domingo, 8 de março de 2020

Terras Brancas (parte 7)



Escolhi o caminho da esquerda. Comecei a andar lentamente por ele, carregando meu medo irracional. Os troncos escuros subiam até além das nuvens roxas. Eu os cruzava com a sensação de que eles era braços, evitando que a extensão celeste caísse e convergisse brandamente com a extensão do solo. Lençol sobre a cama. Eu estava no meio das camadas.
Andando sob o silêncio ensurdecedor, fora da inebriante canção acolchoada e da prazerosa - porém, de certa forma, limitadora - anestesia que ela me causava, detalhes minuciosos chegavam à minha pele. Minúsculos movimentos se desvelavam, e os mínimos sons eram percebidos pelos meus ouvidos.
Eu sentia todo um sistema radicular se agitando no solo abaixo dos meus pés. Árvores gigantescas enraizadas, tentando se movimentar, tentando ser diferentes, porém contidas pelas raízes profundas, presas ao mesmo lugar.
Elas estavam na terra. Estavam nos meu pés. Segurando o meu sentir, o meu pensar. Estavam em mim.
Como se move e se muda algo que está enraizado tão profundo?
O caminho que meus pés traçavam parecia difícil de ser percorrido. Pesos invisíveis contendo meus tendões para baixo e para trás. Eu puxava e puxava. Tão difícil...
Meu corpo assemelhava-se aos troncos escuros. Estagnados no mesmo lugar. Eu tinha dado passos tão arrastados, com tanto esforço, por que eu ainda parecia continuar no mesmo lugar?
Então, parei. Parei de puxar, de me mover. Apenas respirei fundo. Eu não podia fazer nada.
Não podia.
Fazer nada.
Minha memória reconheceu a imobilidade. Eu já passara por isso antes?
As lembranças que surgiam em minha mente seguiam despreocupada cronologia aleatória. Como num sonho, onde tudo acontece ao mesmo tempo. Passado, futuro e presente. Elas se mostravam como queriam se mostrar, puxadas pelos elementos que eu interagia em meu caminho. Apareciam, invadindo a minha memória límpida. Os fragmentos, as cores, as raízes.
Sim, eu me lembrava. 

