domingo, 22 de novembro de 2015

Rato na roda


O despertador toca anunciando mais um dia.
Lá vai ela levantar-se mais cedo do que o necessário para cumprir seus afazeres, repeteco de sempre, rato na roda.
Involuntariamente, a cada dia que passa, mostra mais um pouco de seus espinhos.
Acontece que, naquele dia, eles foram expostos de tal forma que geraram cicatrizes, das quais não se tem prévia de desaparecimento.
Entre aquelas vozes interiores e exteriores, sua única segurança foi por ela dispensada, sem ao menos pensar que talvez, mais tarde, fosse necessária.
E foi, minutos depois.
Mas nada mais poderia ser feito.
Naquele momento, ela viu tudo desmoronar, em câmera lente, intensificando seu sofrimento diante da realidade dura e inevitável.
Não havia nada que a segurasse, nada que a mantivesse presa a chão, nenhuma âncora: navegava "até o mundo se dobrar, sumindo no horizonte".
E então, aquela situação que parecia durar para sempre acabou de súbito, seguida por uma dor aguda e por um medo daquilo que já passou que a dominava de tal forma que parecia que a cada segundo a sensação era revivida, repeteco de sempre, rato na roda.

Das distâncias



Queria compreender o porquê da distância das estrelas. Todas as noites ele ia RELIGIOSAMENTE até sua janela admirá-las. Mas elas sempre estavam longe, no infinito. Tão longe que, em alguns dias, desapareciam de sua vista. Talvez por isso fossem tão bonitas, talvez por isso fossem tão brilhantes. Talvez, se vistas de perto, perdessem um pouco de sua beleza, de seu encanto. Quando se vê de mais perto, se vê com os olhos da verdade, com detalhes. E então, aquela admiração toda que a movia e a motivava sumiria. Por mais cruel que fosse, ela preferia a ilusão. Preferia continuar admirando de longe, preferia continuar na expectativa, preferia a falsa felicidade.
É uma opção.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Sonho n°. 8 - Evaporar pt. 2


Novamente, lá estava ele na sala vazia. Ouvia-se o som dos ventiladores que balançavam suavemente as cortinas da parede à direita da sala, repleta de janelas grandes de vidro, através das quais avistava-se o pôr do sol. Da porta, era possível vê-lo de costas, admirando a paisagem que mesclava o degradê de cinzas e os tons alaranjados e amarelados com pinceladas pêssego que pareciam ser feitas manualmente. Ela entrou silenciosamente na sala, observando-o suspirar ao colocar a pasta pesada de couro na mesa.
- O material está na mesa, você tem 50 minutos - ele disse repentinamente com rispidez.
Ela sentou-se e correu os olhos pelas folhas. Imergiu em pensamentos quando sentiu como se alguém a observasse. Ao levantar o semblante, os olhares se cruzaram. Naquele momento, o som dos ventiladores tornou-se abafado, quase como se o canal auditivo estivesse bloqueado. Ela lutava para abaixar o olhar e retornar à leitura, mas a força existente naqueles olhos a prendia como gravidade. Ainda presos, o som foi retornando e só então ela percebeu que ele balançava a caixinha de balas que ele sempre carregava. Ao fundo, ouvia-se o som agudo das rodas de um carrinho, provavelmente devido à falta de óleo. O som agudo perturbava os ouvidos dela, que estremecia ao passo que o carrinho parecia se aproximar.
- Você tem aflição? - Ele sorriu.
Ela assentiu com a cabeça. O sorriso dele transformou-se, um tanto quanto malicioso, sádico.
- Eu ADORO esses sons irritantes.
A intensidade com que ele proferiu "adoro" parecia ecoar pela sala, tornando a atmosfera tensa. Ele a encarava, ainda com aqueles olhos indecifráveis. Ele se levantou e começou a andar, aproximando-se dela lentamente, olhos fixos. O som da sola dos sapatos no piso parecia cada vez mais alto nos ouvidos dela, enquanto seu coração acelerava cada vez mais. Ele inclinou-se, como se fosse pronunciar algo em seus ouvidos. Ela ofegava. Ele tocou seus ombros. Ela suava. A boca dele se aproximava de seus ouvidos. Ela cerrou os olhos com força por alguns segundos.
Nada.
Nenhum sussurro, apenas o som suave do ventilador.
Ela abriu os olhos, a sala estava vazia. A pasta pesada de couro não estava mais sobre a mesa. Na janela, a lua brilhava, mais intensa, mais próxima, mais forte.
Cegava.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Sonho nº. 7 - Evaporar


Escurecia. Ela acabara de deixar o prédio quando ele a abordou:
- Parabéns pela sua conquista. Se precisar de alguma coisa, me avise.
Sem se despedir, ele seguiu seu caminho, carregando a pasta marrom de couro pesada.
Ela verificou as horas no celular e partiu, a caminho do transporte. A rua estava vazia, os pingentes de sua bolsa tintilavam.
Ele, à frente, instintivamente virou-se e a avistou:
- Para onde você vai?
- Por aqui - ela apontou. Neste momento, a rua reviveu e dezenas de carros a atravessavam.
- Eu te dou uma carona - Ele disse, segurando-a pelo braço para atravessar a rua. O vento gerado pela velocidade dos carros era feroz, mas ela mal notou: ela só o observava, triunfante, heroico.
Pararam à frente de um Lancer preto. Ele sentou-se e afrouxou a gravata. Ajeitou o cabelo do jeito que sempre fazia, com a lateral da mão, apoiando com o dedo mínimo.
- Você vai para onde? - perguntou, ríspido.
- Vou para a estação 5 - respondeu, timidamente.
Ele acelerou.
Passaram todo o caminho em silêncio.
Ele estacionou o carro e soltou um "vou com você" quase inaudível.
Eles se sentaram no primeiro vagão, praticamente vazio. Mesmo com a sensação de incerteza, ele tocou a mão dela, como se tentasse transmitir sentimentos pelo tato. Em um instante, sem saber como, ela se viu sentada em seu colo, mas seus olhos mal se cruzaram.
Ao soar da campainha, eles desceram.
Ela foi andando na frente, mas seus pés eram lentos e seus passos, curtos. Ela esperava que ele a puxasse pela mão. Arriscou, então, olhar para trás.
Ele não estava lá.
Desesperada, ela correu os olhos pelo vagão, e lá estava ele: semblante petrificado, sério, ajeitando a gravata, como se os momentos imediatamente anteriores tivessem evaporado e se misturado com a fumaça do trem.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Cartas à Severina XII


Senhora Severina,
Vejo-te à porta alheia, a bater e azucrinar. Tentando, em vão, entrar no coração alheio. Vejo-te apenas pelas costas, apenas as tuas costas curvadas e cansadas de esperar, teu tropeçar bêbado enquanto vai e volta par a porta alheia, teu cigarro pendurado nos dedos, no vai e vem que o vício lhe impõe.
Por tuas costas, vejo uma velha viciada e incômoda que atrapalha a vida de alguém. No entanto, quero ver-lhe o rosto, quero saber quem realmente é.
Desculpe-me a intromissão, não desejo ser desagradável, quero apenas ajudar um alguém aparentemente forte, que sempre vi como uma muralha, mas que, através de um pequeno bilhete, mostrou-se talvez uma muralha corroída por dentro, podendo cair a qualquer momento.
Um alguém intrometido.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Carta à Severina XI - (Re)encontro


Querida Severina,
Jurei que não te escreveria mais, eu sei. Mas encontro-me até a garganta entalada de problemas. Meu pobre coração bate tão fraco que minha alma quase não vive.
Dói de qualquer maneira, conformo-me.
Suspiro, e arrumo o sofá para que possas acomodar-se novamente em mim.
Não me despeço, sei que ficarás por muito tempo.
Tua velha amiga.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Livre


Olhar no espelho tornou-se uma verdadeira tortura, talvez tão intensa quanto os julgamentos alheios. No reflexo, a distorção, os defeitos, o monstro se revela; de frente para o mundo, críticas sucessivas.
O que esperar dela, diante da liquidez da gentileza do mundo?
O mundo não é mais o meu, não é mais o seu, não é mais o dela.
A forma exterior a prende numa gaiola: ela se desespera enquanto todos assistem.
Quando se livrar dos ódios, dos julgamentos, das inseguranças; quando suas asas crescerem e a gaiola se tornar pequena demais; quando se libertar.... O que iria procurar?
Ter coragem e ser forte, ser a mudança que ela tanto almejava ver no mundo.
E ser livre.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Cartas à Severina X


Olá velha amiga,
Há quanto tempo não me visitas! Vejo que desta vez trouxeste tuas roupas, planejas ficar muito tempo? Desta vez, tu não ouvirás reclamações da tua presença, já que és minha única companhia neste momento, e talvez seja minha única companhia durante toda a minha vida, dependendo das circunstâncias.
Aperta bastante meu coração contra meu peito, espreme-o, para que assim tenhas bastante espaço para ficar. Se está doendo? Não sei por que perguntas, já que nunca se importou... Mas sim, dói. Mas não ligo. Preciso voltar a me acostumar com esta sensação frequente da qual eu nunca devia ter me despedido.
Até breve,
Tua velha amiga.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

O Monstro


Lá vai ela de novo, ser engolida pelo desconforto interior. Ela não pertence a lugar nenhum, mas continua seguindo. Volta quando o tempo a fizer voltar, mas tem um milhão de caminhos que pode trilhar.
Embora não lhe apeteça, ela continua com um sorriso no rosto, escondendo o monstro que vive dentro de si. Anda sempre com fones de ouvido, a ignorar as terríveis coisas que o monstro lhe diz.
Todos os seus esforços para mantê-lo em sigilo foram tão bem sucedidos que ninguém jamais sequer suspeitara de sua existência. Mal sabem o quanto ele lamenta. Mal sabem o quanto ele insiste. Mas sabem que ele a enlouquece. Mal sabem que ele fica gritando gritando gritando gritando gritando gritando gritando gritando gritando gritando gritando gritando gritando gritando gritando gritando gritando gritando gritando gritando gritando gritando gritando gritando gritando gritando gritando gritando gritando gritando em seus ouvidos até a garganta sangrar.
Você está ouvindo?

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Cartas à Severina IX


Severina,
Quando disse que eu não te queria mais e que devias procurar outra morada, não me referi ao coração de meus entes queridos. Traiçoeira!
O que eu podia esperar, vindo de você?
Passe bem.
Tua velha amiga.

