perguntou.
Eu não havia visto ele entrar, e não sabia o que tinha feito ele perceber que algo estava acontecendo. Eu simplesmente fechei os olhos e afundei meu rosto em seu peito, para não olhar nem mais um segundo aquela cena pavorosa à minha frente.
- Vamos sair daqui... - disse, apenas, com a voz trêmula.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Cólera


Abriu os olhos, mesmo contra sua vontade.
Mais um dia.
Suspirou.
Vendo que as pálpebras teimosas cerravam-se por conta própria, resolveu levantar-se.
A cabeça pesava, e a pasta de dente caiu por entre seus dedos amassados.
Agarrou-se à pia amarela, cuja cor parecia ter sumido.
Respirou fundo, confusa e nervosa.
Tudo escurecia.
Debateu-se, tentando prestar atenção em algo, mas qualquer barulho a distraía.
Alguém havia apagado a luz.
Sentiria-se em paz se não estivesse presa em um leve desespero, um tanto agradável, um tanto dolorido.
Ao abrir os olhos novamente, vomitava sua cólera incessantemente, como se isso nunca fosse acabar.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Angelus (parte 5)



- Diga-me logo, Amelie. Você está com alguém, não está? - a voz de Daniela no telefone transpassava nitidamente sua empolgação com a pergunta.
- Daniela... - eu bufei.
- Ora, conte-me!
- Digamos que sim.
Ela deu um grito de alegria e eu afastei o celular da orelha.
- Amelie, você sabe que eu sempre quis que isso acontecesse, não é?
- Eu sei.
Eu não tinha certeza se podia contar a ela como eu o conhecera e sobre quem eu era, ela surtaria, ou no mínimo me trancaria dentro de casa e não me deixaria mais sair.
Ouvi uma voz ao fundo.
- Quem está aí com você? - perguntei, desconfiada.
- É um colega de trabalho, está me ajudando em algumas coisas. - Daniela pareceu falar com ele, afastando o celular da boca - Amelie... vou desligar. Estou cheia de trabalho aqui.
- Ok.
- Fique bem. - falou, antes de encerrar a ligação.
Fiquei intrigada com aquilo. Daniela não levava conhecidos do trabalho para casa. Tentei tirar isso da cabeça, era uma coisa natural, mesmo para ela, não era motivo de desconfiança.
Eu aproveitei o resto do dia para resolver coisas que estavam pendentes, e a noite que se seguiu correu como o voo de uma borboleta, com sonhos que eu nunca poderia imaginar que teria.
Depois de um banho para despertar, eu deixara que tudo o que havia acontecido nos últimos dias invadisse minha mente. Olhei no espelho, meus cabelos caíam molhados até acima dos cotovelos e a franja dividida ao meio e frequentemente jogada para trás já havia passado um pouco da altura da orelha. Quem eu era? Uma pergunta feita insistentemente por tantos anos, agora com uma resposta completamente inesperada.
Amelie West. Maga da luz. Descendente de Alexiel.
Saber disso deixava-me, de certa forma, aliviada. Aliviada por finalmente ser alguém. Aliviada por me livrar da monotonia que me consumia.
Vesti-me com uma regata preta e uma calça jeans sutilmente apertada e fui à sala. Recusei ligar a TV, me jogando no sofá. Sem que qualquer pensamento de tédio surgisse, eu olhei minhas mãos. Virei-as, observei as palmas, mexi os dedos. O que será que eu podia fazer através delas?
De uma forma tão natural quanto mexer um músculo, eu procurei pela energia e a movi dentro de mim. Vinda do meu mais profundo interior, senti a energia percorrer minhas veias novamente. Movi-a pelo meu braço até minha mão, e ela brilhou intensamente entre os meus dedos. Tentei concentrá-la, fazê-la sair e flutuar, o que me exigiu uma certa força. Uma esfera luminosa formou-se sobre a palma da minha mão, e eu fiz o possível para que ela não escapasse ou se desfizesse. Olhei bem para o que eu havia feito. Era lindo
Fiz o mesmo com a outra mão, me concentrando em manter o equilíbrio entre a energia nos dois lados. Era como se eu sempre soubesse fazer aquilo, mas tivesse dificuldade depois de muitos anos sem praticar.
Juntei então as duas esferas para formar uma única, maior e mais brilhante, envolvida pelas minhas duas mãos. Parecia um pequeno sol. Só meu.
Aquilo era incrível.
Fechei as mãos, para que a luz desaparecesse. Ela se esfumaçou e se dissipou no ar.
Sorri comigo mesma. O que eu acabara de fazer me fez sentir viva como nunca antes havia me sentido. Eu estava completa.
Uma buzina então fez meu coração saltar. Puxei a cortina para olhar através da janela, e Guilherme me esperava em frente ao portão.


[...]


