segunda-feira, 22 de abril de 2019

Terras Brancas (parte 3)



Recostei sobre algo macio e aerado. Deitada, peguei com uma das mãos a matéria da qual era feita o chão. Só então abri meus olhos. Areia fina e molhada escorria pelos meus dedos e flutuava no ambiente líquido. Tudo muito transparente, como luz do sol em águas cristalinas. Imersa, eu ainda respirava.
Levantei-me. Comecei a caminhar em meio à resistência atenuada da água. Não era capaz de ver a superfície acima de mim. Mesmo havendo uma luz forte,  que despontava dela e iluminava tudo.
Andei por alguns minutos, até começar a distinguir objetos flutuantes que chegavam até mim. Uma escrivaninha caía, inclinada. Suas gavetas estavam bem fechadas, e os objetos que originalmente deveriam estar em cima dela a acompanhavam num mesmo movimento. Canetas, lápis, papéis e um porta-retrato, que continha uma foto desgastada de família. Um pai, uma mãe e uma menininha diante de um bolo cor de rosa cheio de velinhas vermelhas apagadas. A menininha tentava pegar o bolo, com a mão esticada. O pai e a mãe olhavam para a câmera, mas o desgaste da foto prejudicava a ilustração de seus rostos.
Duas chaves pretas presas por uma argola afundavam logo à frente dos meus olhos. Logo em seguida, caíam travesseiros e um lençol bege esvoaçante. Caíam roupas femininas e garrafas de vidro. Caíam flores coloridas distorcidas e telas de pintura em branco. Caía uma corda com vários nós em sua extensão.
Em frente à tudo isso, avistei, virada para a esquerda, uma pia de banheiro presa ao chão submerso de areia assentada, com uma torneira prateada brilhante e um espelho. Um espelho retangular sem molduras.
Por que eu tinha medo de olhar no espelho?
Permaneci caminhando lentamente mesmo assim. Enquanto passava pela pia, um ruído de vidro trincado foi emitido do espelho. Olhei automaticamente para ele, assustada com o som.
O vidro do espelho permanecia inteiro, sólido, plano. Entretanto, através dele, no reflexo que ele desenhava, uma obra modernista era exposta, retratando o rosto de uma moça jovem. O rosto era montado por vários cacos de vidro sobrepostos, irregulares, trincados. Os olhos dela eram de um escuro profundo, sua pele bronzeada era inocente. Os lábios estavam relaxados e retos, em uma expressão curiosa, assustada e triste. Cada fragmento montando algo que não era regular. Algo inconstante e quebrado. Uma face fragmentada de várias verdades e várias mentiras.
Pisquei meus olhos, a moça piscou de volta.
Era eu mesma.
Dentro da pia, um líquido vermelho estava escorrido, pintando a louça branca. O ralo engolia-o lentamente.
Recompondo-me, olhei para frente e continuei andando, deixando o espelho para trás, mas a moça fragmentada, não.
Em pouco tempo, cheguei até uma porta de madeira marrom escura, emoldurada, sem paredes em volta, presa ao chão de areia. A maçaneta era preta e em formato de L. Olhei para trás, os objetos que afundavam já pereciam todos na areia molhada, desfalecidos. Virei-me novamente para a porta e, com um certo receio, segurei na maçaneta e a desci, abrindo-a. Empurrei a porta, que se movimentou em direção à abertura, revelando um chão empoeirado e uma parede cor de vinho do lado oposto.
Era impossível ignorar aqueles objetos aparentemente aleatórios. Ainda pensando neles, e segurando todos os meus fragmentos, dei um passo adentro.