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Fora do eixo


Ela anda apressada, desajeitada, buscando uma só razão para continuar.
Ela olha para trás para ver se o mundo ainda era igual ao seu, mas não o era, não mais.
Tudo mudou, a luz se apagou, quem foi não voltou, a festa acabou, e agora José?
As imagens se moviam, as frequências não eram mais compatíveis, a Terra estava fora do eixo, fora da órbita.
Já não queria mais.
Queria mudar-se, mas não podia, pois aqueles olhos a observavam pela fechadura a todo instante, obrigando-na a ater-se às correntes. Embora fosse teu fardo, nada podia ser feito senão colocar um sorriso nos lábios pálidos e afundar seu triste peso em tal profundidade que nem ela própria seria capaz de encontrar.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

...


Tu me deste rosas, salpicadas de exclamações. Mas tudo o que vejo são tuas reticências, e um buraco de flores murchas no peito.

domingo, 20 de setembro de 2015

Sonho n°6 - Da amnésia e do temor



Eu andava pela rua onde eu morava, e estava tão confusa, que talvez eu tivesse tido uma amnésia. Passei pela esquina e segui mais adiante. O lugar era bem conhecido, mas eu não me lembrava onde era minha casa.
Passei por alguns quartos que eram voltados para a rua, um ao lado do outro, e protegidos apenas por uma cortina de pano, como se fossem tendas. Nada de portas, nem de casas inteiras.
Inicialmente, eu pensei estar procurando pela minha casa - ou quarto -, mas depois percebi que eu estava procurando Higor entre os aposentos. Algum deles pertencia a ele, mas oh Deus, porque eu não conseguia lembrar qual era?
Abri uma das cortinas de cor neutra. Lá dentro, Hermione e alguns outros bruxos conversavam, e todos me olharam quando eu interrompi a conversa.
-Desculpa. Vocês sabem onde Higor está?
-Não. - Hermione me disse.
Eu fechei a cortina e continuei procurando pelo amontoado de quartos-tenda, fazendo a mesma pergunta a todos que eu encontrava.
Até que eu puxei um dos panos e encontrei Higor sozinho, sentado num banco na lateral do quarto. Ele vestia a mesma camisa azul clara, e olhava para baixo, pensativo. Nesse momento, houve uma gritaria, e varias pessoas começaram a correr e a me alertar sobre algo ruim.
-Anda, fuja! - uma garota passou por mim e disse.
Higor me olhou. Eu fiquei aflita, eu deveria fugir de algo, mas de que? Eu não sabia se eu deveria me esconder atrás da cortina, ou se eu deveria correr. Ele então levantou, e me puxou para fora, indicando que deveríamos sair dali o mais rápido possível.
Eu corri o maximo que consegui, mas algo me impediu de prosseguir quando eu estava no meio da rua de areia.
-Pare agora de correr. - uma voz masculina calma, porém intimidadora, surgiu pelas minhas costas.
Minhas pernas pararam de se mover. Meu coração acelerou, tomado pelo medo.
Como eu podia temer tanto algo que eu não sabia o que era?

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Cartas à Severina VII

Boa tarde, querida.
Que ótimo que levantei em tua ausência. Poderia ter levado o lençol contigo antes de ir...
Escrevo-te minhas lágrimas...
Ah, Severina! Depois de toda a confusão, eu preciso dele. E ele anda tão estranho estes dias...
Ele quem?!? Ora Severina, meu amor, é claro. Todos deveriam ter um deste, não acha? Coitado daquele moço na rua... Coitado é do meu coração!
Desculpe a confusão, Severina. Acham que estou louca. Louca, louca... Estou mesmo é louca de saudade. Sabe Severina, o calor daquele corpo é capaz de aquecer a cidade inteira...
Severina, por que me provocas? Pare.
Ah Severina, e aqueles olhinhos brilhantes? O que me aquecerá neste dia frio, tão frio quanto tudo ao meu redor? O lençol rasgado que deixaste e as lágrimas quentes que rolam por meu semblante, enquanto aguardo uma ligação? Uma, só uma. Diferente das outras, uma que dure pouco, mas que tenha por finalidade ouvir minha voz.
Ah, parte! Corto tuas asinhas. Não encha a minha cabeça de besteiras. Paro por aqui.
Tua velha amiga.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Repeteco.


Naquele momento, tudo pareceu certo, em seu lugar. O amor nos protegia, nos envolvia naquela tarde chuvosa de domingo, que parecia tão encantadora.
Tudo estava muito quieto. Espiei de canto, sem mexer-me muito, e meus olhos maravilharam-se com a cena mais linda que já presenciaram: meu anjo dormia tranquilamente, com um sorriso esboçado em seu semblante.
Passe um de meus braços em volta dele, e toquei seus lábios de leve, para que não o acordasse. Recostei minha cabeça à dele e o doce aroma de sua pele hipnotizou-me.
E naquele momento sereno, sussurrei de leve algumas palavras em seu ouvido. Podem chamar-me de louca, afinal, de que adiantaria dizer algo quando a pessoa dorme? Talvez meu anjo não se lembre, mas algo dentro dele se lembrará.
Algo dentre dele se lembrará de que o abracei para protegê-lo, que toquei seus lábios dando-lhe meu amor e carinho, que sussurrei-lhe meu amor aflito, o medo de perdê-lo.
Mas, se ele não se lembrar, não há problema. Eu me lembro por ele, todas as minhas noites insones, ansiando um repeteco.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Angelus (parte 13) - FINAL



Depois de várias horas madrugada adentro, o laranja diurno começou a despontar ao longe. Não dormira um minuto sequer, e nem teria como. Não havia em mim vontade alguma de me levantar dali, de ir para casa.
Senti então uma presença esmagadora, aquecida. Ergui meus olhos, e à minha frente, uma figura magnificente me observava. Uma mulher de cabelos castanhos ondulados que dançavam até sua cintura. Portava vestes alvas, com panos de seda brilhantes, enroladas envolta de seu corpo e pendentes até seus pés descalços que por centímetros não tocavam o chão. Asas majestosas ascendiam-se de suas costas, brancas e ofuscantes, cobertas de plumas volumosas cuja maciez eu podia sentir mesmo estando distante. Seus olhos eram dourados, donos de uma benevolência que só um anjo poderia ter. Eu não tinha dúvidas de quem era ela.
- Levanta-te, Amelie. - Alexiel disse, com uma voz suave que ecoou ao meu redor.
Eu atendi seu pedido sem ousar hesitar. A presença intimidadora de Dantalion não chegava nem aos pés da imponência de um ser celestial como Alexiel. Ela olhou para Guilherme, e em seguida voltou seu olhar para mim.
- Não te preocupes. Salvaste a alma dele ao matar Dantalion. Salvaste a alma de todos que esse demônio um dia capturou para si.
- E agora? O que eu faço?
- Terás de ser forte, e continuar lutando. Tens longos confrontos pela frente. Dantalion era um chefe de legiões poderoso, mas não o maior deles. Demônios mais perigosos virão, e terás de enfrentá-los com coragem.
- Mas... Eu estou sozinha agora.
Alexiel flutuou em minha direção e, bem próxima a mim, tocou meu ombro com leveza.
- Tu nunca estarás sozinha, minha criança. Eu sempre estarei contigo, amparando-te, fortalecendo-te. Eu estou dentro de ti, em teu sangue, em teu coração. É em ti que vivo. - ela sorriu - És forte, minha querida, e serás ainda mais. Descobrirás que tu e somente tu és capaz, com teu próprio fervor, de vencer tudo isso.
- Dantalion disse que os céus esqueceram-se de mim.
- Ele não faltou com a verdade, apenas a modificou. Entretanto, é para isso que estás aqui, é para isso que gerações lutaram. Tu irás salvar todos eles, Amelie, e levá-los de volta para casa, para os Jardins. Os demônios planejam há tempos o domínio de teu mundo terrestre, e através dele a guerra com os anjos. Porém, tu não permitirás que isso aconteça. A queda do submundo está próxima, os demônios carão sob teus pés, e conseguirás levar à ascensão todos os teus. Eu não mais existo espiritualmente, por isso pouco posso fazer, mas existo dentro de ti e de todos que descendem de mim. Sei de cada dor, de cada sacrifício. E tudo será recompensado, Amelie. Os céus proverão a justiça sobre vós.
Eu segurei sua mão delicada sobre meu ombro.
- Eu o amava tanto... - lamentei, com os olhos ainda opacos.
- Há obras do destino que não podem ser justificadas, infelizmente. Existe muito mais do que tua mente humana é capaz de compreender. Um dia saberás de tudo, mas por ora, permaneça, viva e lute. Ele estará esperando por ti.
O sol já havia nascido a essa altura, e então percebi que estava dentro de mim mesma, e havia me perdido completamente do tempo à minha volta.
- Agora, vá. A ajuda virá, se seguires teu caminho.
Alexiel tocou em meu queixo e ergueu meu rosto, beijando-me carinhosamente na testa antes de se afastar e inexplicavelmente desaparecer de minha visão.
Toda aquela luz que ela acomodava e que me inundou foi assentando-se em mim, e a dor e o vazio voltaram a vir à tona. Virei-me uma última vez, para olhar o rosto de Guilherme. Abaixei-me, retirei seu colar com a chave e coloquei-o em meu bolso antes de deslocar-me para fora da floresta. Ao sair do meio das árvores, escalei o breve barranco coberto de capim alto e coloquei-me de pé no asfalto da rodovia. Respirei fundo, e comecei a andar.
Os carros passavam com velocidade, levantando a poeira da estrada ensolarada do começo da manhã e trazendo o vento que batia em meus cabelos. Embora eu caminhasse, suja de terra e sangue, pelo acostamento, nenhum deles se prontificou a parar para me ajudar. Mas eu não me importava. Eu continuaria caminhando, sem saber ao certo para onde, deixando apenas a força da dor mover minhas pernas.
Um carro prata, ao passar por mim, desacelerou, acionou a seta e parou no acostamento, alguns metros à frente. Um rapaz saiu do veículo com o motor ainda ligado, e veio até mim correndo.
- Amelie? - ele disse ao chegar próximo.
Olhei bem para ele, e meus olhos reconheceram Tuan ao saírem do transe e voltarem a esse mundo.
- O que aconteceu? Onde está Guilherme?
Nenhuma palavra saiu da minha boca. Eu apenas o olhei, sem resistir às lágrimas que voltavam a escorrer dos meus olhos.
Compreendendo meu olhar, levou a mão à cabeça, cerrando os dedos por entre os cabelos.
Tuan se virou, olhou toda a extensão de árvores e tomou fôlego, engolindo um nó apertado na garganta.
- Venha, senhorita, eu vou tirar você daqui.