Sentados em uma das mesas no canto do restaurante, Guilherme e eu tínhamos acabado de almoçar. Era um lugar simples e informal, mas aconchegante. Um ambiente perfeitamente confortável para mim.
- Lidando bem com sua magia? - ele perguntou.
Sua voz não era mais fria como antes, porém permanecia firme, como se não fosse capaz de transpassar seus sentimentos.
- Eu andei praticando. - falei.
Guilherme riu de leve. Não achei que fosse vê-lo rindo tão fácil.
- Imagino que algumas coisas em sua casa acabaram quebradas.
Ele estava me chamando de desastrada?
Eu não pude evitar a risada.
- É claro que não.
Eu percebera em nós dois uma mágica mudança desde o dia em que nos vimos pela primeira vez. A floresta de espinhos que a luz havia destruído era a única coisa que prendia-me dentro de mim mesma. Eu entendia que era ela quem mantinha-me intocável até hoje, e mesmo que isso tivesse acarretado uma certa frieza em mim por um bom tempo, eu era grata por ela existir. De uma forma impossível de ser explicada, a luz purificou-me por dentro, tornando-me propícia a aceitar sentimentos bons. Todo aquele sentimento, a agitação em minha alma ao vê-lo, a vontade de estar perto dele, a sensação de conhecê-lo há muito tempo, eram coisas novas para mim. Mesmo nos tendo conhecido há pouco mais de duas semanas, parecíamos ser tão próximos que eu podia afirmar que isso tudo também acontecia de forma semelhante com ele. Guilherme ainda continuava sutilmente afastado e hesitante. Contudo, a capacidade de sorrir ao me olhar me fazia crer que ele estava aos poucos se revelando.
- Sabe... - ele começou - Eu posso dizer que sempre estive procurando por você, mas não esperava que realmente fosse eu o escolhido a te encontrar.
- E como você se sente?
- Sinto que minha vida não está perdida como eu achei que estava.
Eu olhei em seus olhos, e novamente imaginei pelo que ele já teria passado. Como teria sido sua vida até então, e como ela seria se não fosse ele a me encontrar e se não fosse eu a ser encontrada. Se precisássemos manter nossa linhagem existindo, para que talvez nossos netos ou bisnetos viessem a se cruzar algum dia.
Foi com esse tipo de pensamento que minha mãe viveu?
Que tipo de vida teriam tido os pais de Guilherme?
Preferi não ir mais adiante com essa breve reflexão. Eu sabia que, no final das contas, o destino colocava tudo em seu devido lugar.
- Conte-me sobre as ilusões, confesso que esse assunto me atrai. - mudei levemente de assunto - Você sempre soube fazê-las?
- Pode-se dizer que sim. É herança do clã. Não se sabe ao certo como começou, ou se sempre foi assim, mas temos uma alma diferente. Enquanto todas as criaturas tem uma alma completa, inteira e encapsulada ao corpo durante a vida, nós temos uma alma segmentada e podemos movê-la, desde que a consciência permaneça imóvel e firme. O tipo de segmento com que nascemos podendo mover, com o que nos identificamos naturalmente, é o que define o poder individual, que no meu caso é a ilusão. É bem mais complexo que isso, mas basicamente, eu constituo a ilusão com o pensamento e movo-a para os sentidos do demônio. Quanto mais forte e concentrado é o pensamento, mais real ela se torna.
- Isso é fascinante. - disse, impressionada. - O que mais se pode fazer?
- Dentre outras coisas, modificar lembranças, troca de energia vital, manipular sentimentos... E, com uma estrutura espiritual bem forte, pode-se até explodir demônios.
Tentei imaginar essa cena pitoresca, enquanto percebia novamente a chave pendurada em seu pescoço.
- O que isso significa? - questionei, curiosa.
- Essa chave? Uma mulher quem me deu quando eu ainda era criança.
- Quem era?
- Não sei.
Ficou claramente perceptível que ele não queria se estender no assunto.
- Bom... Eu queria te pedir um favor. - eu planejara isso no trajeto de carro até o restaurante.
- Diga.
- Eu quero ser capaz de matar um demônio. Quero poder aprender o que posso fazer diante de uma situação como aquela da estrada.
- Eu já sei o que você vai me pedir. - ele parecia sério.
- E então?
Pensou por alguns segundos, me fitando.
- Acho que isso pode funcionar. - disse por fim - Mas você deve saber que minhas ilusões são bem reais e englobam todos os seus sentidos, inclusive a dor. Posso amenizá-la ou intensificá-la, mas não posso removê-la.
- Eu não me importo.
Guilherme continuou me fitando. Ele olhava em meus olhos, e aquilo era confortavelmente doce. De repente, ele sorriu.
- O que foi? - perguntei.
Hesitou um pouco antes de falar.
 - Você é linda.
Eu nunca escutara essa frase de uma maneira tão intensa quanto aquela. Um sorriso inevitável surgiu em meu rosto.
Estava muito feliz por tê-lo conhecido.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

O anjo


Correu pela relva úmida para sentir-se liberta.
Ainda sentia um quê de saudade, tristeza, leite, doce e solidão.
Precisava correr.
As pregas do vestido saltavam delicadamente sobre o seu corpo. As belas pernas, um tanto finas, refletiam o verde do gramado. Os cabelos médios, um tanto bagunçados, moviam-se na velocidade cruel que o vento andava naquele crepúsculo.
Às vezes, ela parava, suspirava, e ajeitava os cabelos, vendo que todos aqueles passos eram em vão.
Pensou no anjo. Aquele anjo, o motivo da saudade. Tão perfeito, assim ele era. O anjo da voz aveludada, do toque suave, razão de seu sorriso. O anjo dos olhos brilhantes, do aroma doce.
A saudade congelava-lhe o coração, assim como o vento que ainda levava o perfume de seu anjo para longe.
E com a saudade, veio o desespero. A mão subiu ao pescoço, apertou-lhe a garganta.
O ar faltou.

domingo, 16 de agosto de 2015

Sonho n°2 - Das cores e da liberdade



Depois que a minha vizinha faleceu, vários pássaros que pertenciam a ela ficaram na gaiola, pendurados na área de serviço dela. Permaneceram lá por muito tempo, presos, sozinhos.
Eu entrei na casa dela, e observei os pássaros. Os olhos deles encontravam os meus numa tristeza infinita.
Eu comentei algo sobre isso com o Sr Alfredo, viúvo dela. Ele olhou com comoção para mim.
- Pode soltá-los, se quiser. - ele disse.
- É sério? Todos eles?
- Sim.
Eu fui com muita alegria e com um sorriso no rosto até a área, que era pincelada com o colorido das penas dos pássaros, cada um diferente um do outro, com suas próprias cores, porém levemente opacos, como se estivessem perdendo a cor.
O primeiro que peguei tinha penas escuras na cabeça, e o resto do corpo era de um amarelo ameno e uma mistura de vários outros amarelos. Eu o retirei da gaiola com cuidado, o envolvi com as mãos e acariciei sua cabeça. Ele olhou para mim, despertando uma sensação em mim que fazia minha alma flutuar.
Abri minhas mãos, e o deixei livre para ir. Ele se impulsionou para cima e bateu suas asas para longe, com a força de viver completamente restaurada.
Soltei um por um em seguida, devolvendo-lhes a cor que estava sendo perdida. Eles voaram em direção ao infinito azul que nos cobre, livres.
Minha alma desejou profundamente poder ir com eles.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Cartas à Severina II


Querida Severina,
Agradeço-lhe a pequena visita que me fizeste hoje, mesmo que tenha trazido consigo a mala carregada do costumeiro líquido amargo. Achas que vais ficar muito tempo? Terás que dormir no sofá até decidires ir embora. Também agradeço o presente, Severina, mas não bebo, tampouco fumo.
Severina, Severina... Diga-me, onde andas a paz? Andou sumida, há tempos não a vejo!
Perdoe-me a indecência, como vai você? Por aqui vou eu no mesmo lugar... Caindo nos (a)braços à minha volta.
Esperança está de vigem, saiu ontem pela madrugada, soubestes? Sim, tenho certeza. Ela fez questão de acenar adeus. Não, não foi um adeus. Foi um até logo, depende de quanto tempo desejares ficar, Severina.
Ao menos espero que tua estada seja confortável.
Tua velha amiga.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Angelus (parte 4)



