terça-feira, 25 de outubro de 2016

Insinuando (+18)

Outro "oi" insinuante. Que insinua uma mão na cintura.
Nossa vida sempre foi repleta de cumprimentos. Costumamos sempre nos perder nos ois e tchaus do dia a dia.
Aquele dia, ele me buscou. Cumprimentou-me com aquele beijo rápido e casual, motivo pelo qual me encolhi no banco. Liguei o rádio para quebrar o silêncio, mas a trilha sonora parecia aumentar o abismo entre nós. Ele pareceu notar, por isso fez o arriscado movimento de repousar as mãos em minha coxa.
Aquele era o primeiro e verdadeiro oi.
Sua mão quente arrepiou-me o suficiente para me manter ocupada até que o carro finalmente parasse. Dirigimo-nos ao quarto, e ele logo abaixou as cortinas por conta do reflexo do sol, que atrapalhava. Sem dizer uma palavra, ele deixou o ambiente, momento em que eu realmente senti o calor que fazia naquele momento e que notei que o ventilador, mesmo ligado, não dava conta. Decidi, então, ficar mais confortável, livrando-me do shorts apertado. A calcinha era mais leve, preta, de redinha. Inclinei-me sobre a mesa do computador, buscando algo para me distrair, repousando a mão na cintura - outro oi insinuante, que se estendeu até a entrada dele no quarto. Ele passou as mãos em minhas costas, abraçando-me por trás, como de costume. Seu quadril encaixou-se no meu, momento em que eu, tímida, ruborizei diante do volume e da rigidez que dele emanava. Ele beijou meu pescoço, sugando minha pele levemente, percorrendo o comprimento até a ponta dos meus ombros. Em resposta, eu pressionava seu corpo contra o meu, causando nele a resposta de procurar, em meio aos suspiros, minha boca. Habilmente, ele retirou todo e qualquer pedaço de tecido que resguardava qualquer centímetro do meu corpo e interrompeu-me quando eu faria o mesmo, automaticamente.
Ele me empurrou na cama. Apoiei-me da única forma possível: de quatro. Ele segura com as mãos meus cabelos, com força, sussurrando-me ao pé do ouvido que se eu não ficasse quieta, ele me castigaria. Isso, claro, foi o suficiente para me fazer pingar - ele sabe que eu sou fã de ordens bem dadas. Ele me puxava com força o suficiente para que eu não pudesse me mexer e eu sentia sua língua lambendo cada centímetro dos delicados lábios rosados e molhados, enlouquecendo-me. Eu tremia e praticamente implorava para que ele me desse mais... E ele deu.
Senti na força que ele segurava meu quadril para ir o mais fundo possível e, em seu olhar, a satisfação. E por mais forte que aquilo fosse, eu só conseguia dizer que eu queria mais. Eu não precisava dizer - ele sabia -, mas a falta de controle me consumia. Pedi que ele me puxasse com mais força meus cabelos, e eu tremia, involuntariamente, meu coração acelerava e eu presa no loop de sensações.
E, então, me lembrei do abismo entre nós, mais cedo. Eu queria aquele abismo, agora. Queria, pois o tempo passava mais lentamente.
Queria.
Mas tudo acabou como começou, intenso e repentino, como um furacão sem previsão. Ele acariciava meus cabelos, beijando-me a testa. Depois, suas mãos contornavam todo o meu corpo, chegando até os joelhos e voltando. Voltei-me aos olhos dele. Aqueles olhos.
Os olhos de ressaca, que tanto me atraíam para dentro. Os olhos feito ressaca do mar, que puxam e repuxam e que, por mais que você tente, sabe que jamais conseguirá sair.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Terras Brancas (parte 1)



