quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Terras Brancas (parte 13)

 


De repente, os fios de fumaça azul pararam de flutuar. Estagnados, não tinham mais meio por onde transpassar e subir. Como se a película da atmosfera tivesse sido cutucada e se desfeito tal qual uma bolha de sabão, gravidade e ar escapavam e gradualmente deixavam de existir. As nuvens, antes amálgamas de intensa atividade contorcionista, pararam também. Tudo estagnado, abafado, sem movimento.

Levantei-me do chão, tentando captar qualquer brisa fraca. Nada movia-se. Meus pulmões buscavam ar fresco.

Nada.

Olhei em volta. Procurava qualquer ponto daquele ambiente em que eu pudesse tentar respirar melhor. Em certo ponto, não tão ao longe, era possível identificar uma transição natural, onde árvores começavam a despontar, pontilhando a planície com suas copas cada vez mais tomadas pela superfície branca conforme mais distantes se encontravam. O gramado acompanhava a transição, tendo suas folhinhas também cada vez mais alvejadas, tornando o verde - já enfraquecido - cada vez mais escasso.

Comecei a caminhar em direção ao branco, com a esperança de encontrar ar gélido para inundar os pulmões. Era como estar inserida em um lugarzinho fechado, claustrofóbico, quente, onde cada segundo que se passava aparentava ter menos oxigênio. Mesmo que, ao meu redor, o espaço aberto se esticasse confortavelmente em todas as direções.

Em minutos caminhando aceleradamente, cheguei até onde as árvores começavam. O oxigênio cada vez mais escasso. Nenhuma folha ousava mover-se em farfalhar. Nenhum átomo daquele lugar se aventurava a engatilhar qualquer movimento. Dentro do meu corpo, dormências percorriam em calafrios nas extensões dos músculos e das artérias. Sangue fugia do rosto. Tontura em meu cérebro tornava meu andar irregular. Tentava puxar mais ar, na vã tentativa de satisfazer-me. A tentativa esforçada fazia um barulho contraído e arrastado na garganta, que escapava pela minha boca aberta.

Aos poucos, meu ouvido começou a captar sons fluidos de água corrente. Meu caminhar se transformou em corrida, lenta e trôpega, em busca da fonte de água cujo som demonstrava estar cada vez mais perto. Torpor sob meus olhos embaçava-os com um esfumaçado escuro. As árvores sem mais verde, o chão completamente alvo, chegando a uma margem que escondia parcialmente o que vinha a seguir. Tinha que existir um lugar pra respirar.

Ao alcançar a margem, vi claramente um curso de rio com águas cristalinas, cujo leito refletia o céu por trás das copas brancas. Na imagem aquática levemente distorcida, entretanto, as nuvens ainda se moviam. Do outro lado da margem, as árvores continuavam, mas com dificuldade era possível ver ao longe que elas se tornavam verdes novamente. O rio, então, era um ponto central.

Meu corpo, em últimos esforços sob a agonia, se jogou nas águas. Frio e instável, o rio convidava meu mergulho até o limiar transparente de seu leito. Ao finalmente atingir o fundo, emergi na superfície do rio, adentrando ao ambiente espelhado e finalmente respirando na atmosfera das nuvens contorcionistas novamente. O ar fresco da brisa sobre o curso d’água submergiram em minhas vias respiratórias, eliminando rapidamente todo o torpor crescente.

Ainda permaneci um tempo dentro do rio, deleitando-me da água fria e do oxigênio em abundância tomado por gotículas cristalinas e frescas, antes de nadar em direção à margem e me jogar sobre a grama branca.

Olhando para o céu, tive a sensação de receptiva chegada.

Terras Brancas. Era ali onde eu estava.

~

Cheguei em casa como quem se deita em uma cova. As telas sendo carregadas com o peso de toneladas. Horríveis, medonhas. Minha arte quebrada, podre e fétida. Ninguém se atrevia a chegar perto, ninguém se atrevia a levá-las para casa. Eu não fazia nada de bom.

O tilintar das chaves ao tentar encontrar a certa para destrancar a porta queimava meu cérebro ao entrar pelos meus ouvidos. Meus dedos pareciam embaraçados em nós cegos. O molho caiu no chão, causando um som estilhaçado. Respirei, fechei os olhos, não para conter qualquer tipo de implosão das minhas veias, mas sim para tentar senti-lo.

Abaixei e peguei direto a chave certa, introduzi na fechadura e girei a maçaneta.