Ao meu redor, árvores envoltas em luz emanavam um verde musical, que me acariciava como folhas da primavera. Não só o azul preenchia o céu, ele também me cobria com cores que não se pode ver com olhos humanos. Sozinha, eu deitara para permitir que aquele lugar resplandecente me acolhesse e me iluminasse. Eu nunca me sentira tão confortável.
Acordei com um suspiro profundo, o que fez com que Guilherme retirasse os olhos da estrada e olhasse para mim. Decepcionei-me ao perceber que ainda estávamos no carro.
- Cinco minutos foram suficientes para que você tivesse um pesadelo? - perguntou ele.
- Não, não foi um pesadelo... - murmurei, me dando conta de que depois de muitos anos, eu enfim havia tido um sonho bom.
Olhei para a estrada à frente, e vi que ele não estava me levando para um lugar que eu conhecesse.
- Onde estamos indo? - perguntei.
- À casa de um amigo. Por ora, é o lugar mais seguro.
Seguimos por mais alguns minutos até um bairro de classe média alta da cidade, e paramos em frente a uma loja de computadores. Um estreito portão fechado ao lado do estabelecimento indicava que alguém morava nos fundos. Guilherme olhou para os lados, e só disse para que saíssemos quando teve certeza de que estávamos sozinhos.
Descemos do carro e ele tocou a campainha. Sem muita demora, ouvi passos e um tilintar de chaves, que pausaram por tempo suficiente para que fôssemos identificados pelo olho mágico. O pequeno portão então se abriu.
- Guilherme? - disse um cara que aparentava ter a mesma idade que ele. - Quem é a garota? - seus olhos escuros olhavam pra mim.
- Deixe-nos entrar, Tuan. - falou Guilherme, apressado.
Ele nos deu passagem para um corredor longo e pouco iluminado, enquanto trancava novamente o portão. Segui Guilherme até uma porta entreaberta, e notei que assim como na sua casa, ali também havia sal na entrada. Adentramos em uma sala desorganizada, onde computadores desmontados foram deixados sobre a mesa de jantar e um sofá encoberto por uma colcha laranja parecia aconchegante para mim.
- Você nunca mais apareceu. - disse Tuan, entrando por último - Veio trazer mais demônios para mim de novo?
- Ela é quem eu tenho procurado todo esse tempo. - ele foi bem direto.
Tuan me olhou imediatamente. Agora em um ambiente mais claro, pude vê-lo melhor. Seu cabelo castanho-escuro e levemente desarrumado combinava com seus olhos de lua nova. Possuía um corpo sutilmente magro, uma cicatriz no braço direito e um rosto jovial, embora aparentasse ser mais velho do que eu.
- Tá brincando? - um sorriso se abriu em seu rosto. - Definitivamente, você veio trazer mais demônios pra mim.
- Agora eu não posso mais arriscar. Preciso de armas.
- Eu só estava esperando você pedir.
Ele levantou o tapete da sala e revelou um alçapão. Convidou-nos a entrar assim que abriu a portinhola, e nós descemos por uma escadinha até um arsenal que fora montado no porão. Lá, armas de fogo de todos os tipos estavam organizadas sobre um balcão que acompanhava as quatro paredes.
- E o que vai ser? - Tuan perguntou a ele.
- Impressione-me.
Ele abriu outro sorriso radiante, enquanto procurava entre as armas. Pegou uma pistola semi-automática e a entregou a Guilherme.
- Desert Eagle .50, essa aqui derruba qualquer criatura. Devo avisar que é uma arma pesada, mas isso não deve ser problema para você. E por ser pesada, ela tem um coice do "demônio".
Guilherme o olhou sério em reação à piada sem graça. Eu deixei escapar uma pequena risada.
- E as balas? - perguntou.
- Ela suporta sete. É claro, todas de prata.
- Então... prata realmente mata demônios? - questionei.
- Não. A prata é um material puro e místico, mas não os mata, ela só os manda de volta para o mundo deles. O único capaz de matar demônios é esse cara aqui. - ele apontou para Guilherme.
Fiz uma expressão de desentendida.
- O quê? Ele não te contou das ilusões?
- Ilusões? - olhei para ele, curiosa.
Então era isso que ele fazia? Esperei por uma explicação melhor, mas Guilherme simplesmente continuou a analisar a arma.
- Eu sabia que você ia gostar. - disse Tuan.
- E a munição?
Tuan indicou para que fôssemos por uma porta até um ambiente de azulejos brancos. Eu fiquei para trás. Estava desgastada demais para ouvir qualquer explicação técnica.
- Você não vem, senhorita? - perguntou para mim.
- Não, vou ficar por aqui.
Ele sorriu e desapareceu pela porta, seguindo Guilherme. Eu subi a escada e retornei à sala, aquele sofá tinha chamado por mim desde que eu entrara. Ter expulsado aquela energia do meu corpo havia me exaustado de tal maneira que até os pensamentos exigiam uma força enorme para surgir em minha mente. Eu sentei no sofá, e deixando que o cansaço me tomasse, adormeci.


[...]


