quarta-feira, 1 de abril de 2020

Terras Brancas (parte 8)



Com mais calma, espalhei as folhas secas e esfreguei a sola dos pés na terra sob elas.
Todo o rebuliço das raízes estremecia em mim. Eu sabia que tinha que deixá-las para poder andar. Eu tinha de arrancá-las dos meus tendões.
Puxei o calcanhar para frente e para cima. Uma dor profunda e elástica intensificava conforme eu movimentava. Meus nervos aparentavam estar sendo puxados pra fora. Era impossível continuar, suportar a dor. Cedi, e meu pé retornou ao chão com força elástica. A pressão causou um choque em meus nervos e um consequente estado de dormência. Eu respirava tremulamente, tentando engolir a agonia seca.
Na calmaria roxa do bosque, uma luminosidade sutil começou a despontar ao longe, além das árvores. Vinda do além do horizonte escuro, trazia um vento quente diurno. Muito, muito sutil. Quase imperceptível.
Era o amanhecer?
Não tinha como ter certeza. Parecia apenas uma extensão da madrugada. Era apenas a minha vontade de ver a luz do dia, projetada na realidade. Indução de pensamento.
Contudo, eu precisava. Precisava que fosse. Mesmo que eu não conseguisse distinguir se a luz estava realmente crescendo, ou se meus olhos me iludiam.
Eu tinha a necessidade instintiva e impulsiva de correr em direção ao possível amanhecer. Eu o queria, como se o precisasse para viver.
Juntei tudo o que havia dentro de mim para puxar os tendões. Toda a coragem e força visceral. A dor de puxar mil elásticos rígidos fez irromper um grunhido incontrolável em minha garganta. Impulsionada pela luz opaca, puxei com força. Um seguido do outro, vários ligamentos arrebentados causavam um pequeno impacto. Barulho áspero de matéria orgânica rompendo. O último rompimento fez meu pé vir para frente de súbito devido à força empregada. O choque subia até atrás dos joelhos, pela panturrilha.
Aproveitando-me do estresse da dor e da adrenalina, puxei com ainda mais força o outro calcanhar. Gritando madrugada adentro, rompi todos de uma vez, desequilibrando para frente e caindo sobre as folhas.
Eu estava livre.
Meus olhos captaram o laranja e o rosa invadindo o roxo, atrás das árvores agitadas, antes de cair em um torpor escuro.

