segunda-feira, 2 de março de 2020

Terras Brancas (parte 6)



Eu queria correr no escuro. Sem preocupações sobre o que quer que estivesse embaixo dos meus pés - embora certamente se assemelhassem consistentemente com folhas secas caídas. Cair através daquela noite nunca poderia ter sido tão lentamente sóbrio. E isso era bom, na verdade, pois permitira que eu analisasse cuidadosamente cada porção de fragmento. Cada porção do que eu era. E estava incompleto. Eu sabia que precisava ir além, precisava adentrar mais, precisava e queria correr.
Uma escuridão quase esmagadora pairava no bosque. Uma escuridão fraturada por manchas arroxeadas que vinham do céu noturno sobre as árvores altas. A música da clareira e do rádio no corredor ainda tocava, continuadamente, com notas de veludo transpassando os galhos e as raízes. Vinda de lugar nenhum. Era, em associação ao bosque arroxeado e à escuridão, acolchoadamente confortável. Transbordava paz.
Deixando essa paz inundar meus sentidos, parei de correr. Olhei com paciência cada pequena porção das árvores que me rodeavam. Olhei para cada caminho belo por entre elas, misteriosos e quietos, esperando que eu me aventurasse no escuro.
Repentinamente, a música parou.
Absoluto silêncio sob o bosque.
Eu observei novamente os caminhos. Eles ainda esperavam que eu me aventurasse, mas por que não pareciam mais tão confortáveis?
Não sabia por qual abertura adentrar, não sabia para onde ir.
O silêncio ficava cada vez mais aterrador. Um pavor irracional cresceu em meu estômago. Contudo, não havia escolha. Para onde eu iria voltar?