[...]

No final das contas, o destino colocava tudo em seu devido lugar.
Uma semana depois da morte de Guilherme e do encontro com Alexiel, retornei à praia. Sim, aquele lugar era uma oscilação de sentimentos. Por vezes não albergava nenhum, e por outras era o melhor lugar a se estar quando a dúvida e a tristeza chegavam. A praia era capaz de acalmar-me e revigorar-me, assim como era capaz de piorar a dor em mim. Tudo dependia do quanto eu estava disposta à receber as energias do local.
Novamente, a lua minguante estava lá, observando-me, acima do oceano escuro. As lembranças que ela trazia transportavam-me até aquele dia. Quando cheguei tão perto da morte. Quando conheci aquele que era a chave das portas trancadas em minha mente.
Quando me apaixonei por Guilherme, nunca planejei e nem sequer imaginei acontecimentos como casamento, ou filhos. Eu queria simplesmente tê-lo ao meu lado, queria que lutássemos juntos, que sobrevivêssemos juntos. E apesar de todas as circunstâncias, eu não chegava nem a cogitar a possibilidade de perdê-lo. Não daquele jeito. Mas mesmo assim, o pesar estava amenizando-se aos poucos. Não seria tão rápido quanto foi com Daniela, e vestígios ainda permaneceriam para sempre em mim. Afinal, eu realmente o amava. O amaria para sempre, e lutaria até o dia em que pudesse encontrar-me com ele novamente.
Além disso, eu sabia que Guilherme havia fragmentado a própria consciência para me dar seu poder, mesmo sem ter a certeza das consequências que isso traria. Poderia isso ter sido a real causa de sua morte. Ou não. E eu preferia acreditar que não. Mas o fato é que parte de sua consciência estava comigo, dentro de mim, acoplada à minha. Eu o sentia. Tínhamos uma ligação maior e mais íntima que qualquer outra, mesmo agora estando em mundos diferentes. Fronteiras entre universos não eram capazes de separar essa ligação. Nada era.
Eu conversara com Tuan sobre o que acontecera. Contei a ele que Guilherme já havia estado no inferno antes, mas que alguém o tirou de lá. Uma mulher. Tuan disse que nunca ouvira Guilherme falar nada parecido, nem um indício desse acontecimento, portanto não sabia dizer-me quem ela seria. Isso não importava muito, no entanto. Achei melhor, porém, não lhe contar nada sobre o que Alexiel me disse. Essa era uma luta minha, só minha, e a justificativa dela cabia somente a mim.
Eu estava pronta para dar tudo de mim. Para usar minha luz em sua plenitude, e aprender cada detalhe sobre as ilusões que agora me pertenciam. Eu mataria cada criatura imunda que tentasse algo contra esse mundo, não somente para salvar toda a minha linhagem, mas também para proteger os humanos. A luz em mim parecia fazer-me amar todos eles. Talvez fosse Alexiel, revelando-se em mim. O que eu tinha certeza era que nunca o ódio encontraria moradia em meu coração. Ele só tinha espaço para uma coisa.
Eu toquei a chave antiga, pendurada em meu pescoço, e não hesitei em dar passagem a um pequeno sorriso, que logo dissipou-se em meu rosto. Em seguida olhei para trás, para o banco de concreto, onde nenhum estranho estava sentado.
Eu definitivamente seria aquela que colocaria um fim em todo esse mal.
Por todos os que lutaram.
Por todos os que sofreram.
E, acima de tudo, por ele.


~Fim~

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Pernas cruzadas


Cruzou as pernas como se tivesse um segredo.
Olhou para os lados. Nenhum conhecido.
Poderia ficar tranquila.
Era estranha a sensação de ser ela mesma. Sem fingir, até mesmo quando a situação virava uma crônica.
Cruzou as pernas como se tivesse um segredo.
E tinha.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Cartas à Severina VI


Querida,
Não acha que pegou pesado demais hoje? Te disse que não passarias, mas esqueci de fechar a porta. E atingiste-me de todos os lados.
Por quê?
E resolveste me apresentar outra amiga, a angústia.Terão que dividir o sofá esta noite.
Mas só por esta noite, ouviram?
Passe bem,
Tua velha amiga.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Angelus (parte 12)



Guilherme repentinamente puxou Dantalion pelos cabelos e o jogou para longe de mim. Eu não sabia exatamente o que sentir.
Eu estava surpresa, talvez assustada, extremamente confusa. Uma nefilim? Era isso que eu realmente era?
Eu... descendia de anjos?
Guilherme me olhou nos olhos. Sua boca sangrava. Não houve muito tempo para que eu o dissesse qualquer coisa, ele se virou para Dantalion e os dois mergulharam novamente em ilusões.
Uma onda súbita e estranha, porém suave, soprou em mim. Uma pequena agonia, que atingiu meus pulmões de leve. Vi um sorriso maléfico surgir no rosto do demônio, e Guilherme percebeu que ele estava fazendo algo.
- Você não irá imergi-la!
Pulou para cima dele com os olhos verdes brilhando intensamente no escuro da floresta. Apertou seu pescoço com as mãos ao derrubá-lo, mas Dantalion não desmanchou sua feição maléfica.
Foi quando senti essa onda crescer em mim. Com muita rapidez, o lugar à minha volta foi tomando outra forma. Tudo foi engolido por um vermelho alaranjado flamejante, as árvores estavam sendo consumidas por fogo e exalavam um cheiro de enxofre que quase me fez vomitar. O calor do lugar cresceu, até se tornar insuportável e queimar-me de dentro para fora. Minha respiração sumiu de repente, e meu peito se apertou em dor. Simplesmente fui ao chão, contorcendo em uma respiração agônica que não levava ar aos meus pulmões. Meu sangue parecia ferver, borbulhar em minhas artérias, enquanto minha pele parecia estar sendo mergulhada em ácido. Eu já havia ido muito além do meu limite de falta de ar, mas nenhum torpor apareceu para me aliviar. Eu era cruelmente obrigada a perecer naquela agonia. Torturante. Incessante. Aquilo me colocava à beira da insanidade. A morte parecia-me uma ideia confortavelmente perfeita, e eu só queria que alguém me acalentasse com esse tão desejado fim.
Eu tinha certeza: aquilo era o inferno.
- Amelie! - ouvi Guilherme se agitar.
Apesar da dor que me flagelava, olhei para o lado. Em meio ao fogo, numa visão turva, vi os olhos de Guilherme aflitos descuidarem-se diante da minha tortura. Dantalion aproveitou-se de sua guarda baixa. Com os dedos pontiagudos encobertos de trevas, perfurou com violência seu peito.
Uma dor pior do que a do inferno feriu minha alma.
A ilusão parou e a agonia em mim desapareceu.
- O teu erro, criança, foi permitir-se amar essa mulher. - Dantalion murmurou, com os dedos ainda dentro da carne de Guilherme.
Seus olhos arregalados não tiveram força para permanecerem verdes.
Eu não pude evitar um grito de desespero. Aquela cena congelou meu coração.
- Agora... - o demônio ria malignamente - Deixe-me finalmente deliciar-me com o resto de tua vida.
Dantalion o forçou a olhar em seus olhos, para que pudesse se alimentar de sua vida. Eu me levantei e corri em direção à eles. Juntei toda a força que havia em mim para não deixar a apreensão obstruir minha magia, movi toda a luz que eu poderia suportar e a impulsionei para fora do meu corpo. Uma silhueta de luz saiu de mim e penetrou no corpo de Dantalion, que a absorveu, enrijeceu e tombou, removendo os dedos compridos do peito de Guilherme. Ele também desabou, levando a mão até o ferimento e apertando-o.
Despenquei em cima de Guilherme. Desesperada, coloquei minhas mãos sobre a sua, sentindo seu coração acelerado e a pressão do sangue que escapava intermitentemente para fora de seu tórax e espalhava-se rapidamente sob sua roupa, entre os seus e os meus dedos, escorrendo até a terra. Minhas lágrimas não encontraram resistência nenhuma para sair.
- Guilherme... - não tive controle sobre minha voz trépida.
Ele respirava com muita dificuldade através da boca aberta. Uma respiração completamente irregular, quase sem nenhuma expiração, com um som atormentador. O suor frio em sua testa molhava seus cabelos e sua pele pálida me apavorava. A poça viva, vermelha e brilhante de sangue sob nós espalhava-se com velocidade e cada vez mais, assim como a angústia que me contraia. Não, ele não podia morrer assim.
O espaço e tempo que me envolviam foram esquecidos por minha mente. Tudo o que ela se permitia receber era o desespero perante aquela cena aterradora. Eu não sabia o que fazer. Eu era inútil. Eu... não poderia salvá-lo.
Seus olhos não deixavam em nenhum momento os meus. Eram os mesmos olhos assustados da visão em seu quarto, porém agora também conformados, serenes. Eles tentavam me dizer o que ele não conseguia falar, na ausência de sua voz. E eu os entendia.
- Eu também amo você...
Ele colocou a outra mão fria e sem força sobre as minhas. Não consegui dizer mais nada a ele, nenhuma palavra.
A respiração dele tornou-se mais fraca, juntamente com seus batimentos que eu não conseguia mais sentir. Num último impulso, Guilherme ergueu a mão e tocou no meu rosto. Instantaneamente, senti uma energia diferente entrando em mim, se fixando em minha alma. Algo forte, que impactou-me, que me fez inspirar profundamente e arrepiar o corpo inteiro. Um sopro ameno acariciou meu interior. Meu espírito reluziu. O verde apareceu em seus olhos apenas para deixá-los novamente, dessa vez desaparecendo suavemente para sempre. Embora ele nunca tivesse me dito que fazer isso era possível, eu sabia exatamente o que ele havia feito. Ele não precisava falar, eu sentia.
Sua mão escorregou do meu rosto, manchando-o com seu sangue, sem mais nenhuma força caindo sobre minhas pernas ajoelhadas. Uma última puxada de ar, fraca e trêmula, afligiu meus ouvidos. Seus olhos, pelos quais eu me apaixonara tão intensamente, lentamente foram perdendo o foco, até toda a vida esvaecer do mel que os inundava.
Meu grito doloroso de sofrimento ecoou na noite escura.
- Guilherme... Não, não, não! - os soluços que minhas lágrimas formavam em minha garganta quase não permitiram que as palavras saíssem.
Eu toquei em seu rosto frio, recusando-me a acreditar que ele estava morto.
De súbito, uma pancada em minha cabeça me fez tombar no chão. Uma tontura estremeceu minha visão, mas enxerguei Dantalion, sangrando pelos olhos, nariz e boca, destruído por dentro, em pé diante de mim.
Eu tentei me arrastar pelo chão para longe dele, porém, o demônio pisou em meu peito, imobilizando-me.
- Garota maldita! - sua voz monstruosa cheia de ódio era pavorosa - Híbrida nojenta! Magos? Mas que eufemismo falacioso! Alexiel nunca deveria ter descido à terra para dar a oportunidade de existência à seres repugnantes como vós! Ela é a prova do quão putrefato é o amor! Faz corromper a pureza de um anjo, dá à luz criaturas cuja própria existência coloca todas as dimensões em colapso! - ele colocou mais peso sobre mim, quase quebrando minhas costelas sob seu pé - É por isso que morrerás agora, e eu terei o prazer de levá-la comigo ao lugar de onde teus ascendentes fazem parte!
Eu movimentei meus braços para trás numa última tentativa de fuga, e um deles encontrou algo duro entre as folhas secas. O chifre quebrado de Dantalion. Ele abaixou-se para chegar mais perto de mim. Nesse momento, dentro da minha mente, relembrei da ilusão do inferno que ele havia colocado sobre mim, cada detalhe dela. Fechei os olhos e constitui toda a cena com a maior perfeição possível. De uma forma que era impossível de se descrever com exatidão, empurrei esse pensamento usando a energia que Guilherme passara à minha alma, e o senti se desprender de mim, encobrindo os sentidos de Dantalion com uma aura esverdeada. Eu podia enxergar o cenário real à minha volta, e ao mesmo tempo ver e controlar o meu cenário fictício. Surpreendi-o com a ilusão inesperada, e utilizei o único segundo em que ele se distraiu para embeber completamente o chifre com minha luz, puxá-lo e fincá-lo com força na lateral de seu crânio vulnerável.
O demônio caiu para o lado na mesma hora, dessa vez, definitivamente morto. Ele desmanchou-se em cinzas e esfumaçou no ar, desaparecendo.
Ainda caída no chão, observei o céu por trás das copas negras das árvores. Um vento frio atravessou toda a floresta, espalhando as folhas secas caídas e agitando as sombras sob o firmamento noturno. Juntei minhas ultimas forças para me arrastar novamente até o lado de Guilherme. Eu deitei meu rosto habitado por uma única expressão vazia em seu ombro. Desolada, permiti que a tristeza se apoderasse de mim, levando mais lágrimas aos meus olhos opacos.
Meu coração contorcendo-se em dor não teria nenhum consolo essa noite.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

