terça-feira, 9 de agosto de 2022

Terras Brancas (parte 12)



Lucas deitou-se sobre o gramado parcialmente branco e fixou os olhos no céu. Ainda suavemente intimidada pela corda pendente, fiz o mesmo. As folhinhas pequenas e estreitas eram esmagadas pelo meu corpo e, em contato com minha pele exposta dos braços, pinicava. Mesmo assim, era agradável sua textura pontilhista e sua calidez, tal qual como o sol tivesse incidido sobre elas durante toda a extensão do dia.
Opostamente a nós, o céu ainda movimentava-se. Dessa vez, tumultuado. Não havia ordem ou sentido ou frequência. As formas de nuvens iam e vinham, se encontravam, fugiam umas das outras. Se mesclavam, dividiam-se. 
- Aquela parece uma formiga gigante – a nostalgia naquela frase dele quase me fazia chorar.
Eu não enxergava nenhuma formiga, nem qualquer animal ou qualquer coisa distinguível. Apenas um desordenado borbulhar de vapor denso de água. Como se o tempo estivesse seguindo e voltando simultaneamente, colidindo-se.
À nossa volta, minha visão periférica captava fios de fumaça azul subindo, e eu os seguia indo em direção ao alto. Era algo consumindo-se, tentando desaparecer. Em certo ponto, misturavam-se com a visão das nuvens e passavam a fazer parte delas. Daquela amálgama.
- A gente tá chegando – Lucas afirmou.
- Onde?
- Em Terras Brancas.
Ele então fechou os olhos, e eu tive a sensação de que ele fosse desaparecer com a fumaça. Segurei sua mão e ele olhou pra mim.
- Por favor, não vá embora. – minha voz era de súplica – Por favor, fica comigo.
Ele sorriu.
-Eu não vou a lugar algum.
Assim que terminou a frase, ele não estava mais ali. Porém, sua presença permanecia nos meus ombros, perto da minha cabeça, nas folhinhas estreitas e nos fios de fumaça.
Ainda assim, eu me senti sozinha.