~

A janela aberta do quarto andar sugava a fumaça para além do recinto, onde a noite sem estrelas era iluminada por pontos de luz artificial amarela e musicalizada pelos motores dos carros que passavam insistentes sobre o viaduto. Sons de vozes masculinas agressivas digladiando rebatiam nas paredes grafitadas sob o viaduto e chegavam ecoados até o apartamento. Léo estava de pé do lado esquerdo da janela, recostado à parede, nu. O cigarro na mão direita ao lado do corpo era consumido lentamente. Eu ainda permanecia deitada, com o lençol bege jogado para o lado na cama, também nua, analisando as paredes cor de vinho, que davam ao quarto uma latente aparência sexual e prolongavam efetivamente a atmosfera pós-sexo. Em meio ao silêncio - que somente era quebrado pelos sons externos da cidade noturna -, senti seu olhar em mim, mas evitei olhar de volta.
-Ah sim - disse, finamente, depois de uma tragada - Quero te desejar os parabéns.
-Pelo quê?
-Uma e quinze da manhã. Não é seu aniversário?
-Quem te falou isso?
-Você mesma, Diane.
Tentei lembrar por alguns segundos.
-Semana passada, no Mantis.
-Claro. - arrastei a palavra, me dando conta do porquê da falta de memória. - Malditas luzes azuis piscantes.
-Sim, certamente as luzes te fazem esquecer muitas coisas e te dão uma senhora ressaca no dia seguinte.
-Vai se foder.
Ele riu. Deu uma outra tragada em meio a um sorriso, e depois continuou me olhando.
-Obrigada - eu acabei por dizer.
-Quantos anos mesmo?
-Vinte.
-E não vai fazer uma festa? Adoraria comer um bolo.
-Já estou fazendo. No inferno. Chamei até meus pais.
Ele ergueu as duas sobrancelhas em reação à minha ironia mórbida, numa expressão incrédula.
-Eu não sei o que você odeia mais: aniversários, pessoas ou seus pais.
-Odeio muitas coisas na vida.
-Espero que não odeie a mim. - ele deu mais uma tragada, e soltou devagar a fumaça.
Expeli o ar para fora em um pseudo riso, e balancei a cabeça horizontalmente.
-Não, eu não odeio você.
Mantivemos o silêncio por alguns longos segundos, antes que ele desencostasse da parede e apagasse a bituca contra o batente da janela.
-Mas eu sei de algo que você gosta. Muito.
Olhei diretamente para ele. Para sua pele morena e seu corpo perfeitamente proporcional. Para o seu rosto achatado, seu nariz largo e os lábios médios em meio à barba por fazer, ligada pelas costeletas ao cabelo de mesmo comprimento. Olhei para seus olhos pretos, que me olhavam com ar de predação.
Dei um riso malicioso, satisfeito e convidativo.
-Você é um filho da mãe, Léo.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Terras Brancas (parte 2)



Árvores grandiosas erguiam-se até quase tocar o céu. Seus troncos largos e grossos eram envolvidos por líquens azulados e subiam, dividindo-se em inúmeros galhos, que por sua vez subdividiam-se de novo e de novo, até suas folhas encontrarem-se com as folhas da árvore vizinha e ligarem-se num extenso telhado natural.
Encoberta por aquele teto, cada parte do meu ser se fazia tão leve que quase começavam a flutuar novamente - uma ideia tentadora, por sinal, mesmo que tivéssemos içado voo por um tempo difícil de mensurar, antes de pousar no meio de uma floresta além dos morros e muito, muito além da casinha. O sol não era completamente bloqueado pelas folhas, e pincelava todo o cenário com manchas de luz. Respirei fundo, tentando manter os pés no chão.
Lucas caminhava do meu lado, calmamente. De repente, parou e me olhou. Eu parei também. Seus olhos eram desafiadores e se ligavam a um sorriso competitivo, estranhamente adulto. Em apenas dois segundos, começou a correr, adentrando à floresta azulada.
-Espera aí! - tentei.
Antes que ele pudesse sumir de minha vista, comecei a segui-lo, correndo também. Corria com afinco, esbarrando em cada galhinho, folha e arbusto que eu cruzava e deixando linhas de luz azul passarem rapidamente pelos cantos dos meus olhos. A floresta toda pulsava, brilhante e, a cada passada, mais azul. Tão azul que não se podia mais definir se era dia ou noite. Eu corria e corria. Cada líquen mexendo-se vagarosamente nas superfícies dos troncos. Viscosos, como óleo em água. Corria. De quando em vez, avistava de relance os cabelos pretos passando velozes em meio às folhas anis, mas era difícil distingui-los das sombras que se formavam. A floresta não só pulsava. A floresta movia-se, rastejava pelos meus sentidos, ondulava.
-Lucas!
Sem resposta, tentava proteger o rosto dos galhos abundantes que tornavam-se mais e mais densos. Quase não se podia ver nada. Apenas um grande anil denso, onde eu densamente corria.
No lugar dos cabelos pretos espertos, o que fugia agora eram penas brancas, em um contraste único com as sombras e aquele azul todo. As penas brancas esvoaçavam, tentando levantar voo. Eram asas. Asas de um cisne que parecia estar desfalecendo enquanto fugia.
Subitamente, o chão sob meus pés mudou sua consistência. A terra mole engoliu minhas pernas até o joelho.
-Lucas!
A lama tornava-se líquida a cada movimento meu, na tentativa de continuar correndo. Líquida, a ponto de fazer meu corpo submergir e afundar. Óleo em água.
Eu afundava, com as costas para o fundo e o rosto para a floresta, cuja luz anil ainda transpassava o líquido transparente - que não era mais lama. A luz chegava aos meus olhos que lentamente se fechavam. Não por falta de ar, pois ainda respirava. Dentro da atmosfera líquida de começo azul e de fim negro, ainda respirava. Meus olhos fechavam porque eu tinha medo. De alguma coisa.
Eu tinha medo.