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Há grandes prédios à minha volta, mas sou apenas uma humilde casinha.
Bases esburacadas, frágil ao primeiro vento. Não muito confortável: quente no calor, gelada no frio.
Goteiras em todos os cômodos: minha telha não expele água, protegendo o interior; absorve, apodrece devido ao material - uma obrigatoriedade.
Maltratada por "condições climáticas".
Mas, quando se acostuma, confortável.
Posso provar.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Angelus (parte 11)



Ruídos que pareciam longínquos ecoavam em minha cabeça. Por um momento de consciência, vi através dos meus olhos entreabertos Guilherme lutando com demônios. Eu estava deitada em um chão de terra coberto por folhas secas, e as sombras das copas que balançavam sobre mim começavam a ser abaçanadas pelo início de noite. Eram tantos demônios ao redor dele que, aliada à confusão e à tontura de minha mente, eu poderia acreditar que aquela cena não passava de um sonho.
Meus olhos foram obrigados a se fechar novamente, caindo na mesma escuridão da qual eu havia acabado de sair.
Fui despertar definitivamente apenas com um balançar em ritmo de passos irregulares. Abri os olhos lentamente, Guilherme carregava-me no colo, mancando. Direcionou-me seu olhar assim que me percebeu acordada.
- Amelie... - murmurou, aliviado.
Sangue escorria em seu rosto, mas o mel em seus olhos foram um deleite para mim. Por um instante, eu tive medo de que minha luz falhasse e ele não tivesse sobrevivido.
Ele parou de andar e colocou-me com cuidado no chão. Cambaleei, ainda um pouco tonta. Minha cabeça doía. Levei a mão até ela, senti um ferimento na lateral que mostrava exatamente o que havia feito eu desmaiar. Minhas roupas tinham alguns rasgos e estavam sujas de sangue, assim como as dele. À minha volta, uma floresta com árvores espaçadas umas das outras albergava a noite obscura.
- O que estamos fazendo aqui? - perguntei.
- Os demônios nos encurralaram. Eram numerosos, acabaram nos empurrando para dentro da floresta. Fiz o possível para acabar com eles antes que nos distanciássemos muito da estrada. Estou voltando para lá, para a saída.
Deu um tempo, e depois suspirou.
- Perdoe-me, Amelie.
Eu o olhei, calada.
- Eu quis fugir do destino, e acabei correndo direto para ele.
- Ele viria de encontro conosco, não importa o que você tivesse feito. Não há o que ser perdoado.
Parei de andar. Toquei em seu rosto e olhei em seus olhos, que tinham vestígios de aflição.
- Não se preocupe com isso. Não importa onde seja, eu me sinto protegida com você. - cedi e sorri para tranquilizá-lo, mas aparentemente em vão.
Guilherme abraçou-me de uma forma tão intensa que pude sentir o peso que ele estava tentando manter imperceptível.
Continuamos a caminhar para fora dali. Já podíamos avistar a clareira da descida por onde o carro capotou iluminada pela lua. Contudo, fomos interrompidos por um barulho estrondoso semelhante a um trovão. Quando dei por mim, um ser estranho, porém majestoso, estava nos aguardando, parado a poucos metros de nós.
Ele possuía o corpo de um humano alto e magro e cabelos pretos comuns na altura da orelha, mas sua pele era cinza, suas unhas negras e pontiagudas e seus olhos endemoniados sem íris eram brancos. Chifres escuros levantavam-se de suas têmporas a uma altura acima de sua cabeça. Uma cauda pontuda balançava atrás de seu corpo. Sua presença intimidava de tal forma que, primeiramente, não pude olhá-lo diretamente. Sustentava uma postura arrogante, demonstrando considerar-se superior à tudo ali. Posso afirmar que era o mesmo ser que exercera a força invisível em direção ao carro. Sem dúvida nenhuma, um demônio extremamente poderoso.
- Quando vou aprender a não colocar legiões inferiores para efetuar o trabalho... - sua voz imponente desdenhou, aparentemente falando consigo mesmo - Se quer algo bem feito, faça você mesmo.
- Dantalion... - Guilherme não soube esconder o assombro.
- Vejo que se lembra de mim, criança.
- Continua sendo o "cachorrinho adestrado" de seu mestre? - ele provocou.
- Não creio que estejas na posição de me insultar. - olhou-o dos pés à cabeça - Eu sinto o cheiro do teu medo, eu vejo as tuas lembranças. - o demônio suspirou profundamente, mostrando-se em êxtase - Ah! Como eu aprecio esta cena memorável! Aqueles dois repugnantes atochados de amor, sangrando sob meus pés... Suas almas renderam-me uma ótima promoção, diga-se de passagem. E como se esquecer da bela garotinha...
- Cale a boca! - sua voz foi tomada pela raiva.
- Ora, para onde foi toda a tua cautela com o ódio, Guilherme? - sorriu - Estarias fazendo companhia à tua querida família no inferno, se não fosse aquela miserável ter te tirado de lá... Então não culpe a mim - ele fez uma ironia mórbida.
O diálogo entre os dois causaria-me mistério, se eu não estivesse completamente preocupada com a situação. Guilherme fazia uma força absurda para neutralizar o ódio dentro de si mesmo.
- Bom, eu estou aqui para buscá-la - Dantalion olhou para mim - E é isso que farei.
Imediatamente, preparei a luz por todo o meu corpo, para lutar com ele. Em questão de um segundo, vi Guilherme partir pra cima de Dantalion para tentar golpeá-lo, porém o demônio permaneceu imóvel e bloqueou seu soco com uma mão, ainda olhando para mim. Guilherme o prendeu em uma ilusão e então Dantalion me perdeu de vista.
- Esqueceste de que compartilhamos do mesmo poder, criança?
- Não. São muito diferentes.
- Tens razão. O meu é superior.
Percebi um nível diferente de universo entre os dois. Ambos não pareciam estar ali, na floresta. Ambos estavam em ilusões. E ambos não podiam ver um ao outro.
- Eu sei perfeitamente onde estás, Guilherme.
Dantalion tentou agarrar seu rosto com uma das mãos, mas Guilherme desviou, rapidamente segurando, puxando e quebrando um de seus chifres. O demônio grunhiu.
- Eu também sei. -disse.
- Maldito! - Dantalion bradou, com uma voz monstruosa que causou-me arrepios.
Aquilo foi o estopim de uma batalha de ilusões. Eles se golpeavam com chutes e socos e se defendiam um do outro com rapidez, em meio à uma outra dimensão onde eu não fora convidada a entrar.
Um fogo negro então cresceu e envolveu os punhos do demônio, fortalecendo um soco que atingiu Guilherme no queixo e o lançou por metros. Ele caiu no chão, à beira da inconsciência.
Dantalion voltou à floresta onde estávamos e veio até mim. Eu já estava com a energia preparada, minhas mãos envolvidas por luz, em contraste com seu fogo negro que flamejava em seus dedos. Preocupada com Guilherme, sem dúvida, mas não deixando essa preocupação tomar conta.
O demônio golpeou-me, porém defendi com agilidade, contra atacando com um chute. Ele segurou meu tornozelo. Minha luz queimou sua mão e a sua escuridão queimou minha perna. Rapidamente ele soltou, impulsionando minha perna para o lado e com a outra mão empurrou-me com força para trás. Enquanto eu me desequilibrava e caía no chão, ele saltou com velocidade sobre mim, apertando os punhos em minha direção. Eu desloquei uma grande quantidade de energia às minhas mãos e conti as suas. A minha luz e a suas trevas colidiram-se brutalmente e entraram em uma disputa de força.
- Essa tua falsa luz não vai te proteger, menina. Muito menos te levar a um lugar diferente do que habito. - sorriu para mim - Não importa o que faças, os céus se esqueceram da tua linhagem à muito tempo.
Do que ele estava falando?
- Ora, então não sabes o que tu és? - disse ao perceber que eu não o estava compreendendo.
Eu transferi mais energia e empurrei suas mãos que combatiam as minhas para tentar levantar. O demônio fez o mesmo, a escuridão pressionou-me contra o chão, e ele olhou para mim com todo o ódio que se pode haver na essência de alguém.
- Nefilim.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Aquele aperto no peito (será?)