Um som longínquo de uma melodia ressoava. Era, decerto, familiar. Ao mesmo tempo, desconhecida.
Abri meu olhos. A luz ofuscou-os por alguns segundos, lentamente revelando o local à minha volta. Uma clareira. Verdejante, quieta, ácida clareira. Um leve frescor alaranjado e um banho de luz amarelo limão, agradavelmente dançantes. Apoiei as mãos na terra quente. Meus pés descalços, apesar de tocarem a terra, estavam limpos. Limpos como a consciência vazia que guiava meus sentidos. Vazia, como minha memória, como eu mesma.
Tentei buscar qualquer coisa em minha mente, sem sucesso. Apenas um grande, profundo e absoluto nada.
As árvores brilhavam em um verde cintilante intenso. Em meio à elas, eu permanecia. Sentada no chão cheio de folhas, avistei um coelho cinza. A criatura me olhou com olhos marrom acinzentados convidativos e, saltitando, adentrou na floresta. Meu instinto o resolveu seguir.
O coelho me levou por um caminho confuso. Percorreu a floresta, perpassando o total equilíbrio da natureza, onde cada musgo cresce sob cada erva que cresce sob cada arbusto que cresce sob cada árvore, em uma corrente alternada de sombras e sol, onde as folhas deglutem compartilhada fotossíntese, e onde as raízes em compartilhada terra têm sua morada. Saltitou, parecendo compreender toda a complexidade da vida, até uma outra clareira, podendo-se dizer maior que a anterior, onde uma pequena casinha erguia-se sob a luz branda do sol. Era feita de troncos de árvore retorcidos, raízes e vidro, com gramíneas regulares que a cercavam. Uma única porta no centro estava aberta, o coelho entrou por ela.
Em frente à casa, uma pequena tábua de madeira era segurada por duas cordas fibrosas penduradas em um galho forte. Nela, uma criança se balançava para frente e para trás. Seus pés descalços empurravam a grama para impulsionar mais a balança com objetivo convicto de alcançar o teto celeste que nos cobria, corajosamente determinada. O vento da resistência causado pelo movimento fazia dançar os cabelos negros curtos e levemente cacheados do garoto, que aparentava ter seus 10 anos, fazendo assim aparecer seus cílios espessos e olhos escuros radiantes. Aproximei-me, sem qualquer sinal da ciência do menino sobre minha presença.
-Oi. - foi o que eu disse.
-Oi! - os olhos radiantes foram direcionados à mim, a palavra saiu através de um sorriso.
-Qual o seu nome?
-Lucas - ele disse animadamente.
-Lucas, você sabe dizer que lugar é esse?
-Cê não sabe, moça? - diminuiu lentamente a velocidade da balança, até parar, e me olhou nos olhos atentamente.
-Eu não consigo me lembrar de nada.
O garoto pareceu irradiar alegria, pulou da balança e veio. Sua mão segurou na minha, da forma mais espontânea que se possa fazer possível.
-Vem!
Deixei que sua mão me puxasse e levasse, com a sutileza e a alegria mais puras, até o interior da casa. Passamos pela porta aberta, por onde também entrara o coelho, pisando na superfície amadeirada de tábuas do assoalho. Adentramos a um belo interior iluminadamente amarronzado, com um sofá cor de creme ao lado direito, e uma cozinha com uma mesa e cadeiras de madeira rústica à esquerda. Não havia divisões de cômodos. O ambiente trazia a mim uma calorosa sensação de lar, entrando sinuosamente em minhas vias aéreas como uma essência luminosa e volátil. Na parede em frente à porta, abria-se uma janela, cujas arestas eram quase puxadas para dentro de si mesma por ondas transparentes quase invisíveis - e talvez fossem mesmo -, espiralando-se infinitamente, em um branco esverdeado extenso. Nitidamente, a janela era o destino.
-Pode olhar - a indicação veio não como uma permissão, mas como um despertar.
Aproximei-me da abertura, que, a cada piscar dos meus olhos, transmutava-se em uma pintura surrealista magnética. Além de suas molduras, um precipício convidava-me a mergulhar em sua imensidão ocre e verde escura dos morros que seguiam à frente. Um fino riacho pálido corria no pé do cobertor de árvores longínquas e minúsculas - definitivamente, muito diferente da verdejante clareira original que se esperava ver rodeando a casinha. Nesse momento, estaria a pequena casa, na realidade -se eu resolvesse confiar nos meus sentidos -, elevada a muitos e muitos metros de altura, construída no alto do precipício mais alto, ou simplesmente tendo nascido com ele, em sua estrutura primordial. Solitária.
Aproximei-me mais. Apoiei no parapeito. Era gigante aquele mundo depositado dentro da janela. Os ventos tinham sua origem tão distante quanto seu destino, e escolhiam parar no meio de seu caminho para acariciar as pálpebras dos meus olhos e minhas maçãs do rosto.
Olhei para baixo. Uma infinidade de metros caíam abaixo daquela abertura quadrada. Meu coração pulsava em meus tímpanos, como se dissesse...
-Pula - disse Lucas com naturalidade.
-O quê?
-Não precisa ter medo, não pensa em nada, só pula!
Eu poderia dizer que não iria pular. Poderia dizer que ele estava louco se esperasse que eu simplesmente pulasse pela janela. Porém, o que era aquilo? O que era aquela janela, que se movimentava em ondas assimétricas pré-lisérgicas? O que era aquela casinha, que ora habitava em uma clareira melodiosa, ora fazia parte da imensidão de um precipício? E esse chamado que perpassava os átrios e os ventrículos, quase ensurdecedor, que fazia-me realmente querer pular?
O garoto atravessou por mim e subiu no parapeito, sentando tranquilamente. Ele me olhou determinado. Eu sabia que ele iria pular também.
Por que eu simplesmente não conseguia resistir à vontade incontrolável de saltar para dentro daquele mundo gigante?
Eu sentei ao seu lado no parapeito. Quase podia dizer que não era eu mesma que estava controlando meus movimentos. A abertura tinha espaço suficiente para que nós dois erguêssemos as pernas, virássemos e as colocasse penduradas para o lado de fora. Ele pegou em minha mão trêmula - elas tremiam não de medo, mas de ansiedade.
Algo em mim resolveu seguir o que o menino disse. "Não pense, não pense, não pense." repeti a mim mesma. Então, não pensei em nada.
Deixei meu corpo ser levado pela gravidade. Lucas veio comigo. Deixei a casinha para trás, entrando no precipício e caindo com rapidez. O vento cortava o espaço entre meus cabelos, trazendo a sensação intensa da queda livre, e podia jurar que as árvores minúsculas permaneciam igualmente minúsculas, sem se aproximar a cada metro que meu corpo deixava para trás. Lucas deu um grito de extrema diversão. Meu peito estava prestes a explodir por uma intensidade que quase me levava a delirar. Meu coração satisfeito e louco debatia-se.
Quando percebi, Lucas estava dando voltas no ar ao meu redor. Voando.
-Vem!
Ele veio como uma andorinha e segurou meu braço, puxando-me para frente, lentamente fazendo uma curva pela força resultante da queda e soltando-me logo em seguida. Impulsionei-me instintivamente no ar, para frente e para cima. E então, eu estava voando também. Simples como andar para frente. Voando sobre as árvores e o riacho e os morros e os ventos.
Era maravilhoso!
Lucas veio voando ao meu lado, me seguindo. Eu olhei pra ele, e um riso de completa e pura felicidade escapou pela minha garganta.
Seria um sonho? Do qual eu iria acordar antes de descobrir onde poderíamos chegar se apostássemos uma corrida?
Fosse como fosse, preferia deitar meu espírito àquele corpo flutuante e "não pensar em nada". Enquanto pudesse desfrutar de todo aquele céu esverdeado, eu estaria bem.