~

O segundo maço vazio jazia na lixeira da cozinha. A atmosfera pesava como em uma cena de crime. O piso da casa expelia aos olhos de qualquer pessoa manchas de sabão seco, o material da pia embaixo do escorredor de louças acumulava micro organismos viscosos e escuros, a poeira deitava preguiçosa e imóvel sobre as superfícies amadeiradas do quarto. As lâmpadas frias pareciam refletir mais intensamente tudo isso, deixando tudo especialmente incômodo. Poucas coisas naquele dia estavam certas.
- Vendi dois quadros hoje. – minha voz exprimiu uma dúbia sensação de esperançosa frustração. Havia dias que todas as telas que saíam de casa retornavam para ela ao anoitecer. Entretanto, encaminhar duas delas para outras pessoas estava longe de ser o ideal.
Léo estava tão distante que me aparentava ser minúsculo em meio ao silêncio esmagador que se seguiu. Eu quase podia dizer que ele não estava ali, se não fosse pela fumaça que saía de sua boca.
Em momentos como esse, minha mente jogava dezenas de jogos com ela mesma, e em todos eles eu saía a perdedora. Julgada culpada pela cena de crime que englobava a casa, o quarto, nós dois. Culpada por qualquer coisa que o tivesse deixado assim. Eu era a ré, a juíza e a algoz.
Desisti de falar mais e o deixei sozinho. Peguei uma roupa limpa e decidi tomar um banho. Demorei minutos intermináveis, imóvel sob a água quente, antes de sequer tocar no sabonete. O som da água caindo não era o suficiente para diminuir a angústia do silêncio aterrador.
Vapor saiu junto a mim pela porta do banheiro quando eu a abri. Toda a extensão da minha pele estava mergulhada em um enorme sentimento depressivo de consistência densa que inundava até o teto todos os cômodos daquela casa, jorrando intermitentemente do corpo quase vivo de Léo.
Impossível aguentar.
Atravessei toda a densidade até o sofá, onde ele estava sentado. Eu me ajeitei ao lado dele e deitei a cabeça em seu colo. Ele apagava e abandonava a bituca no cinzeiro, inerte.
- Conseguiu marcar? – quebrei novamente a densidade.
Ele me olhou nos olhos pela primeira vez naquela metade do dia, por apenas um segundo, e desviou o olhar para a raiz do meu cabelo.
- Não. Me disseram no posto que eles estavam sem psicólogo.
Léo desembrulhou um terceiro maço que estava em seu bolso, e acendeu outro cigarro.
- Me disseram também que eu preciso de um encaminhamento do clínico geral. E a agenda de consulta está fechada e sem previsão para abrir.
Ergui a mão e passei os dedos por trás de sua orelha. Não era só a negativa do posto de saúde que o estava deixando assim. Eu senti seus olhos mudarem e seu corpo enrijecer desde que vimos aquele casal na praça, enquanto o sol ainda ensaiava para reinar o centro do céu. Aqueles homens se olhavam com paixão vívida, sentados em um dos bancos de madeira. Mesmo que nenhuma das partes de seus corpos se tocassem – eu tinha certeza que por receio dos olhares desconhecidos e das piores possibilidades consideradas – permaneciam entrelaçados por um laranja avermelhado latente e pouco sombreado. 
Léo perdera os seus sorrisos sutis desde essa cena.
- Eu...
Longa pausa.
- ... um dos caras sentados no banco da praça namorou o meu irmão. – ele finalmente revelou, como se estivesse lendo os meus pensamentos através dos meus fios de cabelo.
Uma dor gelada percorreu meu corpo. Lembranças dolorosas pareciam refletir de suas têmporas.
- Você não acha que poderia ser bom... visitá-lo? – tentei.
Mais uma pausa silenciosa.
- Eu não me lembro do meu pai abandonando a gente. – rodeou - Mas ele se lembrava bem, ele estava lá, sentiu tudo. Uma coisa leva à outra. 
Pensei que nada mais ia sair de sua boca.
- Minha mãe não o aceitava como ele era. Acho que ela projetou nele o motivo do meu pai ir embora. Hoje eu vejo tudo isso, e eu posso estar errado, mas não consigo ver de outra forma. – a fumaça saia de sua boca em meio à frase. – Mas na época eu não vi nada disso. Eu achei que foi só minha culpa. Por ter chamado ele de viado.
Meus dedos se entrelaçavam nos pelos de sua barba, que já há algum tempo bagunçava-se em pelos rebeldes não aparados. Léo estremecia num desejo de chorar que não era atendido pois faltavam lágrimas – elas já haviam sido abundantes um dia, e hoje só restava cansaço. 
- Então não, não vai ser bom visitá-lo. – concluiu. – Assim como, de qualquer maneira, não vai ser bom fazer essa terapia que nem existe pra mim. Minha mãe já dizia: “Meu filho não é louco pra ter que ir nesses médicos.”
Mágoa cor de chumbo gotejou dentro de mim. Era muito difícil ter de ouvir sua desistência depois de todo o esforço que tive para convencê-lo a procurar ajuda. Muito difícil lidar com esse orgulho inútil que ele tinha. Eu estava cansada.
Levantei-me e peguei meu celular e chaves.
- Onde você vai?
Pensei em dizer um milhão de coisas. Pensei em dizer que a culpa não era dele. Que era culpa dele. Que o seu orgulho era uma tentativa falha de mascarar seu medo. Que poderíamos pagar um psicólogo, mesmo que o dinheiro mal desse para pagar a conta de luz, mas não importava, daríamos um jeito. Que eu não aguentava mais olhar pra ele e o enxergar com dez anos de idade, olhando paralisado para aquela porra de fresta da porta do quarto. Que ele nunca iria melhorar. Que eu nunca iria melhorar. Que eu também já havia perdido uma pessoa importante pra mim. Que nós... nós nunca iríamos melhorar.
- Eu vou respirar e já volto – eu disse por fim.
- Por favor, não vá embora.
A frase me atingiu como uma faca no estômago. Segurando as lágrimas, virei as costas e bati a porta da frente.