sexta-feira, 29 de julho de 2016

A história de uma menina com fome


Ela era como uma garota qualquer, exceto pelo fato de que ela sentia fome. Ela sentia fome de tudo. Fome de conhecimento, fome de gentileza, fome de viajar o mundo, fome de comida, fome de amor.
Era isso que a movia. Era isso que causava nela a vontade de levantar e continuar tentando. Era isso que a libertava.
E, por ter tanta fome, sempre se doava demais às pessoas. E isso porque ela costumava acreditar que as pessoas também sentem fome. E, de fato, sentiam. Mas algumas não se contentavam com a medida que ela podia dar, absorvendo toda a sua energia. E, por diversas vezes, quis desistir. Diversas vezes se perguntou o que estava fazendo e porquê.
E então, lembrava o quanto sua vida seria vazia se abrisse mão de sua fome. E o quanto isso se tornaria pior se abrisse mão da fome alheia.
E então, continuava sua vida de doação, aproximando-se de uns e outros, transferindo tudo o quanto poderia para tornar a situação do próximo melhor, aguardando o dia em que alguém fizesse o mesmo por ela.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Ser ou estar?


Ela sempre foi assim. Aliás, sempre esteve assim. (Importante diferenciar ser/estar). Acho que estar por tanto tempo acabou criando a crença de que ela sempre fora assim. E ninguém jamais conseguira resolver o problema que ela era. 
Ela era como uma granada, pronta para explodir.
Mas ninguém sabia. Por fora, sempre aparentou tranquilidade, serenidade, felicidade e todos os -ades- que remetam a qualquer coisa feliz ou positiva. Organização era com ela mesma: desde os fios de cabelo até horários de rotina, tudo sob seu controle.
Ah, as aparências!
Mal sabiam todos que por dentro ela era uma bagunça sem fim, o ápice da desorganização. Mal sabiam todos que ela por dentro se magoa, se entristece, se enraivece.
E eles não podiam saber.
Ela sempre foi considerada como forte. Como exemplo. Como referencial. Todo o tempo, em todos os lugares. Ela jamais poderia deixar isso transparecer. 
Em lugar nenhum.
A situação se tornava uma bola de neve, sem qualquer ocasião em que ela pudesse se libertar dessas correntes. E então, ele aconteceu.
Em verdade, ele já estava presente por algum tempo, mas sua presença em momento algum tinha revelado toda a luminosidade que carregava dentro de si - isso porque ele era muito bom em esconder. 
Àquela hora, tudo parou, e ela não podia acreditar.
Finalmente, ela poderia se libertar de tudo aquilo que a transformara em um outro alguém. E ser ela mesma, sentir verdadeiramente. De repente, a felicidade parecia mais próxima e a esperança enchia seu coração.
De repente, a vida tornou-se mais leve.