~

O sinal tocou. Todos nós levantamos das carteiras e corremos alegres para o recreio.
-Devagar, crianças! - disse a professora Alba.
Dona de um carisma sem igual, uma mulher jovem permanecia parada, de costas para o quadro negro, olhando cada criaturinha que saia saltitando pela porta. Sorria, com a mão esquerda no bolso de trás da calça jeans e com a direita ajeitando o cabelo curto, curto a ponto de exibir as orelhas que sempre penduravam brincos diferentes a cada dia.Tinha um jeito de lidar conosco e de ensinar admirável e colorido. Uma exímia professora da terceira série. A melhor que eu teria em toda a vida escolar.
Todas as crianças da sala a amavam. Inclusive eu.
Corri pelo corredor e pelo pátio da escola, desviando dos avisos de "não corra" dos inspetores enfadonhos, até chegar ao ambiente externo, onde um formigueiro de crianças se emaranhava sobre a grama verde do parquinho. Enquanto as crianças esperavam sua vez, se amontoando e revezando uma por uma nas gangorras e balanças, eu sentei-me na grama, um pouco afastada de tudo. Minhas meias compridas de arco-iris combinavam com o uniforme formado por um tênis e short-saia azul-marinhos e uma camiseta branca com o emblema da escola na frente e atrás.
Ficar sentada ali, observando tudo de longe, era prazeroso e confortável.
-Por que você não vem brincar, Diane? - ouvi uma voz dizer de repente.
Olhei para cima. O garoto estava em pé ao meu lado bloqueando a luz do sol. Sentou-se ao meu lado na grama. Seus cílios espessos piscaram alegres atrás dos óculos de bordas azuis, esperando que eu respondesse.
Embora tivéssemos estudado a segunda série em salas separadas - maldita divisão de classes -, era meu amigo mais próximo. Esperava que ele soubesse a resposta. Talvez soubesse, mas insistia na tentativa mesmo assim.
-Eu não me sinto bem no meio de todo mundo, Lucas.
-Eu sei. Mas você não pode ficar longe de todo mundo pra sempre. - ele deu dois puxões no meu braço de leve - Vamos brincar na balança?
Lucas mantinha uma expressão animada. Olhei para toda aquela criançada que fazia um barulho incessante, tumultuando-se na fila de cada brinquedo. Não tive coragem.
-Amanhã nós vamos, ta? - eu disse, deitando na grama.
Comecei a observar as nuvens que iam e vinham. Ele fez o mesmo, deitando-se do meu lado.
Através da imaginação forte que uma criança de oito anos alberga, fui vendo naquelas nuvens uma corrida disputada entre um elefante, uma formiga gigante e uma penteadeira com pernas. Logo depois, vários animais feitos de algodão dançavam, celebrando uma festa no céu. Eles convidavam-me a me juntar a eles.
-Qual o seu maior sonho? - eu o perguntei.
Ele continuou por alguns segundos concentrado nas nuvens antes de me responder.
-Meu sonho é crescer. Poder fazer tudo o que eu quiser.
-Minha mãe diz que crescer é ruim. Que a gente nunca mais vai brincar.
-Eu não acredito nisso. Eu vou brincar até ficar velho, vou ser um adulto legal. Adultos são sem graça porque não brincam.
Eu arrancava lentamente a grama com minhas mãos, pedacinho por pedacinho, enquanto o escutava atenta.
-E qual o seu maior sonho, Diane?
Virei minha cabeça para o lado para olhá-lo diretamente. Lucas permanecia me fitando o tempo todo. Sorri para ele, voltando meu olhar às nuvens.
-Meu maior sonho...
Fechei os olhos para sentir a brisa leve que vinha do céu.
-... É voar.


quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Sonho nº. 11 - Evaporar pt. 3