~

Eu procurava naquele lugar algo que pudesse levar minha consciência e minha atenção para longe de mim mesma. Música era sempre algo que elevava meus sentidos a um outro mundo, alheio à todos - ou talvez na verdade compartilhado por todos -, levitando a realidade tanto quanto o momento de imersão em minhas pequenas telas e papéis. Inclusive, esperava também encontrar alguma inspiração nas notas agressivas, depois de desperdiçar tanto tempo em ilustrações vergonhosas. Talvez aquilo desse às minhas ideias uma singela luz. Eu queria um choque, um golpe dilacerante nos meus conceitos gastos. E um pouco de loucura extasiante também.
Uma banda de metal extremo e outra de punk já haviam contado sua pequena história ácida e melodicamente contundente sobre o palco, que estava montado precariamente com pallets sob peças grandes de madeira plana, iluminado por algumas luzes vermelhas. O ambiente noturno, proibido e inabitável do prédio abandonado era densamente escuro e tinha pichações por toda a extensão das paredes e colunas, que milagrosamente ainda sustentavam a construção. Nos cantos, pessoas se banhavam de suas doses incansáveis de seus entorpecentes preferidos - cada um eleva seus sentidos de sua própria maneira. Sobre os pallets e as madeiras, as caixas de som de baixa qualidade recebiam os cabos, preparando-se para intensificar os instrumentos da próxima banda. Pude ver um cara de cabelos castanhos caídos até os ombros com um microfone na mão, quando virei minha cabeça em reação ao som do teste que ele estava executando. Eu permanecia virada para a abertura do prédio que levava até uma área externa, aparentando uma garagem, direcionada ao leste do palco, de costas para as pessoas que começavam a se aglutinar em frente ao centro das atenções. O cigarro que eu havia acabado de acender ainda queimaria durante uns minutos, antes de eu poder querer me aproximar do som.
Ana e Michel, os quais me convidaram a ir àquele covil, haviam desaparecido do meu campo de visão há vários minutos. Eu sabia que estariam provavelmente em algum dos cantos escuros ou então nos fundos da garagem, transando. Depois da fumaça queimar minha garganta ao entrar e sair, eu me perguntei se essa seria realmente a forma que eu gostaria de me matar, dentre tantas outras mais tentadoras e menos lentas. Um copo que contivera alguma mistura alcoólica barata, presenteado por Ana, jazia no chão ao lado do meu pé.
Em meio aos pensamentos, às tragadas e às observações engolidas pela leve alteração do meu cérebro sutilmente ébrio, não percebi a breve passagem de som, tampouco prestei atenção nas palavras do vocalista introduzindo a apresentação. Percebi apenas quando a primeira música começou, iniciada com um solo meio quebrado - mas incrível - da bateria. O baixo acompanhou a voz meio rouca, entrando ambos no mesmo momento. As palavras entravam em uma sintonia perfeita e poética, falando de algo que, a princípio, não tinha um sentido explícito. Depois dos primeiros versos, a guitarra finalmente soou.
Eu imediatamente olhei para o palco, para a banda. Para o guitarrista.
Aquelas notas implícitas, cáusticas, vermelhas como a luz que cobria o ambiente. Uma seguida da outra, porém independentes, descompromissadas com o próprio tempo. Elas pareciam dançar sem rumo, fugir, mas no final acabar se encontrando com o ritmo da bateria. Era agressivamente calmo. Princípio de insanidade. Aquelas cordas de distorção alternadamente leve e pesada chegavam em mim como uma contorcionista que faz malabarismos loucos sobre uma corda bamba, permanecendo contraditoriamente equilibrada, de forma perfeita. Antítese.
O dono dos dedos que corriam pelas cordas de aço tinha os olhos voltados a si mesmo. Como se não pudesse emergir da profundidade da qual estava retirando as notas. Diferente dos colegas, tinha o cabelo cortado na máquina, no mesmo comprimento de sua barba. As roupas escuras, porém simples, cobriam a pele morena. Ele não aparentava ter mais que dois anos de diferença de mim. Completamente imerso, ele emanava uma complexidade misteriosa. Cada nota era um pedaço que retirava de si. Cada nota carregada de circulação sanguínea pulsante, densa e linda.
Deleite-me até o último segundo da música. E da próxima. E da próxima.
Ana então apareceu com Michel, claramente apoiando-se nele.
- Ela não ta muito legal - disse ele alto e perto do meu ouvido ao se aproximar de mim - Vou levá-la embora. Você vem?
- Vou ficar mais um pouco por aqui. - tive que elevar a voz também, para competir com o som da banda.
Michel me fez um sinal de joia com o dedão e sumiu com Ana entre a pequena multidão em direção à saída.
Continuei acompanhando o restante do show. Levemente distante da aglutinação, preferi permanecer ali mesmo.
Ao final da apresentação - e com o fim do meu deleite - os rapazes deixaram o palco e as pessoas moveram-se novamente para os cantos, dispersando-se lentamente, para esperar a organização para o próximo e último show. Eu estava sozinha, em um lugar perigoso, incerta sobre o meu destino, sem hora pra voltar,. Isso me agradava muito. Era o mais próximo que eu chegava da felicidade. Aliás, para onde eu iria voltar?
Enquanto apreciava o sentimento desprendido, uma figura aproximou-se da extremidade oposta da abertura. O moço de roupas escuras e pele morena escorou-se com o ombro no batente, cruzou as pernas de forma relaxada e retirou um maço de cigarros do bolso da calça. Dele, retirou e levou um cigarro à boca, pegou um isqueiro do mesmo bolso e acendeu, protegendo a chama dos ares noturnos com a outra mão. A chama se apagou assim que ele recolheu as duas mãos, voltando a direita com os elementos para o bolso e repousando-a lá. Com a esquerda, ele pressionou entre os dedos indicador e médio o fumo e removeu da boca, levando para baixo e pendendo o braço com sutileza decisiva. A fumaça saiu com leveza pela sua boca e ele permaneceu olhando para frente, ao longe. Todos os seus movimentos eram estranhamente... atraentes.
- Ei. - eu chamei de forma solta, e seus olhos se viraram a mim. - Pode me arrumar um cigarro?
Ele imediatamente pegou o maço do bolso e o estendeu aberto a mim. Peguei um e ele o recolheu. Em seguida, me entregou o isqueiro.
Enquanto eu acendia, senti seus olhos em mim. Ao devolver o objeto, comprovadamente encontrei seus olhos negros diretamente. Um segundo longo se passou.
- Qual seu nome? - uma voz profundamente grave saiu de sua garganta.
- Diane. E o seu, guitarrista?
Ele soltou um sorriso de canto de boca ao ouvir a designação.
- Léo.