- Amelie... - murmurou Guilherme, delicadamente - É dia, já podemos ir embora.
A voz dele me fez acordar. Eu estava confortavelmente deitada no sofá, e depois do sono pesado que havia me capturado, eu me sentia revigorada. Coloquei-me sentada, enquanto ele ia à outro cômodo da casa. Assim que saiu, senti Tuan se aproximar de mim por trás do sofá.
- Ele te observou dormir quase a noite inteira. - disse, com a voz baixa - Seus poderes são tão perigosos assim?
- Eu não sei... Ainda não tenho noção do que posso fazer.
- Não falo só da luz. Você já percebeu que com você ele não é tão frio?
Agora que ele falou, eu me dei conta de que desde que Guilherme falou comigo pela primeira vez, sua voz tinha se tornado cada vez menos fria. Além disso, suas atitudes prestativas não pareciam compatíveis com a pessoa que ele aparentava ser.
- Você tem um poder incrível de amolecer o coração daquele cara. E isso é uma coisa que eu nunca vi em todo esse tempo que o conheço.
Guilherme voltou com uma mochila nas mãos, interrompendo nossa conversa. Ele lançou um olhar fulminante para Tuan, que se afastou de mim.
- Vamos? - ele disse.
Eu me levantei e Tuan abriu a porta para nós. Seguimos pelo corredor comprido até o carro que havia ficado lá fora.
- Obrigado. - agradeceu friamente.
- Mande-me sinais de vida de vez em quando.
Entramos no carro. Guilherme estava visivelmente mais pensativo que o comum, mas ele não estava distante como sempre esteve, eu estranhamente podia senti-lo próximo a mim. Ele deu a partida e nós voltamos pelo mesmo caminho de onde viemos.
O sol brilhava forte no céu à nossa frente e quase nos cegava. Ao contrário da noite anterior, a estrada estava movimentada, repleta de carros que iam e vinham. Guilherme pensava tão intensamente que eu quase sentia seus pensamentos ocuparem todo o interior do carro. Decidi não falar com ele durante a viagem. Somente quando chegamos à minha casa e ele desligou o motor, aquela nuvem carregada de pensamentos se dissipou, mas ele ainda permaneceu calado.
Aquilo que Tuan havia dito não saiu da minha cabeça. Guilherme me provocava um sentimento bagunçado, duvidoso, porém incrivelmente bom. Eu estaria provocando esse mesmo sentimento nele?
- Tudo bem? - ele perguntou.
- Você... está preocupado comigo?
- Claro. Eu preciso proteger você.
- Sabe, eu não acho que preciso ser protegida.
Sua expressão, por um segundo, perdeu a segurança que esteve sempre presente em seu rosto. Ele se descuidou e se deixou oscilar, ou talvez tenha feito de propósito.
- Não é só pelo fato de eu ser a descendente, não é? - aproveitei a brecha.
Ele me atingiu com um olhar que fez minha respiração parar. Um olhar intenso, que abalou tudo o que havia em mim, e que podia fazer com que eu confiasse minha vida à ele. Se eu tinha alguma dúvida sobre o que eu sentia por ele, essa dúvida desapareceu naquele momento.
- Não.
Uma única palavra. Um pulo intenso no meu coração.
Eu permiti que ele tocasse levemente meu rosto, e lentamente sua mão percorreu até a minha nuca. Minha respiração acelerou. O calor que emanava de seu corpo era convidativo, parecia me magnetizar. Então, eu não pude resistir.
No instante em que uma força me puxou para ele e meus lábios tocaram os seus, eu pude senti-lo. Senti-lo por inteiro, em sua essência. Eu podia sentir a sua dor, os seus pensamentos confusos, as suas memórias pungentes e o seu coração delirante. Eu podia sentir sua alma. Foi como se ele se tornasse apenas uma parte minha. Não, mais do que isso, era como se ele sempre tivesse sido uma parte minha, e eu nunca tivesse vivido um único dia sem conhecê-lo.
Meu coração se debatia. Não era mais um sentimento simplesmente "bom" o que eu sentia. Era avassalador, fervoroso.
De repente, não estávamos mais dentro de seu carro. Meus olhos estavam fechados, mas eu os abri assim que senti um lugar completamente diferente à nossa volta. Sob meus pés, a neve era suave e agradavelmente morna. O céu nos banhava com penas macias, que caiam brandamente sobre nós. Um aroma cinza-azulado flutuava em minha respiração e fazia minha mente esvoaçar. Suas asas eram como as asas cinzas da lua, e balançavam sobre mim como a brisa vinda do mar. Uma visão esplendorosa, uma sensação indescritível.
Tudo sumiu quando sua boca deixou a minha, e o verde luminoso de seus olhos deu lugar à doce cor de mel novamente.
- Foi você quem fez isso? - eu disse, deslumbrada.
- Sim.
Guilherme olhou profundamente pra mim, e pela primeira vez vi um sorriso surgir em seu rosto. Permanecemos em silêncio por longos segundos, apenas contemplando-nos.
- Eu venho te ver novamente amanhã. - ele precisou quebrar o silêncio. - Coloque sal nas janelas e nas portas.
Eu assenti, e dei-lhe um último sorriso antes de relutantemente sair daquele carro.
Observei-o voltar e virar a esquina como da última vez, mas agora, ele estava levando meu coração com ele.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Saudade


Sinto falta do teu sorriso alegre, tão lindo quanto aquelas tuas flores do jardim.
Mas agora teu sorriso parece um buraco com flores murchas... Tão murchas quanto todo o teu jardim de felicidade.
E pensar: como você me dói às vezes! Me dói quando penso em perder, quando penso em me abandonar. Me dói, sangra-me o coração. Apenas quero afogar-me em teus (quase) cabelos castanhos, admirando-te os olhos brilhantes e perder-me ali.
E nunca mais sair.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Angelus (parte 3)