Fazia muito frio e a casa estava bem escura, como naqueles dias em que tudo fica meio marrom e cinza e só se vê o ar quente condensando quando você fala, ou a fumaça do chá.
Ele estava lá, com aqueles olhos azuis brilhantes e aquele sorriso malicioso. Vestia uma blusa cinza esportiva e luvas. Era estranho vê-lo com qualquer roupa que não fosse seu solene terno.
- Você aqui!
Eu abri um largo sorriso, mal podia acreditar. Era estranho como ele só se dirigia a mim quando estávamos sozinhos... Tantas vezes o vi no corredor, ele me lançava olhares e eu os retribuía, porque ambos somos iguais: não gostamos de dar bom dia. Mas nunca uma só palavra. O orgulho de seu posto era maior.
Mas no fundo eu sabia que ele gostava de mim, mesmo que só demonstrasse isso esporadicamente. Fiquei sabendo que ele me citou como exemplo outro dia, mas ele jamais mencionara meu nome - talvez por medo de me reconhecerem (e mal sabe que o fizeram...)
- Quanto tempo! Como você está? - retribuí com um abraço apertado.
Ele me olhou e ajeitou os cabelos com as costas da mão, apoiando o mindinho nos fios cheios de gel. E que saudade que eu tinha disso.
Conversamos por algum tempo, mas eu notei que seus olhos não paravam nos meus, insistentemente fixados para baixo. Eu contava a ele sobre meus projetos, e então ele me interrompeu, com sua voz imperiosa:
- Será que você pode puxar seu zíper?
Eu abaixei os olhos, notei que o zíper de minha blusa tinha abaixado levemente. O decote sutil desenhava-me um coração no colo. 
Ruborizada, toquei no pingente e comecei a puxá-lo para cima. Sua mão pesada e quente me tocou, puxando-o para baixo.
Meu coração acelerou e entalou em minha garganta, e o zíper descia em câmera lenta, mas eu estava paralisada e chocada demais para me manifestar.
.
.
.
Ou talvez eu tivesse medo de saber qual seria a minha manifestação.
...
...
O zíper finalmente chegou ao fim, momento em que senti a temperatura externa congelante em minha pele. Eu mal respirava, mantinha meu olhar baixo e sentia meus pelos arrepiarem - frio, medo, vergonha, ansiedade?
Sua voz majestosa novamente me interrompeu do transe:
- Linda, tão linda. Uma pena que não posso tê-la.
Ele aproximou os dedos de mim, e eu fechei os olhos com toda a força que eu poderia. E então, senti um impacto forte no lado direito.
Abri os olhos. Um punhal. Eu via o sangue escorrendo, mas a dor ainda não se manifestara.
Meus olhos marejaram.
Por quê?
E então, deixei-me levar pelo pânico - momento em que a dor realmente apareceu. Caí no chão, atônita. Tudo escurecia, quase como se eu fosse desmaiar.
A última coisa que vi?
Seus olhos azuis, tão marejados quanto os meus.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Sonho nº10 - Do fauno e da cobra


Eu estava parada. Uma música celta alegre tocava ao fundo. Olhei em volta, e percebi estar em um lugar elevado, diante de árvores. Era a varanda de algum tipo de apartamento, porém, o imóvel estava completamente perdido no meio da floresta, como se tivesse sido deixado lá de alguma forma, ou como se as árvores o tivessem engolido com o tempo.
A varanda de madeira dava a volta ao redor dos cômodos, acompanhando as quatro paredes externas. Na curva que ela fazia para a direita, diante de mim, havia um fauno. Ele me olhava fixamente. Usava uma máscara de crânio de cervo, e por trás dela, haviam olhos enigmáticos que causavam-me algum tipo de temor. Eu corri, assustada - o fauno me dava um medo inexplicável. Dei a volta pela varanda, percorrendo seu caminho quadricular, enquanto o fauno me seguia.
Até que então, me deparei com uma cobra comprida. Saltei-a e parei na sua frente. Suas costas eram verde-claras e sua barriga era escura, quase negra. Ela rastejava lentamente em minha direção e eu andava para trás lentamente também, fugindo dela.
O fauno surgiu na curva da varanda. Ele começou a dançar e a saltitar, em movimentos graciosos que eu admirava e contemplava, mesmo estando com medo. Ao início da dança, a cobra imediatamente se enrolou e se torceu, movimentando-se desesperada e sentindo uma dor escruciante. Quanto mais o fauno dançava, mais a cobra se contorcia, e olhando para ela, eu quase podia ouvi-la sibilar agonicamente.
Eu então entrei por uma das portas e atravessei um quarto. Olhei para trás, e o fauno me olhava através da porta. Eu continuei seguindo, atravessando por dentro até o outro lado da varanda, onde vi um pedaço de madeira ligando a ponta da curva da varanda ao interior da floresta. Imediatamente escorreguei por ele, caindo em uma clareira envolta por árvores verde-escuras. Havia pessoas lá. Dentre elas, um silêncio enlouquecedor.
Antes eu tivesse permanecido com o fauno.