Há um nó em meu peito - ou aperto. Aperta em certas ocasiões, assim acontece. Tanto reclamo de tal obstáculo. Eis que um dia, senti meu peito doer, assim, fisicamente... E o meu coração pulava inquieto, e eu não quis ouvir.
O coração acabará em falência.
Digo, não agora. Acontece com todos, um dia. Mas o que gera meu obstáculo de ter um aperto no peito são os buracos. Os buracos, as alturas, a física - TUDO coisa de cérebro. Deveria doer a cabeça, não o coração.
Mas é assim o corpo humano: o cérebro manda e o coração é que sofre.
Será?

domingo, 6 de setembro de 2015

Sonho n°5 - Da floresta e da fresta



Eu e mais algumas pessoas partimos em uma viagem. Fomos a um lugar onde havia uma floresta. Deixei-as descansando na casa onde iriamos ficar e fui dar uma volta.
Comecei a adentrar a floresta. As árvores mantinham um espaço entre elas, permitindo que o sol iluminasse e que eu pudesse caminhar sem dificuldade. Haviam rochas também, e elas deixavam o lugar ainda mais bonito. Peguei meu celular só por um momento, e em seguida o guardei.
Eu encontrei um amigo meu na floresta, e um sapo que era amigo dele, mas que eu não conhecia. O sapo nos chamou para ir com ele. Eu segui meu amigo.
Entramos em baixo de uma das rochas, numa fresta tão estreita que eu mal podia acreditar que eu cabia ali. Rastejamos um pouco para o fundo - era o único modo de se locomover naquele lugar tão apertado - e eu conseguia ver a luz do sol do outro lado, na saída da fresta. Não era um lugar escuro, era acolhedor até. O sapo então nos mostrou algo muito legal. Algo que me divertiu, que me agradou, mas que não me recordo ao certo o que era. Porém, eu não podia ficar mais, tinha que voltar para a casa onde as pessoas estavam.
Antes de chegar na casa, recebi uma ligação da uma mulher, dizendo de uma forma não muito amigável que nós tínhamos que voltar. Avisei todos quando os encontrei no quintal.
Fui até onde tinha deixado minhas roupas. Elas já estavam arrumadas na gaveta, formando um mosaico colorido de camisetas dobradas perfeitamente em cores diversas e alternadas.
Depois de arrumar minha mala, eu lembrei que talvez eu tivesse esquecido algo embaixo daquela pedra. Corri para lá, me arrastei para entrar na fresta e acendi o celular. Percebi que não havia nada. Então eu simplesmente saí dali para ir embora.
Uma estranha sensação incompleta estava em mim, um pequeno vazio, mas eu não liguei.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Cartas à Severina V


Querida Severina,
Demorei-me a escrever, não acha? Te escrevo porque estou sozinha. Meu amor dorme feito um anjo que é, e não quero acordá-lo. Ah, Severina! Vou sentir falta do toque macio dele.
Não, pare! Não vou agir feito egoísta. É melhor para ele, querida. Não posso.
O que me consola neste momento, Severina, são duas coisas. A primeira é que vou guardá-lo com as lembranças no coração, e quando a saudade tornar-se urgente, revivo-as. A segunda é imaginá-lo dormindo, tão lindo... Tão...
Ah, desculpe Severina, este é papo para o amor, não para você.
Passe bem,
Tua velha amiga.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Angelus (parte 10)



- O que aconteceu com você, Amelie? - Guilherme questionou ao ver o machucado em minha boca.
- Não foi nada de mais.
- Conte-me. - ele insistiu.
- Bom - eu bufei - Dei uma surra em dois possuídos que estavam me seguindo.
Sua expressão ao parecer não acreditar me fez dar risada.
- A essa altura, você ainda acha que não sou párea para esses filhos da mãe?
Eu fui até ele, que estava largado no sofá, e me joguei com ele, deitando sobre seu peito.
- Guilherme, eu os livrei. Os homens... voltaram a ser humanos, quando matei os demônios dentro deles.
Percebi um lampejo de alegria em seus olhos enquanto ele me envolvia com os braços.
- Sério? Isso... é muito bom.
- Eu estou muito feliz por ter feito isso. - de fato, eu estava mesmo, e ele parecia estar ainda mais.
- Isso é tão estranho. - murmurou.
- O que?
- Eu me sentir feliz porque você está feliz.
- Isso chama-se paixão.
- Não. Isso chama-se amor.
Todo o ritmo em mim perdeu-se naquele instante. Minha respiração, meu coração, minha mente. Tentei conter um sorriso enorme mordendo o lábio inferior.
- Eu amo você, Amelie.
Nossos corações estavam encostados um no outro, e eu podia senti-los debatendo-se juntos. Nossos olhos caminhavam entre si até o profundo esvoaçar de nossas almas. Era impossível conter o magnetismo que nos prendia, sem relutância levando nossos lábios a se encontrarem. Beijamo-nos com fervor. Meus olhos se fecharam, meus dedos entraram por entre seus cabelos e os seguraram, puxando-o ainda mais contra mim. Suas mãos percorriam-me e apertavam-me contra ele. O calor que crescia através do beijo ia tomando cada parte do meu corpo, até que começasse a quase me sufocar, e eu não consegui controlar mais nada em mim.
Ele se sentou no sofá comigo no seu colo, se levantou me segurando e me levantando com ele. Cruzei minhas pernas envolta de sua cintura e meus braços ao redor de seu pescoço. Sem parar de me beijar, levou-me até seu quarto.
Apesar do dia irradiar lá fora, o ambiente permanecia pouco iluminado por conta da janela fechada. Guilherme colocou-me em sua cama, ficando por cima. Eu não o larguei, beijando-o com cada vez mais intensidade e estampando minha vontade de tê-lo para mim. A temperatura entre nós subia a cada segundo. Ele só separou seus lábios dos meus para tirar rapidamente a camisa, levando-os em seguida ao meu pescoço. Agarrei seus cabelos novamente, e com a outra mão correei suas costas, sentindo várias cicatrizes que no momento não foram perceptíveis. Eu movi os braços e ele deu espaço para que eu tirasse minha camiseta. O magnetismo impedia-me de manter minha boca longe da dele por mais de um segundo. Voltei a beijá-lo loucamente, sentindo-o, em meio ao beijo, desprendendo meu sutiã. Guilherme deslizou a mão por meus ombros, acariciando meus seios, minha barriga e descendo até minha coxa. Eu ardia em desejo.
Minha parte racional então desligou, para que eu pudesse imergir com intensidade. Para que dois corações desritmados e loucos se tornassem um só. Para que eu me permitisse, completa e simplesmente, vivê-lo.

[...]

Sob o lençol que nos cobria, eu ainda o abraçava, recusando-me a permitir que o magnetismo desaparecesse. Eu o acariciava, sentindo as várias cicatrizes por seu corpo. Em minha cabeça, tudo o que se passava era o sentimento que me preenchia estando tão perto dele.
Eu o amava. E repetiria isso mil vezes a mim mesma se pudesse.
Observei as paredes do seu quarto, praticamente fechadas por folhas desenhadas grudadas ali irregularmente. Desenhos sombrios, mas muito bem feitos e detalhados, e que pareciam por vezes tocar o fundo de minha alma, e outras despertar um leve medo inexplicável. Entre eles, uma folha branca apenas com o desenho de uma mulher de costas. Embora não se pudesse ver seu rosto, eu parecia conhecê-la de alguma forma.
- Todos os desenhos foi você quem fez?
- Sim.
- E quem é aquela?
- Eu não sei.
Seu incômodo surgiu novamente. Talvez fosse a mulher que lhe havia dado a chave, e era um mistério o motivo pelo qual ele não gostava nem um pouco de tocar no assunto. Mais uma vez, eu deixei pra lá,  voltando ao silêncio tão encantador que nos envolvia.
O momento de tranquilidade foi interrompido com uma reação súbita de Guilherme a algo que eu não sabia o que era. Como se tivesse acabado de despertar de um pesadelo, impulsionou-se para frente e tomou fôlego como se seus pulmões estivessem vazios. Eu olhei para ele, preocupada. Seus olhos estavam assustados e vagos, e posso jurar que o verde brilhante oscilava com cada pulsação de seu sangue.
- O que aconteceu? Você está bem?
Guilherme virou-se para mim. Seus olhos voltaram ao normal depois que ele os piscou, mas ainda estavam um pouco assustados. Ele não disse nada. Apenas levantou-se da cama e espiou o quintal por uma das frestas da janela.
- Fale comigo! - chamei sua atenção.
- Eu tive... outra visão.
- E o que você viu?
Novamente ficou calado. Ele saiu do quarto a passos largos e foi em direção à sala.
- Merda. -  ouvi-o dizer.
Voltou quase imediatamente, pegou minhas roupas espalhadas pelo chão e jogou-as para mim.
- Vista-se.
- O que está havendo?
- Eles estão aí fora.
Ele colocou sua camisa e sua calça com rapidez. Eu fiz o mesmo. Segui-o para fora do quarto até a sala e, curiosa pra ver o que estava acontecendo, enquanto ele rapidamente pensava no que fazer, olhei pela janela. Não fui capaz de ver nada, nem entre as árvores do outro lado da rua.
- Venha Amelie, rápido!
Guilherme me puxou pelo braço até o corredor.
- O que está havendo, Guilherme?
- Olha, nós precisamos sair daqui. Eu tenho um refúgio que podemos usar, pelo menos esta noite e a próxima. Pode parecer que estamos seguros aqui dentro, mas o sal não irá contê-los dessa vez.
- E você acha que ir para esse lugar será mais seguro? Se o sal não vai segurá-los, não existe um refúgio de fato.
- É a unica chance que temos. Confie em mim.
É claro que eu confiava nele.
Saímos da casa apenas com as roupas do corpo. Nós entramos no carro com pressa, ele olhou para os lados, girou a chave no contato e acelerou para a estrada.
Ver Guilherme daquele jeito me assustava. Ele não costumava demonstrar o que sentia, e nesse momento, não parecia ser possível mascarar o que estava mexendo com ele.
Ele estava com medo? O que ele tinha visto, afinal?
O clima estava tenso. Eu não queria perguntar novamente a ele, não sei se por medo do que seria, ou para poupá-lo de ter que me explicar algo que o atingiu de uma forma tão perturbadora.
Depois de cinco minutos de silêncio, avançando em direção ao norte da cidade, avistei alguma coisa no meio da rua, bem distante. Ao se aproximar mais um pouco, deduzo ser uma pessoa, parada, posicionada bem no centro da estrada e de frente para nós.
- Guilherme, o que é aquilo?
Ele também estava tentando distinguir quem ou o que era. Entretanto, não houve tempo para descobrir.
O ser, ainda distante, estendeu o braço em nossa direção. No mesmo instante, uma força descomunal invisível fez o carro derrapar bruscamente. A traseira foi trazida para frente. O veículo virou de súbito, capotando para fora do asfalto. Meu instinto fez com que eu nos envolvesse em um escudo de luz. Eu sabia que ele não nos manteria intactos, mas ao menos eu esperava que ele protegesse nossas vidas. Em meio ao mato alto, rolamos por uma descida com voltas violentas que pressionavam e contorciam a lataria. O vidro do para-brisa se estilhaçava com o impacto. Eu sentia alguns dos cacos me cortarem.
A última coisa que pensei foi em Guilherme. Meu cérebro não permitiu que meus sentidos presenciassem mais nada.
Um apagão repentino então me atingiu.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Açúcar amargo