O ar quente com cheiro de louça suja agrediu meu rosto cansado. Entrei pelo ambiente mal iluminado, desviando dos objetos desorganizados e das roupas no chão. A casa vazia - ele provavelmente havia saído para tocar.

Chutei um pino de cocaína vazio e ele rolou e colidiu com outro. Não me surpreendia mais, não causava mais a mesma sensação gelada no peito. Nenhuma reação. Não me dei ao menos o trabalho de recolhê-los do chão. Apenas joguei as telas no canto do quarto e me deitei na cama.

O teto do cômodo parecia a centímetros do meu nariz, claustrofóbico. As teias de aranha dos cantos enrolavam em meu pescoço. Por onde eu olhava havia sujeira. Por onde eu olhava, ocre cinzento e verde oliva mesclado. Sem vida.

O limbo começara a engordar novamente há várias semanas. Insuportável. Há várias semanas que eu resistia à vontade de sentir. Em contraponto, cada vez mais o comportamento autodestrutivo de Léo piorava, como se estivéssemos correndo caminhos contrários simultâneos. Nem as cordas e as tintas se conversavam mais. Distorção de bemóis e cores frias existindo em realidades paralelas.

Não era capaz de não pensar na têmpera de uma linha vermelha. Eu precisava de uma linha vermelha em tudo isso.

Coloquei-me sentada na beira da cama. Minhas mãos tremiam. Aquela necessidade, aquele precisar, era a única coisa que eu sentia há tempos. Do ângulo em que eu estava, podia observar com detalhes o cinzeiro transbordando de restos de bitucas amassadas, cinzas se espalhavam, manchando mais pinos de plástico vazios. Círculos de líquido semisseco, grudentos e lodosos, estavam aderidos à superfície de madeira.

O cheiro etílico, ácido, queimado e fermentado.

Contraditoriamente, um vazio absoluto dentro de mim que não deixava espaço para aguentar mais nada. Não aguentava... mais.

Levantei-me da cama. Cada passo trêmulo meu ligando-se a um pensamento diferente conforme eu andava. Trovões, vermelho, cisne, fumaça, espelhos, desenhos, fluídos, amor, inércia, dor, vazio. Vazio.

Não restava nada para me apegar. Não restava cordas dissonantes para que eu me agarrasse.

Abri todas as gavetas, minha pele coçava. Mergulhava as mãos nos objetos bagunçados, buscando. Agarrei uma caneta, rasguei o primeiro pedaço de papel que tinha à vista e escrevi uma frase. Em seguida, peguei uma tela em branco, pequena, esperante. A pele dos meus dedos contava em sussurro para o tecido áspero: a espera era em vão, ela seria vazia para sempre.

Encostei a tela nos pés da mesinha, nos elementos imundos. Coloquei o pedaço de papel embaixo do peso do vidro do cinzeiro, de forma que ele caia pendente sobre o branco da tela.

Foda-se toda essa merda.

A esse ponto, todas as partes do meu corpo tremiam. A presença esmagadora do pensamento pincelava rudemente meu interior branco com um delicioso carmim. Meu coração se contorcia acelerado. Era inebriante a sensação de agonia pungente. Entretanto, que vida existia entre esses despejos momentâneos na corrente sanguínea, entre esses orgasmos doentios?

Caminhei até o banheiro e continuei procurando por outro objeto nas gavetinhas. No quarto, a tela jazia. Branca e vazia, como meu sentimento no começo e no fim.

"Que você me perdoe algum dia.", pendurado no ar estagnado, era sua única companhia.

[...]

Parecia que minha pele explodiria de dentro para fora. Olhei pela janela, o sol frio ainda tentava se desvencilhar dos braços das nuvens predominantemente espessas. Os lençóis brancos, o quarto branco, os curativos brancos em meus pulsos, tudo era desconfortavelmente amargo, com um cheiro forte de assepsia. A janela - centralizada nas cortinas também brancas – tinha uma tela de proteção, e fora dela uma grade de ferro. Em contraste com o quarto asséptico, a tela e a grade tinham camadas de poeira e fuligem preta encrustadas. A fuligem conjuntava-se a mim como únicos dois elementos sujos e impuros daquele ambiente, quebrando a perfeita harmonia alvejada.

Senti a presença de Léo ao lado da cama, próximo aos meus pés, então virei meus olhos a ele. Roupas amassadas envolviam um corpo exausto, olheiras marcavam sua feição abatida, e serviam como cama para os olhos negros que, por um segundo, cintilava aquela noite no prédio abandonado, diluindo um alívio quase imperceptível. Logo depois, tudo desapareceu, despencou em um infinito. Decepção e frustração profundas entraram no lugar. Um olhar que entendi, e que já sabia que veria se eu sobrevivesse.