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Espinhos



(Esse texto é a continuação de ~Labirinto~)

Em meio ao anoitecer na floresta, eu fechava meus olhos e tentava esvaziar completamente minha mente. Eu tinha medo da noite. Ela nunca trazia coisas boas.
Abri meus olhos. A fogueira no centro trepidava, branda. O lobo castanho permanecia ali, na clareira, fazendo-me companhia, porém estava deitado, caindo em um sono inevitável, depois de esperar-me acordado por tanto tempo. Era lindo e aconchegante observá-lo dormir.
Não foi preciso muito tempo até que um vento forte viesse de repente e apagasse a fogueira que protegia-nos noite adentro. Eu olhei para o lobo, mas ele continuava dormindo.
Não consegui evitar que o pavor me tomasse.
Uma energia sombria começou a inundar-me. Ela exerceu sobre mim um hipnotismo e um controle da minha mente, contra o qual eu não tinha forças para lutar. Simplesmente sucumbi, sendo tocada por uma sensação fria e aterradora.
Levantei-me. Uma força obrigou-me a me virar para a saída da clareira. Olhei uma última vez para o lobo adormecido enquanto meus olhos puderam alcançá-lo.
Minhas pernas começaram a se arrastar sozinhas, levando-me para entre as árvores por um caminho escuro sinuoso. A energia sombria apertava minha carne com sua intensidade, e uma dormência tomava todo o meu corpo. Quanto mais eu andava, menos eu conseguia sentir a luz da lua me tocar. Corujas conversavam entre si sobre os galhos das árvores altas, mas era impossível de localiza-las. A pele exposta das minhas pernas era cruelmente afligida pelos espinhos dos arbustos baixos que seguiam por toda a extensão de onde eu caminhava. Os arranhões fundos doíam, mas o pavor que se instalara em mim tornava a dor quase imperceptível.
Depois de horas de um caminhar lento, pude distinguir algo por trás das folhas e troncos. Mesmo na escuridão, era possível se ver.
Uma parede de pedras tomada por musgo. Uma entrada ornamentada com arabescos de espinhos.
Não.
NÃO.
Eu não voltaria para aquele lugar!
Fiz toda a força que pude para mover minhas pernas para outro rumo, ou para simplesmente pará-las. O hipnotismo era profundo. Nenhum esforço meu era mais forte do que o controle exercido pela energia sombria. A dormência no meu corpo aumentou, eu quase não sentia meus membros. Eu me debatia internamente, e lágrimas de desespero não puderam ser impedidas de correrem ardentes dos meus olhos.
Por que eu sempre me permitia voltar para lá?
A poucos passos da entrada, minha mente exausta não teve mais forças para se debater. E eu me entreguei.
Por que eu sempre me permitia entregar-me?
Um tremor distante intermitava no solo. Um farfalhar de folhas longinquo se aproximava rapidamente. Um rosnado forte ecoou por toda a noite e me fez respirar profundamente.
Minhas pernas pararam. Fui obrigada a virar-me para trás. O lobo vinha com velocidade, e em menos de um segundo surgiu dos arbustos e saltou sobre mim, derrubando-me com brutalidade no chão. Ele manteve suas patas pesadas sobre mim, suas presas à mostra. Rosnou com intensidade mais uma vez, e a energia sombria simplesmente se esvaiu de mim e pareceu voar para longe, como um vento frio, afugentada pelo seu calor. A dormência sumiu e pude controlar meu corpo novamente.
O lobo escondeu as presas e me olhou com tristeza. Suas pernas estavam completamente arranhadas pelo caminho espinhoso, e o sangue escorria sobre os pêlos densos.
Ele deu espaço para que eu me levantasse, mas eu me desequilibrava. Os cortes agora doíam mais.
“Suba em minhas costas”, eu pareci ouvi-lo dizer em minha mente.
Eu subi e me aninhei em seus pelos, escondendo meu rosto em seu dorso.
Eu estava desolada e envergonhada demais para qualquer pedido de perdão. Agarrei-me a seu corpo enquanto ele corria para dentro da floresta novamente.
Eu nunca me perdoaria por causá-lo tanta dor.

sexta-feira, 29 de julho de 2016

A história de uma menina com fome


Ela era como uma garota qualquer, exceto pelo fato de que ela sentia fome. Ela sentia fome de tudo. Fome de conhecimento, fome de gentileza, fome de viajar o mundo, fome de comida, fome de amor.
Era isso que a movia. Era isso que causava nela a vontade de levantar e continuar tentando. Era isso que a libertava.
E, por ter tanta fome, sempre se doava demais às pessoas. E isso porque ela costumava acreditar que as pessoas também sentem fome. E, de fato, sentiam. Mas algumas não se contentavam com a medida que ela podia dar, absorvendo toda a sua energia. E, por diversas vezes, quis desistir. Diversas vezes se perguntou o que estava fazendo e porquê.
E então, lembrava o quanto sua vida seria vazia se abrisse mão de sua fome. E o quanto isso se tornaria pior se abrisse mão da fome alheia.
E então, continuava sua vida de doação, aproximando-se de uns e outros, transferindo tudo o quanto poderia para tornar a situação do próximo melhor, aguardando o dia em que alguém fizesse o mesmo por ela.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Ser ou estar?