Sinto-me estranha.
Estranha para mim mesma.
O que passo é minha culpa, o verde vibrante da parede me diz.
O pó coça meu nariz e muito mais: coça-me a alma.
É alergia.
Alergia a mim mesma.
...
E coça.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Angelus (parte 9)



Eu observava o caixão descendo sob a grama do cemitério e se tornando parte da terra. Daniela não tinha familiares de sangue e nem amigos muito próximos, portanto eu era a única presente naquele momento de despedida. Não quis que Guilherme me acompanhasse, achei que fosse melhor vivenciar aquilo sozinha.
A luz havia me ajudado a não permitir que a tristeza tomasse conta, entretanto, ela nunca substituiria a falta que Daniela me faria. Talvez eu deveria ter dito a ela o que estava acontecendo. Não sei se isso mudaria algo, mas ao menos ela saberia a minha verdade.
Quando o enterro terminou, e eu me vi a sós, sentei-me na grama diante de seu sepulcro.
- Agora você sabe, não é? - eu falei, esperando que Daniela me ouvisse - Eu queria ter te mostrado o que eu podia fazer. Queria ver a sua cara... - sorri comigo mesma - Eu também adoraria ter te apresentado a Guilherme. Tenho certeza que você iria gostar dele, e iria dizer disfarçadamente pra mim que ele era um gato.
Dei uma pausa. Não pude evitar que o sentimento que envolvia minha alma ao pensar em Guilherme se evidenciasse.
- Sabe, eu acho que o amo.
Em meio a um suspiro, olhei para o céu cujas nuvens brancas navegavam em frente ao sol mas não eram capazes de escondê-lo. Deixei minha visão ser levada até uma das árvores que habitavam o lugar. Bem-te-vis brincavam entre si, movimentando as folhas da copa cheia e verdejante. Um deles voou, o outro o seguiu. O vento balançou as folhas da árvore, acariciou-me e fez meus cabelos dançarem. Ele pareceu sussurrar em meus ouvidos coisas que não se mostram em palavras, apenas se sentem.
Sim, eu tinha certeza que eu o amava.
Sorri e olhei mais uma vez para onde Daniela descansava, despedindo-me antes de me levantar e caminhar para fora do cemitério.
Guilherme havia me emprestado o carro. Ele resolvera tudo para mim no dia anterior. Dera até um jeito na bagunça que ficara na minha casa. Eu entrei no veiculo e dei a partida para ir embora dali direto para onde eu morava.
Depois de seguir por um caminho alternativo tranquilo, eu cheguei em casa e rapidamente peguei minhas roupas e algumas coisas importantes. Dei uma boa olhada na sala. Era impossível não lembrar da cena pavorosa, e esse era um dos motivos pelos quais eu não continuaria ali. Eu conversara com Guilherme na noite passada, e ambos concordamos que não era uma boa ideia eu permanecer morando ali. Para mim, não me parecia estranho eu ir morar com alguém que eu conhecia relativamente a pouco tempo, considerando que, em resumo, esse alguém era Guilherme, além de tudo o que acontecera.
Com uma pequena mala nas mãos, girei a chave na fechadura e saí, em seguida entrando novamente no carro.
Voltei pelo mesmo caminho alternativo antes de seguir pela estrada para voltar para a casa de Guilherme. Resolvi ligar o radio. Uma estação de rock dos anos 80 foi a primeira a começar a tocar. Deixando-me levar pelo ritmo da música, não percebi o exato momento que um carro prata começou a me seguir. Olhei pelo retrovisor várias vezes durante o percurso, dois homens estavam no veículo, que mantinha-se a todo instante bem próximo à mim.
Subitamente, ele acelerou e bateu com força na minha traseira. Eu tive que me esforçar para não perder o controle do veículo.
Droga. Esses demônios já estavam me fazendo perder a paciência.
Acelerei para tentar fugir, ultrapassando os carros à minha frente e esquecendo completamente das regras de trânsito. Eles não desgrudaram, pelo contrário, também ultrapassaram os carros e aceleraram ainda mais, batendo em mim outra vez. Eu não pensei duas vezes, fiz uma curva, saindo da estrada e indo direto para uma construção paralisada que ficava por ali. A perseguição só acabou quando eu parei com o veículo no interior da construção e eles pararam logo atrás.
As paredes concretadas abrigavam duas enormes aberturas onde provavelmente seriam feitas janelas. Algumas colunas sustentavam a estrutura. Os raios de sol que entravam pelas aberturas destacavam a poeira que flutuava e aos poucos assentava-se no chão de cimento.
Com a energia pronta para sair por qualquer parte do meu corpo, desci sem medo. Os dois homens também. Ambos eram bem parecidos, magros, com barba por fazer e cabelos escuros que em um quase passava dos ombros e estava em parte preso para trás e em outro eram curtos e formavam um topete bagunçado. Vestiam roupas pretas e coturnos militares, e suas feições mostravam que provavelmente eram irmãos, quando humanos. Tinham olhos tão negros quanto o abismo mais profundo, dos quais eu não me recordava ter percebido no primeiro possuído que eu havia visto. Esses dois definitivamente eram diferentes daquele.
- Olhá só! - o de cabelo curto e talvez o mais novo disse para o outro - A menininha que brinca com luz está tentando bancar a corajosa.
- Pode fazer a festa com ela, mas deixe a alma para mim, "irmãozinho".
O primeiro veio até mim com um sorriso macabro que eu já conhecia, e tentou bater no meu rosto para me derrubar. Porém, eu esquivei do seu golpe e rapidamente segurei sua face com a minha mão, envolvendo-a com meus dedos abertos. Transferi a energia e coloquei luz dentro dele. Gritos de dor mesclados a grunhidos foram emitidos de sua garganta, a luz escapava pelos seus olhos, boca e por onde mais encontrasse espaço para sair. Ele caiu e se contorceu no chão, até parar de se mover.
O mais velho então veio furioso para me matar de vez. Sem dúvida, a força que ele possuía superava a minha, portanto, eu teria que ser bem ágil.
Ele me pegou pelo braço com brutalidade, mas eu coloquei a luz sobre minha pele como uma blindagem, e ele queimou a mão ao me segurar, soltando-me. Sem perder tempo formei esferas luminosas e empurrei-as contra ele. Elas não surtiram o efeito que eu pretendia, causando-o apenas queimaduras. O homem possuído então desferiu-me um soco doloroso que atingiu-me na boca.
Desgraçado.
Carreguei o máximo de energia que pude em meus membros. Puxei sua cabeça para baixo pelo cabelo e lhe dei uma joelhada, que brilhou ao acertá-lo. Fechei com força minhas mãos, que cintilavam uma aura amarelada, para socá-lo o quanto conseguisse. Eu não tinha muita força para bater, mas a magia ajudava em muito, tornando meus golpes mais intensos do que normalmente seriam. Ele tentou segurar meus braços para me parar, mas ele não era capaz de suportar a queimadura ao tocar na luz da minha pele.
No instante em que o percebi mais fraco - por conta da magia que o estava ferindo - chutei-o para que ele perdesse o equilíbrio e caísse. Assim que o derrubei, joguei-me por cima dele para não deixá-lo levantar, formei uma estaca afiada de luz na palma da minha mão e cravei em seu peito. O corpo humano físico nada sofreu, porém, vi seus olhos se arregalarem e seu pulmão puxar de repente o ar, mostrando que o havia ferido no coração de seu espírito maligno. Demorou poucos segundos para que ele não se manifestasse mais.
Levantei-me e passei o dorso da mão na boca, para limpar o sangue que escorria por um corte em meus lábios, resultado do seu soco. Foi uma sorte eu só ter sofrido isso, sem dúvida nenhuma minha blindagem de luz me protegera. Caminhei até o carro a fim de ir embora daquele lugar, mas algo chamou minha atenção e impediu que eu seguisse meu rumo. O homem mais novo despertou e, com uma certa dificuldade, olhou em volta. Fui até ele e percebi que seus olhos não eram mais negros, e haviam dado lugar a um azul celestial.
- O que aconteceu comigo? O que... aconteceu aqui? - ele me perguntou ao me avistar.
Surpresa por vê-lo vivo, corri até o outro que eu havia acabado de matar e tomei seu pulso, que estava um pouco fraco, mas ainda presente.
Eu havia os livrado. Tinha dado a eles sua vida de volta.
Virei-me ao que acabara de despertar. Seu olhar ainda era confuso, sem entender o porquê de estar naquele local.
- Simplesmente vá para casa. - eu disse à ele - E cuide do seu irmão.
Eu o deixei antes que ele fizesse qualquer pergunta. Ainda um pouco perplexa, peguei o carro e saí dali.