~

-Eu... Queria te dar uma coisa. - Lucas disse-me enquanto pintávamos um desenho de um bosque cheio de animais. A aula de artes sempre foi uma das minhas favoritas. Preferia ainda quando as atividades eram individuais, mas fazer dupla com o Lucas não era tão ruim.
-O que é?
-É um presente. - virou-se para abrir sua mochila. Dela, ele tirou uma caixinha de papelão branco, estampado com florzinhas verde-claras, e entregou-me, contente. - Abre depois, ta?
-Ta bom. - sorri.
Continuamos pintando o desenho, enquanto conversávamos sobre desenhos animados e escolhíamos personagens para representarmos.
-Quando chegar o recreio, eu vou ser a Vampira. - eu disse.
-Eu vou ser o Ciclope. - ajustou os óculos enquanto falava.
A aula de artes e em seguida a de matemática correram rapidamente, e logo fomos liberados para o lanche. Eu peguei a caixinha e corri para o banheiro das meninas, alheia a todas as outras crianças, que sentavam no refeitório e retiravam seus pacotinhos de coisas industrializadas de dentro de suas lancheiras. Dentro de uma das cabines do banheiro, depois de trancar a porta, puxei o adesivo transparente que lacrava a tampa e abri a caixinha devagar. Retirei de dentro dela um pequeno cisne de cristal, que nadava sobre um espelho de apoio, ornamentado com outro espelho traseiro - como um encosto de uma cadeira -, que tinha bordas regulares de pontas curvas. Transparente, brilhante. O cisne parecia que a qualquer momento sairia voando dali.
Era lindo.
Eu abri um sorriso enorme, guardando-o novamente dentro da caixinha e a caixinha dentro do bolso da blusa e, saindo dali.
Encontrei Lucas indo até o palco, localizado na extremidade norte do pátio, onde eventualmente ocorriam apresentações educativas musicais e de teatro. Corri em sua direção.
- Obrigada! Eu amei!
Ele sorriu para mim, radiante.
Depois disso, era difícil dizer que eu não tinha certeza.
Eu havia planejado a semana inteira, porém agora eu estava certa de que realmente iria fazer.
O resto do dia correu mais devagar do que deveria, mas enfim a última aula estava acabando e meu coraçãozinho acelerava a cada minuto que passava. Eu balançava as pernas, irrequieta, sentada na cadeira esperando pelo sinal. Meus colegas de sala conversavam entre si, o som balburdiado de suas vozes entravam como formiguinhas do meu cérebro. Todo o barulho, porém, foi interrompido por um fatídico e esperado silvo, alto e longo.
Levantei-me rapidamente e de imediato, colocando a mochila nas costas e praticamente correndo até  Lucas.
- Ei... eu preciso te falar uma coisa. - disse a ele, discretamente.
- Pode falar, o que é? - ele terminava de colocar a mochila.
- Não dá pra falar aqui, é um segredo.
Esperei que todos da sala saíssem e só a professora restasse, arrumando papéis e materiais, e o puxei pela mão pelo corredor das salas da terceira série. Depois de passar por todas as portas, encontrava-se uma escada que descia à direita, levando ao térreo. Ainda depois dela, e finalizando o corredor, havia um muro baixo acompanhando um outro corredor que virava à direita e seguia até a sala de vídeo do outro bloco. Eu abaixei atrás do murinho e o puxei para abaixar também.
- O que foi? Fala. - estava meio sério a essa altura.
Um frio enorme na barriga se intensificou. Meu coração batia muito rápido. Oh, eu estava tão nervosa! Meus olhos seguiam timidamente uma única linha vermelha que atravessava seu casaco azul escuro, sobreposta apenas pelo zíper grosso, tentando ignorar o suor nas minhas mãos que começavam a tremelicar. Ainda em silêncio, os olhos levantaram até sua expressão interrogativa de espera.
Em um instante de coragem, juntei minhas forças e me inclinei em direção ao seu rosto de olhos fechados. Meus lábios tocaram sua bochecha. Era a primeira vez que eu beijava um menino.