Perseguindo o Dragão




Aqui permaneço, eternamente. Um pesadelo infinito que me aprisiona, um templo em ruínas. O céu é vermelho, como se o sol estivesse sangrando. Eu tento não olhar para cima, para não me lembrar que eu mesma estou sangrando. Sempre estive.
Subo as escadas à minha frente. Degraus de pedra a se perder de vista. Meu vestido em farrapos ainda tem a mesma cor laranja, desbotada depois de vivenciar dia após dia o mesmo percurso sem fim. Correntes presas aos meu pulsos se arrastam atrás de mim, elas são pesadas e dolorosas, cada elo mostrando o número de vezes que o pesadelo recomeça e se repete. As escadas se acabam, enfim, e fico diante de uma fonte envelhecida. Dentro dela, a água azulada sussurra em minha mente o que fazer. Há cacos espalhados pelo chão, todos os vasos de cerâmica e pedra estilhaçados furiosamente. Pego um pedaço afiado, e corto minha própria mão, deixando o sangue escorrer dentro da fonte, esvoaçando no azul da água, e o sangue me revela o que eu incessantemente busco. Fios azuis de luz emergem da água e formam arabescos diante dos meus olhos. A imagem que se forma desperta o melhor em mim, ou pelo menos o que resta de mim.
Ele. Sua alma. Magnífica e acolhedora. A alma que não consigo alcançar, a alma à qual me agarrei com todas as forças, mas que, sem força, deixei se esvair. Eu esqueço que estou em um pesadelo, tudo o que existe naquele momento são seus olhos entristecidos direcionados a mim. Eu quero tocá-lo, eu preciso tocá-lo. Porém, sua alma se dissipa assim que meus dedos o tocam. Um toque tão frio... Eu não quero que ele se vá novamente, desesperada tento agarrá-lo novamente, mas os fios se esfumaçam em meus braços, tirando novamente o que tem de melhor em mim.
Pergunto-me quantas vezes isso se repetiu. Todas as vezes eu sempre esqueço que acabará da mesma forma, todas as vezes eu me apaixono de novo por uma ilusão, todas as vezes acredito que ela é real, e todas as vezes o desespero de me perder toma conta de mim. Minha insanidade foi o que me restou, só isso.
Caminho, sem vida, por aquele templo, arrastando as correntes. Mais uma vez, eu não me lembro o que há no final do caminho, mas não tenho medo, eu não tenho mais nada a perder. Ando por minutos que parecem dias, o tempo não é meu aliado. A cada passo, sinto que despedaço, numa dor pulsante que insiste em me ferir sem descanso. Sinto fome, sinto frio, mas não há como me satisfazer dentro da minha própria loucura.
Chego a um abismo que me convida a me entregar. No fundo, um mar de mãos se emaranhando em movimentos de súplica. Eu não reluto, e deixo o abismo me levar, soltando meu corpo em sua beirada e caindo sem me importar com minha dolorosa existência. As mãos do fundo me pegam, me seguram e me puxam para baixo, afogando-me em meu próprio desespero. A agonia ameniza, e eu abro meus olhos.
Aqui permaneço, eternamente. O pesadelo recomeça, me devolvendo na beira da escada. Eu olho para minhas mãos, e me aterrorizo com as cicatrizes de cortes, marcadas por minhas tentativas frustradas de fugir de mim mesma, desse templo que me constitui, dessa loucura que corrompeu minha mente. As cicatrizes me enfurecem. Não existe mais espaço em mim para suportar essa maldição!
Lágrimas amargas de raiva e angústia irrompem pelos meus olhos. Eu subo as escadas correndo, ignorando a dor e o peso das correntes, e a fonte está no mesmo lugar, vasos de cerâmica e pedra decorando todo o recinto. A raiva me consome, minha cabeça queima. Eu grito e derrubo com fúria todos os vasos, jogando-os e quebrando-os, e os cacos se espalham pelo chão. Giro as correntes, e elas derrubam colunas que se erguiam sob o céu vermelho. Na minha ira, levanto as correntes e as jogo sobre a fonte, que se destrói. Um impulso e uma cor azul são libertados, e os fios de luz voam, livres. Então eu me lembro o que há no fim do caminho. O abismo.
Eu corro, com a esperança que havia me deixado há muito tempo, perseguindo os fios que voam rapidamente em direção ao fim. Eu avisto o abismo, e sem hesitar, pulo.
O céu se torna azul noturno, meu vestido esvoaçante se torna alvo. Sinto a loucura desprender de minha mente, permitindo um sentimento que há muito tempo não conhecia mais. Liberdade.
Minha queda é suave, lenta e calma. O vento contra mim seca minhas lágrimas. Atinjo a água como quem deita em plumas, afundando levemente sob a luz da lua. Dessa vez, a agonia é doce. Fecho os olhos, deixando minha vida afundar com meu corpo.
Minha alma pura deixa meu recipiente doente. Flutuo em direção a outra alma, em direção ao que me faltava, o que eu buscava e alcancei. Ele me envolve com seus braços calorosos, e seus olhos me olham com amor. Eu o beijo, e mato então tudo de ruim que havia crescido em mim.
Estávamos livres.

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Sonho nº 9 - Da sedução e da agonia



Aquela fonte guardava um mistério encantador e perigoso. Suas águas claras e profundas - profundas demais para uma fonte d'água - escondiam algo que uns temiam, outros ansiavam.
Eu permanecia parado em frente à fonte, minha cabeça estava em outro lugar, quando a criatura apareceu para mim. Ela tinha um rosto tão inocente, que não pude entender por que ela era temida. Olhava-me com um olhar esverdeado doce e tímido. Hipnotizador. Em um instante, eu já a amava perdidamente.
Ela me chamou para perto. Aproximei-me, entrei na água, juntei-me a ela. Seus cabelos negros se espalhavam ao redor de seu corpo.  Ela sorriu sutilmente. Como era bela, como era graciosa! Ela definitivamente não era como as outras que as histórias contavam, era diferente, era bondosa, tinha um coração capaz de amar, capaz de me amar. Ela mergulhou lentamente, eu mergulhei também. Então pude ver seus belos seios e sua cauda brilhante, mais nada além disso, meus olhos estavam presos aos seus. Em baixo d'água, sua sensualidade então aflorou. Provocante, sedutora. Muito mais do que um homem como eu poderia querer. Ela me encheu de desejo, eu queria beijá-la, queria tê-la, mas eu precisava de ar, precisava voltar à superfície.
Eu tentei me impulsionar para cima, mas a sereia me lançou um olhar tocante, como o de uma criança carente.
- Não se vá agora, por favor, fique comigo mais um pouco. Você não quer ficar comigo? - ela pediu com uma voz meiga.
Eu não pude resistir ao seu pedido. Mesmo afogando, eu decidi ficar com aquela sereia linda, desejando seu corpo. A agonia da falta de ar parecia me deixar ainda mais excitado. Eu não precisava respirar mais, se eu pudesse ter aquela sereia só para mim.