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Prosa da dor.


Acordar. Sobreviver. Voltar a dormir. Acordar. Sobreviver. Voltar a dormir.
A rotina mata-me aos poucos. Está doendo. Está sangrando.
A cada minuto dói mais.
A cada minuto, a poça aumenta.
Cada minuto parece toda uma vida.
Tique-taque, tique-taque.
A hora não passa.
Estou presa nos ponteiros.
Estou cega.
Estou surda.
Estou muda.
Estou morta.

sábado, 29 de agosto de 2015

Sonho n° 4 - Da ponte e do choque



Diante de mim, havia um breve precipício, que abrigava um lago cinzento e opaco, um píer de madeira e uma ponte feita de duas cobras gigantes entrelaçadas que ligava uma ponta do precipício à outra.
- Cuidado pra você não cair no lago. - Gustavo me disse - Os peixes de lá não são uma coisa bonita de se ver.
Minha mente prestou atenção no que ele disse, mas meu corpo pareceu não se importar.
Num impulso precipitado, tentei atravessar as cobras correndo, mas elas se mexeram e eu não soube ter equilíbrio sobre suas escamas escorregadias. Depois do segundo passo, eu cai desastrosamente no lago turvo. Tentei saltar rapidamente até a beira para que os peixes não me pegassem, mas sem sucesso.
No mesmo momento em que cai na água, já pude sentir centenas de peixes, que se assemelhavam a enguias, deslizando entre um e outro e ao mesmo tempo em minha pele também. Eu podia dizer que havia mais peixes que água naquele lago. Eles me proporcionavam uma sensação horrivel quando encostavam em mim, era como um choque. Meu corpo inteiro estremecia por dentro, como se meus órgãos estivessem vibrando e minha pele estivesse adormecendo. A cada toque horripilante que os peixes me davam, eles iam me jogando em direção à beira, como se eu me estivesse sendo arremessada como uma bola de basquete.
Eu finalmente fui jogada para fora do lago, no chão de pedregulhos e areia que antecedia a água, e por um tempo não fui capaz de me mexer. Meu corpo continuava tremendo por dentro, e eu parecia estar tendo uma leve convulsão. Meus músculos perderam toda a força.
Gustavo desceu para me ajudar. Quando ele me pegou pelo braço, eu já consegui me recompor. Ambos subimos novamente para o começo da ponte. Eu tentaria de novo, com mais cuidado. Afinal, precisava chegar do outro lado de qualquer jeito.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Cartas à Severina IV


Querida Severina,
Tenho mandado-lhe cartas a miúdo, não se incomode. Não sei porque insiste em bater na porta, se sabes que ela não se abrirá.
Não, Severina, não tente passar pela fechadura. Tu não passarás.
Pare, pare de bater incessantemente! Deixe-me. Não há lugar para você.
Tome, dou-te um lençol rasgado. Fique como lembrança porque não voltarás nunca mais. Não sou albergue.
Passar bem.
Tua velha amiga

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Angelus (parte 8)



Fui tocada pelo sopro matinal. Lentamente acordei, lembrando-me do que havia acontecido no dia anterior. A tristeza pesou meu coração novamente.
Olhei para o lado, e percebi que Guilherme não estava mais ali. Uma lembrança vaga o mostrou beijando minha testa enquanto eu dormia, e dizendo que iria até minha casa e voltaria em breve.
Eu me levantei da cama e abri as cortinas da janela. A luz do sol me banhou com suavidade, enquanto eu tentava novamente procurar a energia em mim. Eu havia percebido então que eu não poderia usá-la enquanto não tivesse domínio sobre mim mesma.
Voltei para a cama, dessa vez sentando com as pernas cruzadas. Eu já havia feito isso antes, há muito tempo atrás. Em meu mesmo instinto primitivo que fazia-me saber o que fazer com a luz, eu sabia que isso me ajudaria. Deixei que meus olhos pesassem e se fechassem, de pouco em pouco, fui deixando meus membros, esquecendo meu corpo físico, mergulhando na escuridão da minha consciência evidenciada através da minha mente vazia. Concentrada no ritmo da minha respiração e do meu coração, eu sentia apenas a fonte de energia emanando luz entre os dois pólos emocionais do peito e do umbigo, além da consciência completamente revelada. Era bem diferente da última vez que havia meditado. Eu não lembrava-me de ter conseguido ir tão fundo.
Eu deixei tudo fluir naturalmente, deixei que tudo se movimentasse sem nenhum tipo de trava ou impedimento. A luz brilhou e começou a caminhar por todo o meu eu, até encontrar a tristeza e o pesar. Ela os encobriu, levando um certo tempo até desmanchá-los por completo.
Lentamente, fui voltando a inundar meu recipiente. Senti meus músculos, minha pele. Pensamentos voltaram a habitar a mente. Por fim, abri os olhos.
No mesmo momento, movimentei minhas mãos, fiz a energia percorrer até elas, dessa vez sem obstruções, e ela as iluminou com intensidade.
Meu momento de satisfação foi interrompido pela campainha. Guilherme já havia voltado? Não, ele não tocaria a campainha.
Eu vesti rapidamente minha roupa do dia anterior e fui para a porta da sala, verificar quem era. Um rapaz magro, vestindo uma camiseta azul clara e uma calça jeans, aguardava do outro lado do olho mágico. Abri a porta, e ele sorriu ao me ver.
- Bom dia, senhorita. - Tuan me cumprimentou, levemente surpreso.
[...]
- Eu lamento por sua perda, Amelie.
Eu sorri, agradecendo.
Ele se servia com o café que o ofereci, encontrado por mim na cozinha, certamente preparado por Guilherme antes de sair.
- Bom, um dos motivos da minha visita é perguntar se vocês estão cientes da bagunça que fizeram.
- Como assim?
- Você não andou vendo o noticiário de hoje, não é?
Peguei o controle na mesa de centro e liguei a TV. Depois da previsão do tempo do dia, os repórteres falaram sobre um tiroteio misterioso numa das estradas locais. Não tinham muitos detalhes a fornecer, mas diziam que as testemunhas contaram sobre duas pessoas armadas num carro preto em alta velocidade.
- Ah, caramba... - eu me surpreendi.
- Eu não tive dúvidas de que eram vocês dois.
Ele deu risada antes de continuar.
- E eu daria tudo pra ver a cara dessas pessoas, quando viram vocês atirando em demônios no meio da noite.
Eu também ri ao imaginar de repente a cena.
- Com certeza esse detalhe elas não deram aos jornalistas. - falei.
Nunca em minha vida eu imaginei essa situação. Nem nos meus breves devaneios loucos.
Eu abrira meu coração para achar graça das coisas. A meditação permitiu que o pesar sobre a morte de Daniela não impedisse meus sentimentos bons de surgir, da mesma forma que não impedia minha energia de correr. Eu ainda o sentia, porém ameno, como se eu a tivesse perdido há vários anos, como se eu simplesmente tivesse superado.
Observei Tuan levando a xícara à boca, atento ao noticiário.
- Como vocês se conheceram? - perguntei, curiosa.
- Ah... - ele pareceu se empolgar.
Sorveu o último gole de café e deixou a xícara vazia na mesinha.
- Eu era uma criança meio problemática, com pais mais problemáticos ainda. Inventei de fugir de casa aos 10 anos de idade, e acabei indo parar em uma outra cidade, com frio e com fome. Lembro-me muito bem dessa noite. Eu me perdi no interior de um bairro, e dei de cara com uma rua sem saída, com casas de veraneio que abrigavam o vento como as únicas habitações. Sentei-me no canto da calçada, para dormir ali mesmo e tentar encontrar o caminho de casa quando amanhecesse. Foi quando eu avistei uma criatura horrorosa que eu só tinha visto em pesadelos até então, que me olhava da calçada oposta. Aquilo correu em minha direção e eu nem tive tempo de fugir. Ele me feriu com as unhas afiadas e começou a sugar minha vida, que aliada à dor, era um prato cheio para ele. Guilherme me encontrou a poucos segundos da minha morte. Era uma criança como eu, mas matou a criatura e me carregou nos ombros até uma das casas vazias da rua, onde ele tinha um lugar improvisado para morar. Ele me contou sobre os demônios e sobre quem ele era. Na verdade, ele teve que me provar que fazia ilusões para que eu acreditasse. Nós nos tornamos parceiros, e desde então nos virávamos juntos pra fugir dos demônios e para sobreviver. Eu poderia ter tentado voltar para casa, não havia motivos para que eles me caçassem além do fato de eu estar com Guilherme. Entretanto, eu duvido que meu pais sentiram minha falta. Por que eu voltaria? Eu não o deixaria sozinho em troca de um teto e um prato de comida, em um lugar onde eu não era tão bem-vindo.
Tuan olhou bem para mim. Percebeu que eu estava atenta à história, e continuou.
- Mais ou menos aos 16 anos, mas com identidades falsas de 18, nós conseguimos nos estabelecer cada um em um lugar. Guilherme foi morar sozinho em uma casa pequena de um canto esquecido da cidade. Eu consegui ir morar com uma moça mais velha, mas não por muito tempo. Quando os demônios a mataram, percebi que nunca conseguiria voltar a ter uma vida comum ou me distanciar de Guilherme, pois eles tentariam chegar a ele através de mim, do meu ódio, do meu corpo.
Eu lembrei de Daniela novamente. Por um breve momento. Contudo, não lamentei.
- Foi nessa época que meu interesse, e é claro, minha necessidade, por armas se intensificou, e eu comecei a fabricar a própria munição quando descobri o que a prata fazia nos fedorentos.
Ele colocou um pouco mais de café na xícara.
- Diga-me uma coisa. - eu disse.
- Se eu puder.
- O que há nas ilusões de Guilherme que deixam os demônios vulneráveis?
- Bom, ele nunca me disse. Em todo esse tempo, minhas próprias deduções me disseram que a couraça dura que eles possuem é como uma armadura de batalha. Eles mesmos a endurecem enquanto estão nesse mundo. Guilherme faz com que eles de alguma forma relaxem, fiquem mais fracos. Mas não há como saber que tipo de ilusão faz isso.
Fomos interrompidos pelo motor do carro de Guilherme, que estacionava em frente a casa. Ele abriu a porta e entrou, nos vendo sentados no sofá.
- Tuan. O que o traz aqui?
- Bom dia pra você também, parceiro.
- Se é sobre o que passou no noticiário, eu já estou sabendo.
- Não é só sobre isso.
Guilherme percebeu o tom sério de Tuan, e veio sentar ao meu lado no sofá.
- O que está acontecendo?
- Não sei se você já percebeu, mas demônios mais poderosos estão aparecendo.
Eu me lembrei do que havia matado Daniela, mas pelo que eu tinha concluído, aquele era do tipo que se apoderava do corpo de humanos, um pouco mais evoluídos, mas ainda sim comuns. Ele certamente falava de demônios ainda mais fortes, que eu ainda não tivera a oportunidade de ver.
- Sim, eu percebi.
- Você sabe que eles não aparecem assim do nada. Isso não está me cheirando nada bem.
Tuan voltou seus olhos escuros a mim. Não olhos acusadores, e sim alertantes.
- É por minha causa. - afirmei o que eles já sabiam.
- Guilherme... - chamou a atenção dele, que estava pensativo. - O que você pretende fazer?
- Eu já previa isso há muito tempo. Não há muito o que ser feito.
Percebi o quanto o assunto os preocupava. Não perguntei, mas tinha certeza que eles já haviam tido um encontro nada agradável com esses demônios poderosos.
- Eu acho melhor vocês se prepararem. - Tuan avisou. - Algo me diz que há coisas terríveis por vir.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Vômito, doce.