Ela sempre foi assim. Aliás, sempre esteve assim. (Importante diferenciar ser/estar). Acho que estar por tanto tempo acabou criando a crença de que ela sempre fora assim. E ninguém jamais conseguira resolver o problema que ela era. 
Ela era como uma granada, pronta para explodir.
Mas ninguém sabia. Por fora, sempre aparentou tranquilidade, serenidade, felicidade e todos os -ades- que remetam a qualquer coisa feliz ou positiva. Organização era com ela mesma: desde os fios de cabelo até horários de rotina, tudo sob seu controle.
Ah, as aparências!
Mal sabiam todos que por dentro ela era uma bagunça sem fim, o ápice da desorganização. Mal sabiam todos que ela por dentro se magoa, se entristece, se enraivece.
E eles não podiam saber.
Ela sempre foi considerada como forte. Como exemplo. Como referencial. Todo o tempo, em todos os lugares. Ela jamais poderia deixar isso transparecer. 
Em lugar nenhum.
A situação se tornava uma bola de neve, sem qualquer ocasião em que ela pudesse se libertar dessas correntes. E então, ele aconteceu.
Em verdade, ele já estava presente por algum tempo, mas sua presença em momento algum tinha revelado toda a luminosidade que carregava dentro de si - isso porque ele era muito bom em esconder. 
Àquela hora, tudo parou, e ela não podia acreditar.
Finalmente, ela poderia se libertar de tudo aquilo que a transformara em um outro alguém. E ser ela mesma, sentir verdadeiramente. De repente, a felicidade parecia mais próxima e a esperança enchia seu coração.
De repente, a vida tornou-se mais leve.

Perseguindo o Dragão




Aqui permaneço, eternamente. Um pesadelo infinito que me aprisiona, um templo em ruínas. O céu é vermelho, como se o sol estivesse sangrando. Eu tento não olhar para cima, para não me lembrar que eu mesma estou sangrando. Sempre estive.
Subo as escadas à minha frente. Degraus de pedra a se perder de vista. Meu vestido em farrapos ainda tem a mesma cor laranja, desbotada depois de vivenciar dia após dia o mesmo percurso sem fim. Correntes presas aos meu pulsos se arrastam atrás de mim, elas são pesadas e dolorosas, cada elo mostrando o número de vezes que o pesadelo recomeça e se repete. As escadas se acabam, enfim, e fico diante de uma fonte envelhecida. Dentro dela, a água azulada sussurra em minha mente o que fazer. Há cacos espalhados pelo chão, todos os vasos de cerâmica e pedra estilhaçados furiosamente. Pego um pedaço afiado, e corto minha própria mão, deixando o sangue escorrer dentro da fonte, esvoaçando no azul da água, e o sangue me revela o que eu incessantemente busco. Fios azuis de luz emergem da água e formam arabescos diante dos meus olhos. A imagem que se forma desperta o melhor em mim, ou pelo menos o que resta de mim.
Ele. Sua alma. Magnífica e acolhedora. A alma que não consigo alcançar, a alma à qual me agarrei com todas as forças, mas que, sem força, deixei se esvair. Eu esqueço que estou em um pesadelo, tudo o que existe naquele momento são seus olhos entristecidos direcionados a mim. Eu quero tocá-lo, eu preciso tocá-lo. Porém, sua alma se dissipa assim que meus dedos o tocam. Um toque tão frio... Eu não quero que ele se vá novamente, desesperada tento agarrá-lo novamente, mas os fios se esfumaçam em meus braços, tirando novamente o que tem de melhor em mim.
Pergunto-me quantas vezes isso se repetiu. Todas as vezes eu sempre esqueço que acabará da mesma forma, todas as vezes eu me apaixono de novo por uma ilusão, todas as vezes acredito que ela é real, e todas as vezes o desespero de me perder toma conta de mim. Minha insanidade foi o que me restou, só isso.
Caminho, sem vida, por aquele templo, arrastando as correntes. Mais uma vez, eu não me lembro o que há no final do caminho, mas não tenho medo, eu não tenho mais nada a perder. Ando por minutos que parecem dias, o tempo não é meu aliado. A cada passo, sinto que despedaço, numa dor pulsante que insiste em me ferir sem descanso. Sinto fome, sinto frio, mas não há como me satisfazer dentro da minha própria loucura.
Chego a um abismo que me convida a me entregar. No fundo, um mar de mãos se emaranhando em movimentos de súplica. Eu não reluto, e deixo o abismo me levar, soltando meu corpo em sua beirada e caindo sem me importar com minha dolorosa existência. As mãos do fundo me pegam, me seguram e me puxam para baixo, afogando-me em meu próprio desespero. A agonia ameniza, e eu abro meus olhos.
Aqui permaneço, eternamente. O pesadelo recomeça, me devolvendo na beira da escada. Eu olho para minhas mãos, e me aterrorizo com as cicatrizes de cortes, marcadas por minhas tentativas frustradas de fugir de mim mesma, desse templo que me constitui, dessa loucura que corrompeu minha mente. As cicatrizes me enfurecem. Não existe mais espaço em mim para suportar essa maldição!
Lágrimas amargas de raiva e angústia irrompem pelos meus olhos. Eu subo as escadas correndo, ignorando a dor e o peso das correntes, e a fonte está no mesmo lugar, vasos de cerâmica e pedra decorando todo o recinto. A raiva me consome, minha cabeça queima. Eu grito e derrubo com fúria todos os vasos, jogando-os e quebrando-os, e os cacos se espalham pelo chão. Giro as correntes, e elas derrubam colunas que se erguiam sob o céu vermelho. Na minha ira, levanto as correntes e as jogo sobre a fonte, que se destrói. Um impulso e uma cor azul são libertados, e os fios de luz voam, livres. Então eu me lembro o que há no fim do caminho. O abismo.
Eu corro, com a esperança que havia me deixado há muito tempo, perseguindo os fios que voam rapidamente em direção ao fim. Eu avisto o abismo, e sem hesitar, pulo.
O céu se torna azul noturno, meu vestido esvoaçante se torna alvo. Sinto a loucura desprender de minha mente, permitindo um sentimento que há muito tempo não conhecia mais. Liberdade.
Minha queda é suave, lenta e calma. O vento contra mim seca minhas lágrimas. Atinjo a água como quem deita em plumas, afundando levemente sob a luz da lua. Dessa vez, a agonia é doce. Fecho os olhos, deixando minha vida afundar com meu corpo.
Minha alma pura deixa meu recipiente doente. Flutuo em direção a outra alma, em direção ao que me faltava, o que eu buscava e alcancei. Ele me envolve com seus braços calorosos, e seus olhos me olham com amor. Eu o beijo, e mato então tudo de ruim que havia crescido em mim.
Estávamos livres.