~

A tela em branco esperava pacientemente o carinho das cerdas molhadas do pincel. Os caminhos sinuosos coloridos que davam-na sentido de existência. A mão que segurava o instrumento, por sua vez, ainda doía, devido ao movimento da articulação que esticava a pele e forçava os cortes ainda não cicatrizados completamente. Era a primeira vez em muito tempo que eu tentava fazer algo fluir através delas. Entretanto, mesmo há minutos diante da superfície branca, nenhuma cor ousava pousar em minha mente.
Léo então entrou pela porta da sala. Irredutível, andava com a solidez de uma estátua de gesso. Há quatro dias não olhava para mim. Eu o ouvia chegar no meio da madrugada a cada última noite, fazendo ruídos na cozinha, com a mente flutuando em algum outro lugar, estimulada por seu cérebro sob efeito de qualquer coisa que o tornasse entorpecido, pegasse-o com mãos gigantes e macias e o sustentasse longe da sobriedade. Deitava pela sala mesmo, com a roupa ébria que trazia da rua. Era sua própria anestesia, seu jeito de atingir o mesmo objetivo que o meu, por meios diferentes e mais ortodoxos.
Léo trazia na mão a guitarra, que há tempos também não tocava, senão por ocasiões necessárias à nossa renda, sem criação. Em três anos, eu nunca tinha visto isso acontecer.
Tentei não deixar que minha consciência colocasse a frente qualquer elemento que fortalecesse ainda mais o bloqueio. Sentada, de costas para ele, fechei os olhos. Eu queria ver qualquer cor, qualquer uma, que não fosse o negro inquebrável do meu interior.
Subitamente, o som arrastado de uma das cordas medianas atingiu meus ouvidos, e ao mesmo tempo, uma névoa roxa pulsou dentro das minhas pálpebras. Logo em seguida, uma sequência lenta de notas escuras, tocadas com sentimento latente. Tons profundos de púrpura. Abri os olhos, e mergulhei as cerdas na tinta roxa. Com lentidão, tracei linhas tímidas no apático branco.
Ele tocava com a intensidade pungente do sofrer e do amar. Ele enfim estava criando algo. E era lindo.
Eu segui traçando, misturando, colorindo todo o espaço. Azul marinho, fúcsia e um pouco de cinza escuro.
Ele dedilhava destemidamente um caminho tortuoso, como se estivesse tentando atravessar um mar tempestuoso e profundo. Como se a noite fosse infindável. A melodia subia e descia como um pedaço de madeira à deriva. Estava tentando não se afogar nas próprias ondas, em si mesmo.
Eu o sentia.
As notas, lenta e suavemente, deslizaram para um final calmo. A calmaria de um amanhecer róseo. No horizonte mareado, com suavidade esfumacei o fim da madrugada com tons claros, apenas o suficiente para que se houvesse dúvidas se o amanhecer realmente viria.
Alguns segundos longos após o final do soar da última nota, dentro de um silêncio massivo, senti-o se aproximar. Léo se ajoelhou devagar do meu lado esquerdo, pegou minha mão borrada de tinta com o cuidado que se toca em algo rachado, levou à boca e beijou os cortes. Imediatamente, as lágrimas saíram dos meus olhos, transbordando o mar que ele havia acabado de transformar em música. Ele puxou minha outra mão e beijou também as linhas avermelhadas dela. Beijou os pulsos. Só então levantou os olhos de lua nova até os meus.
-Eu senti tanta falta dos seus olhos... - não pude evitar dizer em meio às lágrimas.
Ele me abraçou, aninhando o rosto em meu peito. Eu envolvi sua cabeça com meus braços. Meu coração não sabia mais como se mover. Senti as lágrimas dele molhando minha blusa e os soluços tremendo seu corpo.
-Me perdoa... - foi só o que ele conseguiu murmurar.
Deixamos por longos minutos que o mar nos balançasse e nos inundasse. A noite avançava lá fora. O silêncio confortavelmente nos abraçava, permitindo vir as ondas fortes. Por um momento eu queria não ter pegado a lâmina. Queria não ter causado isso a ele. Mas não consegui. Eu precisava. Precisava sair daquele limbo de torpor, que só cedia para dar lugar àquela tristeza profunda. Precisava da minha anestesia. 
-Se você tivesse feito, se tivesse realmente feito, eu não sei se conseguiria... - ele pausou para dar espaço a mais lágrimas - Se um dia você fizer, Dia, eu não sei se posso lidar.
-Eu sei.
-Me perdoa.
-Não tem o que ser perdoado - eu o abracei mais forte.
Eu conhecia cada parte - algumas não reveladas - do seu interior. A sua intensidade, a sua sensibilidade, mas o seu orgulho também. Ele abaixou as águas para se permitir ceder, dessa vez. Entretanto, eu sabia o quão marmóreas poderiam ser as suas decisões. Ele conhecia os problemas nos quais eu estava imersa, porém eu também conhecia os dele. Haviam coisas que eu tinha em mente que não poderiam ser perdoadas. Nunca.
Depois que as lágrimas cessaram, ele olhou com atenção o quadro. Não estava terminado, eu ainda traçaria alguns delineados, mas continha todos os sentimentos em forma de cores. A ideia do mar noturno agitado e do céu roxo sobre ele, um provável amanhecer púrpura, as nuvens escuras. Elementos não claros e nítidos, mas instintivos.
-Talvez eu coloque um piano, uma progressão de acordes diminutos ou menores pra contextualizar a melodia. No final posso fazer um contraponto com o piano arpejando em maior.
-Isso quer dizer que há um amanhecer afinal?
Léo olhou para mim novamente.
-Eu amo você. Amo como nunca amei e como nunca poderei amar ninguém.
Relaxei todo o meu corpo. Ele me perdoara. Respirei o ar que faltava.
-Noturno. - ele ponderou - É assim que vou chamá-la.
-Diz muito sobre você.
Eu aproveitei a proximidade para beijar sua testa.
-Eu também amo você, com tudo o que tenho.
Léo abriu espaço para um sorriso. Ele levantou-se, suspirando, na mesma delicadeza com a qual ajoelhou-se, e caminhou até a janela fechada da sala, arrastando a mão sobre o maço de cigarros e o isqueiro sobre a mesinha enquanto passava. Abriu as cortinas e escancarou a janela, dando passagem para que a noite urbana adentrasse o recinto e soprasse o ar movimentado em meio ao apartamento estagnado. Acendeu um cigarro, e mergulhou o olhar no longínquo.
Eu levantei-me e juntei-me ao seu lado na janela, estendendo a mão para que ele me desse um cigarro. Ele sorriu ao virar-se para mim, nos olhos havia o brilho das lembranças.
Permanecemos ali, desfrutando a presença um do outro, soprando fumaça para o céu noturno estrelado. Dividindo calor, fitávamos a mesma extensão celeste escura, cuja imensidão, por mais que tentasse, não era capaz de equiparar em número e tamanho as sensações que entrelaçavam-se entre nós.