O ambiente silenciava-se diante nós, olhando um para o outro. Ele engoliu uma parcela de ar abruptamente interrompida no meio, desistindo da frase que ia sair de sua boca. Minha mente limpara-se, assemelhando-se à assepsia da sala – nada crescia dentro dela para que fosse usado como fala. Suas mãos moviam-se junto às pernas, apertavam-se, os dedos se torcendo.

Muito tempo para um olhar de mútua imprecisão.

Então ele virou-se lentamente em um movimento quebrado, parecendo lutar contra si mesmo. Abandonando a chance de dar vazão ao turbilhão de possibilidades de diálogo sobre o que eu fiz ou sobre como o dia poderia se desenvolver bonito lá fora, ele simplesmente virou as costas e saiu do quarto.

Seu olhar em desaprovação e intensas mágoa e tristeza foi minha última lembrança dele.


terça-feira, 9 de agosto de 2022

Terras Brancas (parte 12)



Lucas deitou-se sobre o gramado parcialmente branco e fixou os olhos no céu. Ainda suavemente intimidada pela corda pendente, fiz o mesmo. As folhinhas pequenas e estreitas eram esmagadas pelo meu corpo e, em contato com minha pele exposta dos braços, pinicava. Mesmo assim, era agradável sua textura pontilhista e sua calidez, tal qual como o sol tivesse incidido sobre elas durante toda a extensão do dia.
Opostamente a nós, o céu ainda movimentava-se. Dessa vez, tumultuado. Não havia ordem ou sentido ou frequência. As formas de nuvens iam e vinham, se encontravam, fugiam umas das outras. Se mesclavam, dividiam-se. 
- Aquela parece uma formiga gigante – a nostalgia naquela frase dele quase me fazia chorar.
Eu não enxergava nenhuma formiga, nem qualquer animal ou qualquer coisa distinguível. Apenas um desordenado borbulhar de vapor denso de água. Como se o tempo estivesse seguindo e voltando simultaneamente, colidindo-se.
À nossa volta, minha visão periférica captava fios de fumaça azul subindo, e eu os seguia indo em direção ao alto. Era algo consumindo-se, tentando desaparecer. Em certo ponto, misturavam-se com a visão das nuvens e passavam a fazer parte delas. Daquela amálgama.
- A gente tá chegando – Lucas afirmou.
- Onde?
- Em Terras Brancas.
Ele então fechou os olhos, e eu tive a sensação de que ele fosse desaparecer com a fumaça. Segurei sua mão e ele olhou pra mim.
- Por favor, não vá embora. – minha voz era de súplica – Por favor, fica comigo.
Ele sorriu.
-Eu não vou a lugar algum.
Assim que terminou a frase, ele não estava mais ali. Porém, sua presença permanecia nos meus ombros, perto da minha cabeça, nas folhinhas estreitas e nos fios de fumaça.
Ainda assim, eu me senti sozinha.