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Sonho nº 9 - Da sedução e da agonia



Aquela fonte guardava um mistério encantador e perigoso. Suas águas claras e profundas - profundas demais para uma fonte d'água - escondiam algo que uns temiam, outros ansiavam.
Eu permanecia parado em frente à fonte, minha cabeça estava em outro lugar, quando a criatura apareceu para mim. Ela tinha um rosto tão inocente, que não pude entender por que ela era temida. Olhava-me com um olhar esverdeado doce e tímido. Hipnotizador. Em um instante, eu já a amava perdidamente.
Ela me chamou para perto. Aproximei-me, entrei na água, juntei-me a ela. Seus cabelos negros se espalhavam ao redor de seu corpo.  Ela sorriu sutilmente. Como era bela, como era graciosa! Ela definitivamente não era como as outras que as histórias contavam, era diferente, era bondosa, tinha um coração capaz de amar, capaz de me amar. Ela mergulhou lentamente, eu mergulhei também. Então pude ver seus belos seios e sua cauda brilhante, mais nada além disso, meus olhos estavam presos aos seus. Em baixo d'água, sua sensualidade então aflorou. Provocante, sedutora. Muito mais do que um homem como eu poderia querer. Ela me encheu de desejo, eu queria beijá-la, queria tê-la, mas eu precisava de ar, precisava voltar à superfície.
Eu tentei me impulsionar para cima, mas a sereia me lançou um olhar tocante, como o de uma criança carente.
- Não se vá agora, por favor, fique comigo mais um pouco. Você não quer ficar comigo? - ela pediu com uma voz meiga.
Eu não pude resistir ao seu pedido. Mesmo afogando, eu decidi ficar com aquela sereia linda, desejando seu corpo. A agonia da falta de ar parecia me deixar ainda mais excitado. Eu não precisava respirar mais, se eu pudesse ter aquela sereia só para mim.