Começava a escurecer, e eu pensava se não era melhor ir embora enquanto estava dia, para evitar encontrar aquelas criaturas novamente, mas eu não queria ir, e não queria deixar que esse tipo de coisa me impedisse de andar à noite.
Guilherme ainda permanecia do meu lado, olhando fixamente para o oceano, cujas águas começavam a se tornar negras. Eu não esperava que ele estivesse ali só para me fazer companhia, ele não parecia se importar dessa maneira com as pessoas. Entretanto, ele fora prestativo comigo as minimas vezes que nos encontramos, e além disso, tinha me salvado da morte.
Lembrar disso me fez pensar, não podia ser coincidência um cara como ele estar aqui, justamente na noite em que eu seria atacada.
- Como você sabia que precisava estar aqui naquela noite? - fui bem direta, mas incerta.
- Eu simplesmente sabia.
Sua resposta imediatamente fez com que flashes da minha memória viessem bruscamente à tona. Eu não conseguia defini-los, pareciam somente mais um sonho, mas eu via perfeitamente uma luz branda e um nome. Um nome que aparentemente eu desconhecia.
- Você sabe quem é Alexiel? - perguntei num impulso.
Guilherme retirou os olhos do mar para olhar diretamente pra mim.
- Onde você ouviu esse nome? - ele pareceu surpreso.
- Em um sonho, ou em uma lembrança, não sei.
Ele me fitava, seus olhos estavam claramente pensativos.
- Você quer saber porque eles me perseguem, não é? - falou calmamente. - Tudo o que os demônios querem é matar todos nós, espalhar o caos e o ódio, trazer tudo de ruim que existe no mundo deles para o nosso mundo. Por isso, tudo o que eles têm feito talvez envolva um plano maior. Eles começaram a aparecer na terra há muito tempo atrás, e foram agindo lentamente em prol de algo que ninguém sabe o que é. Antigamente, existia um clã de guerreiros que lutavam contra os demônios. A líder deles, Ann, tinha visões perfeitas sobre o futuro. Ela previu que antes que conseguissem realizar o que pretendiam, os demônios seriam destruídos por uma descendente de Alexiel, uma antiga e poderosa maga da luz. Para que a profecia não se concretizasse, os demônios mais poderosos começaram a caçar os magos da luz, e temendo que fossem exterminados, eles se esconderam de todos e aos poucos desapareceram. Com o propósito desesperado de mudar de destino, e não encontrando mais os magos, os demônios vêm desde então perseguindo e matando o clã de guerreiros, para que eles não permitissem de alguma forma que os magos voltassem. A minha linhagem é sobrevivente desse clã e encarregada de encontrar e proteger essa descendente.
- E você acredita que essa descendente... sou eu?
- Talvez. O fato é que, alguns dias antes, eu vi essa praia e uma lua minguante no céu. Eu não tenho visões, essa foi a primeira e provavelmente a única. Eu não sabia o que iria encontrar, mas sabia que seria algo grandioso e que precisava estar aqui.
Guilherme olhou em volta, preocupado.
- Eu acho melhor irmos embora. - eu disse.
- Sim, tem toda razão.
Nos levantamos rapidamente e eu o segui até o seu carro. Ele arrancou em direção à estrada cercada de árvores, que estava vazia e levemente mais escura que o comum. Tentei me convencer de que era só uma impressão minha.
- Mas se eu tenho poderes, por que eu nunca soube disso? - perguntei, intranquila.
- Não faço ideia, me diga você.
De súbito, algo pesado bateu no teto do carro.
- Eles estão aqui. - disse, fazendo um zigue-zague para balançar ao máximo o veículo.
Com o movimento, a criatura que estava em cima do carro rolou e caiu no asfalto, ficando para trás. Olhei pela janela, e vi dois demônios tentando acompanhar a velocidade , voando assustadoramente com asas que surravam o ar. Um deles bateu com força no vidro, e eu me afastei bruscamente da janela.
Um quarto demônio então pousou repentinamente no meio da estrada, fazendo Guilherme frear violentamente e jogar o carro para a direita. Os pneus cantaram no asfalto. Descemos pela grama alta da lateral da pista, e ele conseguiu brecar antes que batêssemos em uma árvore. Olhei em volta, mas não vi mais nenhuma daquelas coisas.
- Eu sabia que isso ia acontecer. Droga. - sua voz ainda permanecia fria, mas ele me olhou de um jeito diferente, como se estivesse se desculpando.
Ele abriu a porta e saiu do carro. Estava tudo muito silencioso, e eu não retirava os olhos dele. Um deles então apareceu e tentou atacá-lo. Ele segurou o braço do demônio, que ficou paralisado assim que tentou olhar para Guilherme, pegou a sua cabeça e esmagou-a contra o chão, do mesmo jeito que fez ao me salvar aquela noite, desfazendo-o no vento. Como ele fazia aquilo?
Um segundo tentou voar na direção do carro, onde eu estava, mas Guilherme o segurou pela asa e o jogou no chão. A criatura não revidou mais, permaneceu imóvel na grama. Ele então abriu o seu crânio usando as duas mãos, fazendo-o desaparecer como o primeiro.
Um pouco ofegante, olhou para mim para se certificar de que eu estava bem. Foi tempo de distração suficiente para que outro demônio caísse do céu em cima dele e o derrubasse. Eu agi num impulso, e sai do carro para correr em direção a ele.
- Fique dentro do carro! - ele gritou, mas eu já estava longe da porta.
Vi-o paralisar novamente a criatura. Dessa vez, eu olhei seus olhos, e o mel tinha dado lugar a um verde quase brilhante. Eu fiquei tão maravilhada com aquela cor, que não percebi o momento em que ele segurou aqueles chifres e arrancou aquela cabeça. Logo em seguida, olhou para mim. O mel já tinha voltado aos seus olhos.
Não tive tempo de dizer nada, mais demônios surgiram rapidamente por entre as árvores, e vinham por todos os lados. Muitos deles. Guilherme se aproximou de mim, e sem querer me tocou levemente no pulso. Um toque, quente, brando, mas devastador.
Fui atingida por um turbilhão de memórias. Tudo veio à tona de uma só vez e em um segundo apenas, o que quase fez minha cabeça explodir. O rosto dos meus pais, algo desconhecido pra mim. Minha mãe chamando meu nome, me acariciando e me abençoando. Uma bênção protetora, que me manteria segura até encontrar quem me protegesse. Uma luz em seus olhos castanho-escuros, o calor de um abraço, que tem misteriosamente me mantendo aquecida desde os seis anos. O nome que eu deveria guardar, Alexiel, Alexiel, Alexiel.
Eu sentia a mesma luz dos olhos da minha mãe crescer em meu coração, e ela devastou a floresta de espinhos que a mantinha protegida até então, ela invadiu minhas veias, inundou meu corpo, cada célula dele. Podia sentir meus olhos clarearem, brilharem, num suave e alvo amarelo. Eu quase não conseguia segurar essa poderosa energia dentro de mim. Então, deixei-a sair.
Uma onda forte de luz saiu brutalmente do meu corpo, transformando toda a noite em dia. Ela atingiu os demônios, que grunhiram e transformaram-se em cinzas.
Meus olhos aos poucos foram voltando ao normal e a escuridão do céu voltou a tomar a noite. Guilherme me olhava, perplexo. Toda a energia desapareceu de mim, fazendo minhas forças oscilarem e eu quase perder a consciência. Ele me pegou antes que eu despencasse ao chão. Suas mãos estavam sujas com o sangue dos demônios que matara, mas eu não me importei.
Seus braços me apertaram suavemente contra seu peito, e meu coração se agitou. Lutando contra o peso que minha alma fazia para continuar ali, em seus braços, eu me recompus.
- Você está bem? - essa foi a primeira vez que sua voz não me pareceu fria.
- Estou. Vamos sair daqui logo, antes que mais deles apareçam.
Ainda não acreditando no que havia acontecido, entrei no carro com Guilherme e não pensei em mais nada. Apenas fiquei olhando pela janela, mantendo minha mente vazia, enquanto ele dirigia apressadamente para um lugar seguro.


segunda-feira, 10 de agosto de 2015

O nó


Engulo seco. Jamais pensara dessa maneira e agora estava sendo obrigada a absorver a enorme quantidade de informações que penetrara por meus olhos e ouvidos, percorrendo meus neurônios, cerebelo e todas as coisas complexas de biologia, glote, epiglote, e não-sei-qual glote e então estacionou em minha garganta.
Ora, o nó.
O nó que todos carregamos no peito, aquele que, na tentativa de retirada, tornava-se úlcera. Será o nó o obstáculo à felicidade? Ou será a dor a verdadeira manifestação da mesma? Digo, começo a acreditar que não passe de ilusão. E talvez a existência resuma-se a isso mesmo, talvez a felicidade não exista e talvez o canto dos passarinhos seja em vão. Talvez o sol drene nossas alegrias, talvez sua quase que diária aparição na amplidão destes céus seja apenas uma garantia de que em algum lugar do mundo houvesse sorrisos para serem sequestrados e permutados por raiva, medo e angústia. Ou talvez por nada, talvez apenas pereçamos com aquele vazio no peito. Mas nada importa, o nó se constrói sempre, inabalável.
E assim se faz a rotina da vida, se constrói a doce ilusão que se parte diante dos nossos olhos. A frustração manifesta-se diante dos sonhos inalcançados, diante de tudo o que poderia ter sido e não foi. Ou não poderia, mas eu gostava de pensar que sim, de pensar que eu tinha uma chance, de acreditar que as minhas insistentes tentativas um dia fariam sentido. Eu gostava de pensar que a minha vida podia ser importante, que eu teria meu lugar no mundo. Eu gostava de pensar que algum dia eu seria feliz, que esse nó desapareceria, que eu dormiria uma noite (apenas uma!) sem me preocupar com nada. Eu gostava de me iludir.
Eu gostava, porque assim era possível sentir levemente a sensação que eu tanto busquei em minha vida. Mas desisti. Desisti, e por isso me encontro aqui.
Não.
Me encontro aqui porque é onde deveria estar e me encontro aqui até que um sopro apague minha existência, e então todos os anos, no dia 2 de novembro, receberei vasos com crisântemos coloridos que enfeitarão meu leito, onde estará escrito meu nome e uma data, minha identidade, que logo desaparecerá como uma leve brisa.