~

O segundo maço vazio jazia na lixeira da cozinha. A atmosfera pesava como em uma cena de crime. O piso da casa expelia aos olhos de qualquer pessoa manchas de sabão seco, o material da pia embaixo do escorredor de louças acumulava micro organismos viscosos e escuros, a poeira deitava preguiçosa e imóvel sobre as superfícies amadeiradas do quarto. As lâmpadas frias pareciam refletir mais intensamente tudo isso, deixando tudo especialmente incômodo. Poucas coisas naquele dia estavam certas.
- Vendi dois quadros hoje. – minha voz exprimiu uma dúbia sensação de esperançosa frustração. Havia dias que todas as telas que saíam de casa retornavam para ela ao anoitecer. Entretanto, encaminhar duas delas para outras pessoas estava longe de ser o ideal.
Léo estava tão distante que me aparentava ser minúsculo em meio ao silêncio esmagador que se seguiu. Eu quase podia dizer que ele não estava ali, se não fosse pela fumaça que saía de sua boca.
Em momentos como esse, minha mente jogava dezenas de jogos com ela mesma, e em todos eles eu saía a perdedora. Julgada culpada pela cena de crime que englobava a casa, o quarto, nós dois. Culpada por qualquer coisa que o tivesse deixado assim. Eu era a ré, a juíza e a algoz.
Desisti de falar mais e o deixei sozinho. Peguei uma roupa limpa e decidi tomar um banho. Demorei minutos intermináveis, imóvel sob a água quente, antes de sequer tocar no sabonete. O som da água caindo não era o suficiente para diminuir a angústia do silêncio aterrador.
Vapor saiu junto a mim pela porta do banheiro quando eu a abri. Toda a extensão da minha pele estava mergulhada em um enorme sentimento depressivo de consistência densa que inundava até o teto todos os cômodos daquela casa, jorrando intermitentemente do corpo quase vivo de Léo.
Impossível aguentar.
Atravessei toda a densidade até o sofá, onde ele estava sentado. Eu me ajeitei ao lado dele e deitei a cabeça em seu colo. Ele apagava e abandonava a bituca no cinzeiro, inerte.
- Conseguiu marcar? – quebrei novamente a densidade.
Ele me olhou nos olhos pela primeira vez naquela metade do dia, por apenas um segundo, e desviou o olhar para a raiz do meu cabelo.
- Não. Me disseram no posto que eles estavam sem psicólogo.
Léo desembrulhou um terceiro maço que estava em seu bolso, e acendeu outro cigarro.
- Me disseram também que eu preciso de um encaminhamento do clínico geral. E a agenda de consulta está fechada e sem previsão para abrir.
Ergui a mão e passei os dedos por trás de sua orelha. Não era só a negativa do posto de saúde que o estava deixando assim. Eu senti seus olhos mudarem e seu corpo enrijecer desde que vimos aquele casal na praça, enquanto o sol ainda ensaiava para reinar o centro do céu. Aqueles homens se olhavam com paixão vívida, sentados em um dos bancos de madeira. Mesmo que nenhuma das partes de seus corpos se tocassem – eu tinha certeza que por receio dos olhares desconhecidos e das piores possibilidades consideradas – permaneciam entrelaçados por um laranja avermelhado latente e pouco sombreado. 
Léo perdera os seus sorrisos sutis desde essa cena.
- Eu...
Longa pausa.
- ... um dos caras sentados no banco da praça namorou o meu irmão. – ele finalmente revelou, como se estivesse lendo os meus pensamentos através dos meus fios de cabelo.
Uma dor gelada percorreu meu corpo. Lembranças dolorosas pareciam refletir de suas têmporas.
- Você não acha que poderia ser bom... visitá-lo? – tentei.
Mais uma pausa silenciosa.
- Eu não me lembro do meu pai abandonando a gente. – rodeou - Mas ele se lembrava bem, ele estava lá, sentiu tudo. Uma coisa leva à outra. 
Pensei que nada mais ia sair de sua boca.
- Minha mãe não o aceitava como ele era. Acho que ela projetou nele o motivo do meu pai ir embora. Hoje eu vejo tudo isso, e eu posso estar errado, mas não consigo ver de outra forma. – a fumaça saia de sua boca em meio à frase. – Mas na época eu não vi nada disso. Eu achei que foi só minha culpa. Por ter chamado ele de viado.
Meus dedos se entrelaçavam nos pelos de sua barba, que já há algum tempo bagunçava-se em pelos rebeldes não aparados. Léo estremecia num desejo de chorar que não era atendido pois faltavam lágrimas – elas já haviam sido abundantes um dia, e hoje só restava cansaço. 
- Então não, não vai ser bom visitá-lo. – concluiu. – Assim como, de qualquer maneira, não vai ser bom fazer essa terapia que nem existe pra mim. Minha mãe já dizia: “Meu filho não é louco pra ter que ir nesses médicos.”
Mágoa cor de chumbo gotejou dentro de mim. Era muito difícil ter de ouvir sua desistência depois de todo o esforço que tive para convencê-lo a procurar ajuda. Muito difícil lidar com esse orgulho inútil que ele tinha. Eu estava cansada.
Levantei-me e peguei meu celular e chaves.
- Onde você vai?
Pensei em dizer um milhão de coisas. Pensei em dizer que a culpa não era dele. Que era culpa dele. Que o seu orgulho era uma tentativa falha de mascarar seu medo. Que poderíamos pagar um psicólogo, mesmo que o dinheiro mal desse para pagar a conta de luz, mas não importava, daríamos um jeito. Que eu não aguentava mais olhar pra ele e o enxergar com dez anos de idade, olhando paralisado para aquela porra de fresta da porta do quarto. Que ele nunca iria melhorar. Que eu nunca iria melhorar. Que eu também já havia perdido uma pessoa importante pra mim. Que nós... nós nunca iríamos melhorar.
- Eu vou respirar e já volto – eu disse por fim.
- Por favor, não vá embora.
A frase me atingiu como uma faca no estômago. Segurando as lágrimas, virei as costas e bati a porta da frente.