quarta-feira, 16 de março de 2016

Labirinto



Sob um lampião apagado, eu tentava me localizar. Não sabia dizer há quanto tempo eu já estava ali, mas era tanto que eu ja não conseguia mais contar. Olhei ao meu redor, onde paredes de pedra cobertas com musgo e trepadeiras seguiam por vários corredores e caminhos e constituíam formações confusas. Como eu havia ido parar ali?
Quando eu deixei-me me perder tão profundamente?
Eu avancei em meio ao labirinto, tentando ignorar a sensação pesada que pressionava meus sentidos. Era tudo muito escuro, salvo alguns vaga-lumes que iam e vinham, mostrando de quando em vez as curvas duplicadas e as divisões dos muros. Eu não sabia se deveria voltar - na verdade, não teria para onde voltar. Minha única alternativa era seguir em frente e tentar ouvir meus instintos há muito perdidos dentro de mim mesma.
Sem pensar demais, virei à esquerda. Eu segui por alguns minutos num caminho reto, até me deparar com as paredes fechadas, num corredor sem saída. Virei-me para trás, e puxei o ar, apavorada, diante da minha visão. Todo o caminho reto pelo qual eu havia seguido simplesmente deu lugar a várias outras divisões novas, que intercalavam entre curvas à esquerda e à direita.
Isso não era possível. Ou eu estava louca, ou o lugar estava vivo. Eu não sabia mais se podia confiar nos meus sentidos.
Eu voltei pelo caminho novo, escolhendo virar à direita, à esquerda e em seguida à direita novamente. Minha visão começou a estremecer. A sensação pesava ainda mais em mim e parecia quase me esmagar. Apertei o passo. Segui por um zigue-zague quase interminável que culminou num ponto de caminhos cruzados. Eu olhei em volta, e em meio a uma tontura, perdi-me do meu senso de localização e simplesmente esqueci por que lado eu havia vindo. Vi-me diante de quatro possibilidades - em frente, à direita, à esquerda e para trás - sem saber em qual delas eu estaria voltando pelo mesmo caminho de onde vim. Fiquei por um minuto parada sem saber o que fazer, e uma falta de ar horrível começou a afligir meus pulmões de repente. Eu tinha que sair dali, eu precisava sair. Aquele lugar era enlouquecedor.
Escolhi seguir em frente, me escorando às paredes de musgo e me arrastando. Meu corpo parecia pesar mais a cada passo, e a cada segundo eu parecia ficar mais fraca. Antes de chegar a ver uma outra curva, não aguentei e caí. Meu cérebro vibrava. Eu puxava todo o ar que podia, mas ele não satisfazia meus pulmões. Os muros ficavam maiores, o ambiente, mais turvo.
Aquilo era torturante.
Oh Deus, o que eu havia me tornado?
Tentando mais uma vez, me agarrei às trepadeiras e ergui meu corpo. Busquei energia no meu mais profundo ser, e comecei a correr irregularmente, quase desequilibrando. Visualizei uma sombra diferente, distante, a perder de vista no caminho a minha frente. Tinha que ser algo. Corri com mais afinco. Mas meu coração gelou ao identificar o que era.
Um poste. Um lampião apagado. As mesmas formações confusas.
Eu voltei ao começo. Segui por um circulo louco, e voltei ao começo. Caí de joelhos no chão, levei as mãos aos cabelos. Um grito estridente irrompeu por minha garganta, sem controle, e ecoou pela escuridão, pelos corredores frios.
Olhei novamente ao redor, tentando em vão mascarar o desespero. Observei o movimento dos vaga-lumes, e dois deles seguiram por um corredor à frente. Meu instinto despertou. "Siga-os", ele disse à mim.
Desesperadamente comecei a andar, ignorando a sensação esmagadora e a falta de ar. O brilho verde dos insetos tornava-se mais intenso a cada metro percorrido. Um deles então virou à direita, mas o outro não o seguiu. Pousou numa das folhas grudadas à parede e ali permaneceu, parado. Eu segui pela direita, e uma escuridão completa se mostrou diante de mim. Não era possível ver nada - nem os muros de musgos, nem o chão sob meus pés -, num infinito negro, a única coisa visivel era o piscar brilhante e verde que distanciava-se lentamente. Com coragem, eu avancei.
O caminho aparentava não ter mais fim, visto o tempo em que eu permanecia andando sem cessar e adentrando àquelas trevas.
De repente, o vaga-lume parou no ar. Eu parei também, esperando por alguma reação do inseto, porém ele se manteve parado, flutuando sutilmente pra cima e pra baixo num mesmo ponto.
"Aproxime-se", o instinto me disse.
Eu lentamente fui em direção a ele, com leveza para não afugentá-lo de alguma forma.
O vaga-lume permanecia. Fixo, estável.
Ao estar bem próxima, seu brilho quase me cegava. Eu ergui minha mão e com muita delicadeza toquei no vaga-lume.
Uma onda forte e invisível atravessou meu corpo e eu suspirei profundamente. O inseto desapareceu, o caminho tornou-se novamente visível - apesar de ainda escuro - e a sensação pesada parecia dissipar-se gradativamente, bem devagar. Eu olhei à frente, e um único caminho convidava-me a seguir adiante.
Meu pés moveram-se praticamente sozinhos, sendo instigados por meu instinto antes desaparecido, e agora tão nítido. Como um amanhecer lento, a escuridão desfazia-se, tornando todo o ambiente acinzentado. Eu parei imediatamente, em reação ao que estava diante de mim.
Um lobo castanho esperando, paciente, numa abertura de pedras quebradas do muro do labirinto. Ele me olhou, e seu olhar atingiu-me com tamanha intensidade que um arrepio forte percorreu minha pele. Andei em direção à ele, que guardava a saída com firmeza e serenidade. Imponente, robusto.
Fui convidada por meu instinto a ficar tão próxima a ele, que sentia sua respiração quente e pesada aquecer todo o frio do qual eu acabara de sair. Ele deu passagem para que eu atravessasse o limiar do labirinto, e ao pisar na grama do lado de fora, finalmente pude respirar fundo e satisfazer-me com o ar que me faltava.
Em meio às árvores, deixei meu corpo desabar. Todo o desespero desaparecera. O lobo deitou ao meu lado e em nenhum momento retirou seus olhos de mim.
A longa madrugada dava lugar ao gélido da manhã.
Deixei o calor que emanava do lobo ao meu lado cobrir toda a minha alma.
E me aquecer, enfim.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Mar Adentro



Mesmo adormecida, sentia o cheiro do mar.
Dali, era possível ouvir o som das ondes se quebrando.
Decidiu caminhar até lá.
...
O primeiro toque da água em seus pés causou um arrepio profundo, mas ela não se recolheu. Continuou adentrando o mar.
A cada onda que quebrava, sentia-se mais leve, como se as preocupações se esvaíssem uma a uma.
...
Quanto  maior a distância, maiores eram as ondas e mais cruéis elas se tornavam.
...
O mar a puxava violentamente, como se quisesse puni-la por tamanha energia negativa que nele depositara.
Pela primeira vez, temeu.
Pela primeira vez seu coração palpitava diante da iminência de seus medos.
Pela primeira vez, a ameaça lhe pareceu perigo, mesmo que não o fosse.
Mesmo que não o fosse, continuar vivendo lhe parecia a melhor opção.
Pela primeira vez, vida.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Gaiola


A ideia era essa: tão bonito que o quero perto de mim.
E assim nasceram as gaiolas.
Tolos. Mal sabem que a verdadeira beleza dos pássaros é a liberdade de seu voo.
Há, ainda, aqueles que periodicamente os libertam para que não fiquem restritos ao pequeno espaço. Entretanto, cortam suas asas para que não possam alçar voo.
Alimentam suas esperanças e depois as tiram, como se tira o pão do faminto, a água do sedento, o amor do solitário.