sábado, 8 de agosto de 2015

Sonho n°1 - Da aventura e da batalha



Então, nós saímos para uma missão. Gustavo, eu e dois homens, ambos de cabelo comprido e roupas medievais, um deles com parte do cabelo preso para trás.
Precisávamos atravessar um pântano para chegarmos ao nosso destino. Porém, em um pequeno gramado com árvores que antecedia o pântano, fomos atacados por outro homem, de baixa estatura. Ele já pertencera ao nosso grupo antes, mas se rebelara contra nós, e agora nos apontava uma espada.
Os homens do grupo começaram a lutar com ele, mas eles estavam sendo derrotados. Eu então intervi, me colocando entre eles e o inimigo e, com minha espada, fiz um corte em sua perna.
- Maldita! - urrou.
Ele partiu para cima de mim, mas eu defendi os seus golpes, o atingindo novamente em seguida. Em desespero, ele efetuou um ataque equivocado, e eu usei minha espada para partir a dele ao meio.
Furioso, ele continuou a batalha mesmo com a espada quebrada. Em uma tentativa minha de empurrá-lo para trás, ele encontrou uma brecha em minha defesa, deslizando sua arma sobre a minha e apontando-a para meu peito. A lâmina ainda tinha fragmentos pontiagudos que podiam me matar.
- Agora eu peguei você!
Numa manobra rápida, apontei minha lamina para ele e cravei em seu peito ao mesmo tempo em que ele perfurou o meu.
Apenas senti uma dor pungente. Depois disso, não vi mais nada.
Quando dei por mim, já estava em casa, aparentemente recuperada. Soube então que eu o havia matado. Os homens do grupo dormiam, depois de terem me trazido de volta para casa e cuidado de meus ferimentos.
Eu estava feliz por todos estarem bem.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Cartas à Severina I


Bom dia, boa tarde ou boa noite. Por que não boa manhã?
Está uma bela noite lá fora, mas apenas observo pela janela. Queria deitar no verde molhado da grama e admirar a cor do céu, mas a vontade está mofando dentro da última gaveta. Culpada é a tempestade de ontem. Ou mesmo a tempestade de sentimentos que sobe e desce pela garganta, as ondas de ternura.
Lembro-me de quando me habitavas... A cada bolha tu afundavas cada vez mais.
Querida Severina, lembras-te de quando eu me afogava em teus cabelos? Às vezes, quando tomo chá, lembro quando eras parte de mim, antes de partir...
Por que partiste, Severina?
De vez em nunca sinto tua falta. Sinto lhe dizer, e ajoelho-me pedindo perdão às palavras para minha velha amiga, mas a onda de amor tem preenchido o vazio que tu deixaste quando partiste. Talvez fosse tua hora, e liberto: deixo-a partir. Mas, se não se importa, continuarei mandando notícias de tempos em tempos.
Com amor,
Tua velha amiga.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Angelus (parte 2)


O dia pesava como uma rocha em meus ombros. Após outro sonho intenso e tenebroso, eu me fazia as mesmas perguntas que me acompanhavam pela vida inteira. E, dentre elas, uma que me deixava deveras confusa.
Porque pensar na morte dos meus pais não me trazia tristeza?
Esse pensamento deveria me proporcionar sentimentos obscuros, mas ao invés disso, me trazia uma sensação calorosa e agradável, que quase podia curar minhas cicatrizes. É claro que eu gostaria de me lembrar deles, e gostaria ainda mais que eles estivessem vivos. Mas uma parte primitiva em mim me dava consolo, acalento. E assim como tudo o que acontecia dentro de mim, isso era uma coisa que eu não era capaz de explicar.
Depois daquela noite, não tive mais contato com Guilherme e nem com nada que não fosse humano. Alguns dias se passaram, arrastando-se mais monótonos do que deveriam. Evitei ir àquela praia desde então, não por medo, mas porque não queria ocupar minha mente com coisas que pudessem tornar os meus dias ainda piores.
A campainha tocou. Era Daniela. Ela me ligara a semana inteira dizendo que passaria para me ver.
Saí para abrir o portão para ela, que me esperava impacientemente do lado de fora.
- Não faça essa cara. - eu disse, enquanto destrancava o portão e deixava que ela entrasse.
- Que cara quer que eu faça? - ela me deu um abraço, como sempre fazia.
Nós entramos, e Daniela se jogou no meu sofá.
- Quer chá? - perguntei.
- Quero explicações. Estou cansada de falar pra você não me deixar sem notícias suas.
Sentei no sofá ao lado dela.
- Eu mereço mais consideração sabia? Afinal, eu te tirei daquele orfanato quando sua idade te impedia de sair de lá tão fácil.
- Você sabe que meus dias não têm novidades.
- Sim, eu te conheço. Se eu deixasse, você ficaria meses isolada sem nem me ligar. - ela empurrou os óculos para ajustá-los ao rosto - E você ainda não me explicou onde esteve os três dias que sumiu.
- Eu já disse, precisei viajar para resolver uns problemas. - eu não podia prever a reação de Daniela se ela soubesse o que realmente aconteceu.
- Bom, tudo bem. De qualquer forma, eu aceito o chá. - ela sorriu.
Ficamos ali a manhã toda. Daniela era sozinha, mas diferente de mim, era muito ativa, o que fazia com que sempre tivesse novidades a contar.
De fato, ter me tirado do orfanato na minha adolescência me fez considerá-la uma ótima pessoa. Não uma mãe, mas uma irmã mais velha. Embora eu tivesse uma relação distante com ela, Daniela fazia questão de ligações, visitas e demonstrações de sua preocupação. Eu retribuía algumas vezes, mesmo não sendo da minha personalidade, porque sentia que precisava agradecê-la de alguma forma.
Depois de uma conversa quase interminável sobre como tinham sido os seus dias e de um almoço que me ajudara a fazer, Daniela se desculpou por não poder ficar mais e pegou sua bolsa que tinha deixado na estante.
- Ainda tenho muito o que fazer hoje. - ela colocou o cabelo loiro atrás da orelha - Não precisa sair, eu tenho a cópia da chave.
- Se você tem a cópia da chave, por que sempre toca a campainha?
Ela me respondeu com um sorriso e uma piscadela.
- Fique bem. - disse, antes de sair pela porta.
Ouvi a batida do portão e deitei confortavelmente no sofá. Passei alguns minutos olhando para o teto e ouvindo o tic tac do relógio. Minutos que pareceram horas. Olhei para a estante, o pedaço de papel ainda estava lá, ao lado das chaves do portão.
"Não", pensei. "Você não precisa disso".
Afundei minha cabeça na almofada. A casa parecia estar me apertando e sufocando contra as paredes brancas. Relutei o máximo que pude antes de pegar o celular e discar o número que ficara gravado na minha cabeça. Depois de chamar algumas vezes, uma voz fria inconfundível atendeu.
- Alô?
- Guilherme? É Amelie.
- Amelie... - disse, aparentemente surpreso por eu ter ligado - Aconteceu alguma coisa?
- Não. Eu só queria... conversar com você. - falei, ainda hesitante. Não acreditava no que estava fazendo.
- Podemos nos encontrar naquela praia, se você quiser.
Isso definitivamente era melhor do que ficar mais um segundo dentro de casa. Mesmo não tendo certeza se deveria, aceitei o convite.