Em câmera lenta, intensa e inocentemente, aquele toque tão próximo fazia alusão às colas e glitters que usávamos na aula de artes. Como quando passávamos uma camada fina de cola - com dificuldade, pois muitas vezes exagerávamos e o papel ficava pesado, ou melecávamos as mãos tentando ser linear - e salpicávamos aquelas partículas brilhantes coloridas no papel, de forma que elas nunca mais sairiam dali. Talvez se pudesse dizer que elas grudariam no papel de qualquer forma, por imaginações nanômicas do sentimento de uma criança, e não quisessem mais sair. Pois todos sabiam que glitters amavam papéis.
E todos sabiam que eu amava Lucas.
Quando o tempo começou a correr novamente, e eu me vi com os lábios ainda em sua bochecha, os movimentos circulares do meu estômago e a minha timidez ordenaram às minhas pernas a irem embora correndo.
Afastei-me rapidamente e em silêncio. Levantei-me e dei a volta pelo muro, descendo as escadas apressadamente. Ainda olhei uma última vez para trás. Ele observava-me descer, por trás do muro. Estava paralisado, com uma expressão de surpresa - e eu podia arriscar dizer que era de felicidade também. 
Saí da escola e corri para casa, que ficava a três quarteirões de distância. Segurava as alças da mochila enquanto saltitava mentalmente pela calçada.Um sorriso enorme se abria no rosto. Eu realmente havia feito aquilo?
Cheguei no portão de casa e vi a fina fresta entre o ferro e o batente. Puxei pela barra enferrujada, cuja superfície de tinta branca permanecia descascando a cada dia, e o portão destrancado se deslocou sem resistência para fora. O portão destrancado já era típico, eu sabia o que estava além dele.
Antes de entrar, já ouvi os comuns gritos. Passei com cautela pela porta da sala e corri em silêncio direto para o meu quarto, no andar de cima. Eu não gostava quando o papai usava aquela voz assustadora com a mamãe. Eu tinha medo. Mamãe gritava no começo, mas depois se calava - acho que tinha medo também.
Eu tranquei a porta do quarto e sentei atrás dela, abraçando os joelhos enquanto tentava não ouvir os barulhos na cozinha. Mesmo assim, ouvi dois ou três copos espatifando no chão, os vidros fazendo um ruído estridente contra o piso. Em seguida, um barulho estalado, forte e dolorido de uma mão aberta em pele exposta, seguido de um imediato som involuntário de voz feminina ejetada pelo impacto de um golpe, e logo após isso, os objetos sendo derrubados do balcão - provavelmente porque mamãe tentou segurar nele, mas caiu no chão. Ouvi, então, o mesmo barulho estalado muitas vezes consecutivas, e entre eles, pedidos desesperados, abafados e engolidos pelo choro da mamãe. Ela implorava para que ele parasse.
Por que tinha que ser assim? Por que isso sempre se repetia, desde que eu me lembrava? Por que os momentos tranquilos e felizes nunca duravam muito e se tornavam cada vez mais escassos? Por que uma culpa recaía sobre mim, por acreditar fazer os dois brigarem daquele jeito?
Tão culpada...
Abri minha mochila e de lá peguei a caixinha de florzinhas verdes. Retirei dela o cisne de cristal e o olhei através das lágrimas que tornavam minha visão completamente embaçada. Os tapas então cessaram, só restando um fino choramingo na cozinha. Ouvi então papai subindo as escadas. Segurei com força o cisne. A cada passo lento dele no corredor, meu medo aumentava. Senti sua presença esmagadora por trás da porta.
Uma batida forte.
Fechei meus olhos e segurei o choro.
Outra batida mais forte.
Abracei o pequeno cisne, encostando-o em meu peito.
Terceira batida. Ele iria derrubar a porta se eu mesma não abrisse.
Mas eu não ia abrir.