Aqui estou, olhando para o céu cinzento, deixo a tristeza sair aos poucos. Num beco sem saída, é aí que estou. A tristeza me encurrala e me vejo coberta de pombos, bicando-me os olhos, deixando-me cega. Mas não os afasto; a dor alivia o nó que você apertou em minha garganta.
Você está ouvindo?
Eu simplesmente me perdi na mistura da ânsia, medo, falta de ar, olhos cegos e doces, doces que enfio goela abaixo para vomitar toda esta angústia dentro de mim.
Mas por que você tinha que proferir aquelas palavras, eu gritei chutando a parede, escorregando em meu vômito, doce.
Caída no chão, os pombos continuaram a bicar-me os olhos. Não senti vontade de levantar. Continuei ali, deitada, cega, respirando teu cheiro, ansiando a tua mão.

Angelus (parte 7)



Guilherme dirigia em alta velocidade na estrada. Alguns demônios seguiam o carro, ele mantinha a Desert Eagle em uma das mãos, atirando nos que alcançavam a janela dianteira. Como ele conseguia atirar, recarregar a arma e dirigir ao mesmo tempo, era um mistério.
Eu tentei sentir a energia em mim. Eu sabia que ela estava lá, no fundo, mas eu me sentia pesada, aflita. Sentimentos ruins que se misturavam, que tomavam-me por completa, não permitiam que eu a movesse. Obstruíam-na. Tudo o que eu podia fazer era observar as criaturas nos alcançando.
Olhei novamente para Guilherme, para a pistola em sua mão. Talvez fosse a hora de colocar em ação o que eu havia aprendido.
Eu me virei, puxei a mochila preta que estava no banco de trás e trouxe-a ao meu colo, abrindo e retirando dela uma pistola Glock 18. Guilherme apenas me olhou por um segundo, e em seguida voltou a atenção aos demônios. Ejetei o cartucho para conferir se ele estava carregado. A munição prateada brilhante enchia-o por inteiro. Empurrei-o de volta, desci o vidro da janela do carro e coloquei a cabeça e o braço para fora, empunhando a arma e mirando nos demônios que voavam bem próximos a nós. Sem pensar demais, puxei o gatilho, segurando firme a pistola automática que lançou uma bala seguida da outra e controlando sua força de recuo. Os projéteis atingiram quatro demônios, pude ouvir um grunhido estridente emitido por cada um deles. Ao caírem no chão, afundaram, como se o asfalto tivesse derretido de repente, num liquido negro borbulhante semelhante ao que eu acabara de ver em minha casa. Quando sumiram, liberaram a visão para outros demônios iguais ao que possuíra o colega de Daniela que corriam com velocidade. Um deles deu um salto alto e longo para alcançar o carro. Ele grudou na traseira do veículo com os quatro membros e tentou vir até mim andando como uma aranha. Dei três tiros, acertando-o em cheio. A criatura soltou da lataria e ficou para trás, sendo absorvido pelo líquido assim que atingiu o chão.
As criaturas que ainda corriam tornaram-se cautelosas. Eu tentei atirar neles, porém desviaram rapidamente das balas. Guilherme acelerou ainda mais. Os demônios ficaram um pouco mais afastados com a diferença de velocidade, mas não por muito tempo. Seis deles partiram para cima com tanta velocidade que quase não pude vê-los se movendo. Num reflexo rápido, desferi vários disparos que derrubaram a maior parte deles. Ao puxar o gatilho para ferir o último, a pistola não respondeu e nenhum projétil foi atirado. A munição havia acabado. Antes que eu pudesse voltar meu corpo para dentro para repor as balas, o demônio segurou meu braço e alcançou a janela. Olhei para ele sem deixar que meu olhos fossem aprisionados pelos seus. Um flash da cena pavorosa do corpo morto de Daniela veio em um instante à minha visão. O sentimento ruim e pesado que estava em mim tornou-se de súbito esbraseante, queimando-me por dentro. Eu usei essa energia mordaz que havia acabado de surgir para lhe desferir socos violentos em seu rosto monstruoso. Eu sentia que podia socá-lo até que meus músculos não pudessem mais se mover, e ainda sim aquele sentimento não iria ser saciado.
Um disparo forte interrompeu meus golpes na criatura. A bala passou muito próxima ao meu rosto, atingiu a testa do demônio e o impulsionou para longe. Virei-me para Guilherme, que apontava a arma para o meu lado da janela. Ele a recolheu em seguida.
- O que você está pensando? - bradei, irritada.
- Não dê entrada para eles, Amelie. Você não pode deixar o ódio tomar você.
Respirei fundo. Só então percebi o quanto aquela energia que utilizei era maligna.
- E além disso, eu nunca acertaria você.
- Nem pensei nisso. - eu simplesmente confiava inteiramente nele.
- Quer ajuda para se acalmar?
- Não é necessário. Já estamos chegando, posso me controlar.
Demorou menos de dois minutos para chegarmos a casa de Guilherme. Tenho certeza que vi carros passando por nós, mas não sabia dizer se aquelas pessoas tinham visto algo, e nem o que pensaram a respeito da cena. Ele parou o carro de qualquer jeito, rapidamente desligando o motor. Descemos do carro e corremos para a porta de entrada. Ele se certificou de que o sal ainda bloqueava a passagem, e então abriu a porta, dando passagem para mim e fechando-a logo em seguida.
Eu olhei pela janela assim que entrei na sala. Vi os demônios de longe, olhando para a casa, e em seguida indo embora.
- Eles não vão nos importunar aqui. - Guilherme disse.
Ele se aproximou de mim, com uma expressão preocupada. Tocou com os dedos meu pescoço, onde o demônio me segurou. Julgando pelos seus olhos que não conseguiam esconder a raiva, devia haver uma marca bem feia ali.
- O banheiro fica na segunda porta do corredor. Tome um banho. Eu vou arrumar o quarto para você. - ele disse, num tom onde ele não conseguia controlar as sensações ruins que estava sentindo.
Talvez ele nunca tivesse vivido uma situação assim. Talvez ele não soubesse como agir diante desse sentimento de preocupação.
Guilherme deu as costas, entrando pelo corredor. Voltou segundos depois com uma camiseta verde escura nas mãos.
- Eu não tenho roupas limpas para você. Mas talvez você ache isso confortável. - ele me entregou a camiseta.
Não tive tempo de agradecer. Ele deu as costas novamente para ir preparar o quarto para mim.
Segui até o banheiro. Ao fechar a porta, voltei meu rosto ao espelho. Uma marca levemente roxa e algumas escoriações circundavam meu pescoço. Tirei a roupa e soltei meu cabelo, dando uma última olhada no espelho antes de ligar o chuveiro. A água quente caiu sobre mim, e eu deixei ela lavar as coisas ruins.
Daniela. Por mais que eu parecesse distante, por mais que eu não ligasse com frequência. Ela era minha irmã mais velha.
Eu a amava. À minha maneira.
E agora ela estava morta por minha causa.
Dei um soco na parede de azulejos. Era luz. Só luz. Por que tinha que atrair desgraças? Por que tantas vidas tiradas, tantas vidas destruídas? Por causa de luz?
Eu simplesmente terminei o banho, me sequei com uma das toalhas dobradas e empilhadas em cima do armário e me vesti com a camiseta macia de Guilherme, cujas mangas chegavam no cotovelo e que me cobria até quase metade das coxas. Eu não me lembrava dele ser tão grande. Ou talvez eu que fosse pequena.
Sai e fui em direção ao quarto de hóspedes, onde eu havia dormido pela primeira vez. Um travesseiro branco e um cobertor fino, cinza e felpudo me aguardavam.
Olhei para trás. Guilherme estava parado na porta, com o mesmo olhar de preocupação e culpa.
- Por favor, pare. Não há nada pelo que se culpar. - falei, sentando na cama.
- Eu não deveria ter deixado você entrar lá sozinha.
- Do que você está falando? Não importa se eu estava sozinha, eu o matei.
- Você poderia ter morrido.
- Mas eu não morri!
Minha voz saiu num tom mais alto do que eu pretendia.
- Desculpe. - ele murmurou - Eu quero proteger você. Eu não quero que aqueles desgraçados com aquelas mãos imundas tentem te machucar.
- Guilherme, confie em mim, na minha capacidade. - suspirei - Eu sou capaz de matá-los, sou capaz de me defender sozinha.
Ele não quis dizer mais nada, apenas me fitou por longos segundos, e a cada instante, toda a carga daquela noite crescia em mim.
- Eu... Sinto muito por sua irmã. - disse por fim.
Ele apagou a luz e se virou para sair dali.
- Espere. - eu o impedi.
Pela primeira vez naquele dia, não pude evitar que a carga transbordasse. Lágrimas começaram a escorrer dos meus olhos.
- Fique comigo essa noite. - eu pedi.
Guilherme veio até a cama, sentou-se e me abraçou. Eu deitei e me aninhei em seus braços deixando as lágrimas escorrerem enquanto elas tinham força.
Embalada pelo seu calor e pelos batimentos do seu coração, eu então adormeci.