[...]


As nuvens gélidas cobriam o sol e pintavam todo o céu de gris. Estar naquele lugar não era mais tão emocionante quanto eu gostaria que fosse, mesmo depois de ter sido atacada por uma criatura que até então eu não sabia que existia. Guilherme estava lá, sentado no mesmo banco de concreto onde eu o vira pela primeira vez, e eu senti um certo alívio ao vê-lo novamente. Sentei ao lado dele, sem demonstrar qualquer indício desse alívio.
- E então, o que te fez ligar? - murmurou, dispensando qualquer saudação.
- Eu queria saber mais sobre os demônios.
- Você quer se tornar uma caçadora? - disse, numa ironia quase imperceptível em sua voz estática.
- Quem sabe? - devolvi a ironia.
Ele passou a mão no cabelo para tirá-lo da frente dos olhos e manteve o olhar fixo no mar agitado.
- Bom, eles são de um mundo inferior, como você deve imaginar, e vêm à terra procurar vidas para se alimentar. Quanto mais vida conseguem, mais fortes se tornam. Existem demônios bem mais poderosos que aquele que você viu, mas esses não se dão o trabalho de vir até aqui. Eles têm pouca tolerância à luz do sol, o que significa que podem se expôr à ela, mas por um curto período de tempo. Por isso os mais fracos vêm à noite, e os que têm um pouco mais de poder se apoderam do corpo das pessoas para terem acesso livre a esse mundo.
- Então eles também possuem pessoas?
- Só as de alma fraca, ou aquelas que permitem ser dominadas pelo ódio.
- Há como exorcizá-los?
- Sim. Mas até onde eu sei, a pessoa nunca sai com vida.
Ele olhou para mim. Estava procurando algo, como se estivesse me estudando.
- Como você sabe de tudo isso? - perguntei, tentando ignorar seu olhar avaliativo.
- Uma vida inteira enfrentando essas coisas. Eu tinha que saber, ou já estaria morto.
Guilherme retornou seu olhar ao mar, e eu o observei por alguns segundos, imaginando pelo quê ele já teria passado. Um rosto que não transpassava nenhuma emoção, um jeito de ser aparentemente frio, tudo nele esboçava um passado aterrador no qual eu não me atreveria a tentar visitar.
As poucas vezes que o vi, ele estava sempre tão distante que eu não conseguia decifrar nada além daquilo que era óbvio. Era misterioso, sim. E certamente era solitário também, assim como eu. Estar com ele ali me permitia perceber melhor as coisas, e de uma forma completamente inexplicável fazia com que minhas lembranças deixassem de ser turvas e se tornassem alvas. Ainda confusas, porém alvas. Como se eu estivesse a ponto de recuperá-las.
Pensei se ele não teria mais nada a fazer durante o dia, mas algo me dizia que o seu dia estava sendo tão monótono quanto o meu. Pelo resto da tarde permanecemos ali, absorvendo o horizonte cinza silencioso. Era como se estivéssemos diante de um espelho, um espelho que refletia o nosso interior. Eu não quis dizer mais nada, só quis me afogar naquele espelho, que ao lado de uma pessoa como ele, não parecia tão soturno quanto deveria ser.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Sugestões para atravessar agosto - Resposta a Caio F.


Não é tarefa fácil atravessar o mês da decadência... Podia este ser um mês mais generoso com todos os corações, mas este respondeu-me derrubando minhas lágrimas.
Sugiro, então, que reze, reze muito. Peça por misericórdia. Seja firme e forte como diamante, e principalmente, preencha seu tempo com todo e qualquer tipo de passatempo - assim o tempo passa e não há lugar para as lágrimas correrem.Cante uma canção que lhe acalme o coração, e só deite em sua cama quando o sono realmente estiver lhe derrubando - assim não há lugar para pensamentos ruins. Se quele nó - o maldito nó que não conseguimos desfazer - continuar teimando em apertar-lhe a garganta (e ele vai), tens duas alternativas: ou choras, mas controla-te para que as vozes não te levem a outro caminho; ou então converta-te ao catolicismo e faça uma novena à Nossa Senhora Desatadora dos Nós.
Vai que funciona.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Angelus (parte 1)








A areia que tocava meus pés trazia a paz que eu precisava. Era noite, e a lua minguante iluminava o infinito entre céu e mar. A tranquilidade noturna da praia era um ótimo escapismo para mim, onde eu podia fugir dos fantasmas que minha mente criara, numa busca incessante por minha própria identidade.  
Quem eu era?  
Amelie West. Uma garota comum. Cabelos quase negros, olhos castanhos, 20 anos de idade. Informações superficiais que não respondiam a pergunta. 
E por que minha memória era tão turva? 
Não lembrar de nada antes dos seis anos, inclusive do rosto dos meus pais, que morreram misteriosamente quando eu tinha essa idade, sempre me deixou intrigada.  
Os sonhos sombrios que eu tinha à noite não me assustavam mais como antes, mas ainda tinham o mesmo mistério. Eu queria muito entendê-los, mas as lembranças sobre meu passado eram muito confusas, havia muitas portas dentro da minha mente das quais eu não tinha a chave. As lacunas em minha memória queimavam meu coração, onde só existia uma floresta escura de espinhos guardando algo que nem eu mesma sabia o que era. Talvez minha inocência, ou minha sanidade, na verdade não importava, eu já estava acostumada com tudo isso. 
Deixando meus pensamentos de lado, olhei novamente para o banco de concreto na beira da praia, onde aquele estranho ainda estava sentado. Não sei porque ele chamava minha atenção, daquela distância, tudo o que eu conseguia ver era seu cabelo castanho caindo até um pouco acima do ombro. Ele estava lá desde que eu havia chegado, mas não me olhou uma vez sequer 
Voltei novamente meus olhos para o mar, e pensei ter visto um vulto escuro passar rapidamente a minha frente. Estranhamente, senti uma forte presença. 
"Ando sonhando demais", pensei. De fato, os sonhos estavam cada vez mais constantes e cada vez mais reais. 
Tentei voltar a mergulhar em pensamentos, mas a presença não sumiu. Repentinamente, algo passou por trás de mim com velocidade e fez um corte no meu braço esquerdo. Toquei o sangue que começava a escorrer, aquilo era real. O que estava acontecendo? 
Sem tempo de pensar em mais nada, o vulto me derrubou e me pressionou contra o chão com mãos negras e dedos longos. Meus olhos amedrontaram-se ao ver o que aquilo era. Uma criatura medonha, um demônio negro e fantasmagórico, que exalava um cheiro forte de enxofre. Minha garganta engoliu um grito seco, enquanto me debatia para tentar me soltar e correr. 
Foi quando olhei para seus olhos completamente brancos, e eles prenderam os meus. Eu não conseguia movê-los, era como se estivessem paralisados por um hipnotismo. Uma fraqueza então foi tomando meu corpo, minhas pernas já não tinham mais força para se debater e meus braços desistiram de tentar se soltar daquelas mãos cadavéricas, que me apertavam com cada vez mais força. Ele estava drenando minha vida, se alimentando dela, e eu podia sentir ela se esvair e dar lugar ao vazio da morte. 
Subitamente, um golpe rápido fez com que a criatura tombasse ao chão. Eu mal conseguia manter meus olhos abertos, mas me esforcei para ver. Era aquele estranho. Ele segurou contra a areia e esmagou com uma mão só a cabeça da criatura, que imediatamente se desfez como fumaça. 
O estranho, então, se aproximou de mim. A última coisa que vi foi uma chave antiga que pendia de seu pescoço, antes da escuridão tomar por completo minha visão. 
[...] 
O torpor no qual eu estava imersa começou a se desfazer. Abri meus olhos, eu definitivamente não estava em casa. 
A cama em que eu estava deitada era macia e larga, as paredes a minha volta eram feitas de madeira e a janela sem cortina convidava o sol a entrar. Lembrei-me do que havia acontecido, mas minha mente confusa não sabia definir se fora um sonho ou realidade. Busquei meu braço esquerdo, e meus dedos tocaram um curativo muito bem feito no lugar onde o demônio havia me cortado. Sim, dessa vez tinha sido real. 
Empurrei o lençol branco que me cobria para o lado e tentei apoiar-me com os braços para levantar da cama, mas eu ainda estava fraca. 
- Você não deveria levantar agora. Dormiu por quase três dias. - disse uma voz grave e doce, que meus ouvidos nunca tinham experimentado antes. 
Meus olhos procuraram o dono daquela voz. Ele estava parado na porta do quarto, apoiado no batente. Uma camiseta preta básica e uma calça jeans escura realçavam seu porte físico grande e bem preparado. Seus braços fortes estavam cruzados, e olhos enigmáticos cor de mel olhavam para mim. A chave antiga antiga ainda estava pendurada por um cordão preto em seu pescoço, e refletia a luz que invadia o quarto. Esfreguei os olhos para acostumá-los à claridade. 
- Aquilo... - falei em meio a um suspiro. 
- Sim, era um demônio. 
Deixei que o silêncio dominasse o aposento. Eu estava, de certa forma, aliviada por não ter perdido a lucidez. 
- O que aconteceu naquela praia? 
- Ele tentou drenar sua vida, é o que eles fazem com humanos como nós. Eu o matei, mas você apagou. 
- E então... você me trouxe pra sua casa?  
- Você não queria que eu te deixasse morrer lá, não é? - a voz dele não exprimia qualquer emoção, nada que eu pudesse decifrar ou entender, era um tom único e misterioso, frio, mas muito agradável. 
- Vou te deixar descansar mais um pouco. Levante quando estiver melhor, você precisa comer alguma coisa. - ele deu as costas e sumiu pelo corredor. 
Depois que ele se foi, eu não demorei muito pra levantar daquela cama e me arrastar para fora do quarto, sendo atraída por um cheiro delicioso. Esse cheiro me levou até a cozinha, onde um prato chamativo de comida estava posto à mesa. Aquilo era pra mim? Eu não pensei duas vezes antes de sentar e comer com voracidade, movida pela fome. Olhei para o relógio na parede, seis horas, logo iria escurecer. 
Procurei por ele pela casa, até encontrá-lo jogado no sofá da sala. A TV estava ligada, mas ele não parecia estar prestando atenção nela. 
- Se sente melhor, Amelie? - perguntou ao sentir minha presença. 
- Como você sabe meu nome? 
- Era o que estava nos seus documentos. 
Não questionei o fato de ele ter mexido nas minhas coisas, eu teria feito o mesmo. 
- Sou Guilherme Lowell - disse sem esperar que eu perguntasse. 
- Será que você pode me levar para casa, Guilherme? 
Ele não respondeu de imediato, pareceu estar pensando. 
- Claro, pegue suas coisas. - ele desligou a TV e se levantou do sofá. 
Voltei para o quarto para pegar meus documentos e meu celular, onde eu os tinha visto antes. Ao sairmos de casa, notei fileiras de sal na beirada da porta e das janelas. 
Entramos no seu carro e ele dirigiu até a estrada vazia. Já havia escurecido, e as árvores que cercavam a pista pareciam somente sombras, movimentando-se com o vento. Eu tinha evitado pensar naquilo desde que ele saiu da porta daquele quarto, mas agora eu queria saber. 
- Você é uma espécie de caçador de demônios? 
- Não. São eles quem me perseguem. Sempre me perseguiram. 
- Por quê? 
- Não sei ao certo. - tive a leve impressão de que ele mentiu na última frase. 
Não falei mais nada. Simplesmente observei as árvores escuras passando uma após a outra enquanto o carro avançava. Guilherme acelerou um pouco mais, e diante daquelas árvores, fui pega por uma terrível sensação de estar sendo observada. Estariam eles aqui? Olhei para Guilherme, mas ele não demonstrava nenhuma reação, pelo menos nada que eu pudesse ler. 
A placa que indicava a saída da estrada surgiu à frente, iluminada pelos faróis do carro. 
- Por aqui. - eu indiquei. 
Ele seguiu minhas instruções até chegarmos à minha casa. Parou o carro em frente ao portão branco de ferro, e me olhou sem desligar o motor. 
- Obrigada. - eu disse, abrindo a porta. 
- Espere - ele tirou a carteira do bolso, abriu e retirou dela um pequeno pedaço de papel dobrado - Se precisar de alguma coisa, me procure. - falou ao me entregar. 
Saí do carro e o observei voltar pelo mesmo lugar de onde viemos. Quando ele virou a esquina, eu desdobrei o papel branco, onde um número de telefone estava marcado de caneta azul.