~

Balões coloridos decoravam todos os cantos das paredes da sala e da cozinha, que tinha uma mesa de jantar no centro, com tampo de mármore e pés de ferro branco. Sobre a mesa e sob os balões, um bolo de morango com cobertura cor de rosa reinava, imponente, com exércitos de docinhos sortidos ao seu redor e torres de garrafas de refrigerante. Tinha uma coroa de seis velinhas vermelhas acesas, prontas para serem apagadas e receberem um pedido. O ambiente estava escuro para enfatizar as chamas tremilicantes. Todos ao redor batiam palmas felizes, cantando um parabéns alegre. Eu não sabia muito bem o que fazer, tendo a atenção de todos voltada a mim. Portanto, eu me concentrava em olhar para as velinhas e balançava meu corpo de um lado para o outro, com as mãos juntadas atrás de mim. Meus dedinhos se entrelaçam uns nos outros, talvez tentando desembaraçar os sentimentos que eu ainda não sabia como lidar. Mesmo assim, eu estampava um sorriso tímido.
Olhei para o papai e para a mamãe, que estavam do lado direito da mesa, sorridentes. Quando todos começaram a repetir meu nome, mamãe moveu a boca, pronunciando palavras sem som: "Sopra, sopra."
Então eu mentalmente pedi: "Quero poder voar!", e soprei, apagando as seis velinhas - uma para cada ano.
Todo mundo vibrou e bateu palma. Mamãe e papai chegaram perto assim que as luzes se acenderam e ficaram parados atrás de mim, levemente debruçados. Disseram-me para olhar para frente, mas eu queria cortar o bolo, então estendi a mão em direção a ele bem no momento em que uma luz branca extremamente rápida invadiu todo o recinto por menos de um segundo. Eles então voltaram a se esticar, relaxando, enquanto meus olhos se acalmavam do pequeno susto que a luz repentina os causara. Todos bateram palmas novamente.
Eu não entendia muito bem porquê precisava de tudo isso, porquê não podíamos só comer o bolo e os docinhos. Porém, comecei a maquinar: e se o bolo fosse realmente uma rainha, e todos fossem obrigados a reverenciá-la, para que ela pudesse atender meu pedido? Então eu compreendi o motivo, e minha mente se aquietou.
Mamãe tinha dito que eu precisava escolher pra quem eu daria o primeiro pedaço do bolo, que precisava ser alguém a quem eu queria bem. Eu não queria mal a ninguém que estava ali, não gostaria de ter que escolher. Mamãe disse que eu tinha que escolher, que era tradição. Então eu o dei para ela mesma, porque queria muito bem à mamãe, e porque alguma coisa no rosto dela parecia pedi-lo pra mim. E foi muito gostoso ver o seu sorriso grande quando eu disse que o bolo seria dela.
Quando todos acabaram de comer, juntei-me novamente aos meus amigos e aos filhos dos amigos do meu pai - que se tornaram também meus amigos naquele momento - e decidimos brincar de pega-pega no quintal. Um correndo atrás do outro, não tínhamos noção de tempo ou de espaço. Adultos não existiam. Hora de ir embora não existia. Pelo menos até o momento que vinham chamar pra ir embora, e implorávamos tanto que deixavam que brincássemos mais.
No momento que eu corria atrás do Julio, passamos perto de algumas caixas de plástico grandonas, com várias garrafas de vidro marrom dentro. Eu percebi com o canto dos olhos algumas dessas mesmas garrafas em cima de uma mesa montada do lado de fora, rodeada por homens. Papai estava lá, falando alto demais. Tinha cartinhas na mão dele, e na mão de todos os homens. Disseram-me uma vez que era jogo de adulto e não me deixaram jogar, mas parecia divertido.
Uma voz de trovão fez eu parar de repente. Eu olhei para o papai, e ele estava olhando pra mim. Disse com uma voz muito esquisita para eu parar de fazer bagunça. Eu fiz que sim com a cabeça, meio triste. Eu não estava fazendo bagunça.
Saí do campo de sua visão andando devagar. Quando já estava mais longe, comecei a correr de novo. Meus amigos tinham se espalhado por toda a casa. Corri para dentro da cozinha para procurar alguém, e vi mamãe guardando as sobras. Outras mulheres estavam lá também. Ela parecia meio séria - o sorriso grande tinha desaparecido.
Encontrei alguns na sala, com suas mães. A explosão da brincadeira se dissipara de repente, rápido como sempre aconteciam as coisas na infância. Tive que me despedir deles, pois já era tarde e todos precisavam ir pra casa. Cada um levava consigo um pedaço de bolo e docinhos embrulhados em meio às camadas dos pratinhos descartáveis - um em cima e outro em baixo - e algumas bexigas coloridas. Um por um que saia da minha casa, meu ânimo se aquietava e dava lugar a um sono inevitável.
Eu queria deitar e dormir, mas mamãe não me deixou escapar do banho. Era nessas ocasiões que eu torcia para que o tempo passasse depressa, para outro aniversário chegar, e outro e outro, para então eu ser adulta e não ser mais obrigada a tomar banho. Ia ser maneiro.
Depois do banho, mamãe me levou para o quarto. No caminho, ouvi papai na cozinha, falando coisas que eu não entendia. Ele parecia bravo com alguém, mas não parecia ter mais  ninguém na cozinha. Mamãe apertou um pouquinho minha mão, me puxando um pouco mais rápido até o meu quarto, até minha cama. Finalmente, a minha cama quentinha e fofinha. Finalmente, o Dorminhoco. Abracei com vontade o ursinho de pelúcia cor de creme, que usava uma touca de dormir azul com estrelinhas pratedas. Mamãe me cobriu e me deu um beijinho de boa noite na testa antes de sair. O beijo fazia eu me sentir mais quentinha que o cobertor peludo.
Havia uma luminária azul com estrelas - que combinava harmonicamente com a touca do Dorminhoco -, girando e girando, na mesinha do lado da minha cama. Eu gostava de dormir olhando para as voltas infinitas das estrelas, deixando-as me levar até o mundo dos sonhos. Elas voavam até muito, muito longe. As voltas não traziam as mesmas estrelas, elas eram sempre novas, vindas dos confins do universo, e iam embora para sempre, para nunca mais retornar. E eu gostava tanto, tanto de azul...
Foi mergulhada no azul que ouvi o primeiro grito. Como um trovão, uma tempestade. E outro grito, como passarinhos fugindo da chuva forte. As estrelas na luminária tremiam nos meus olhos - não tinha como fechá-los.
Levantei da cama segurando o Dorminhoco. Puxei a porta do quarto devagar, revelando a escuridão do corredor invadida por reflexos azuis das estrelas. Vários passarinhos agitados na cozinha. Eu percorri as trevas até a escada, iluminada pela luz da sala lá embaixo. Desci devagar os degraus, silenciosa, temendo assustar mais os passarinhos. Atravessei a sala, inundada pelos sons abatidos vindos da cozinha, e cheguei de mansinho à entrada de azulejos brancos.
Papai estava de frente pra mamãe, chamando ela de nomes de animais. Ela chorava, e os passarinhos saíam da boca dela, fugindo pra longe. Ela falava coisas sobre bebidas e os jogos de adultos. Um outro estrondo saiu da boca do papai, e o raio caiu tão perto que quase me deixou surda. Foi quando, com a mão aberta, ele acertou com força o rosto da mamãe, que segurou com as duas mãos onde ele tinha atingido. Ela tentou dizer alguma coisa, mas com a mesma mão ele atingiu sua boca com os dedos fechados. Ela caiu no chão, atrás da mesa que estava atrapalhando minha visão. Eu o via pisando com força do chão, igual quando alguém mata formigas no chão - formigas gigantes, porque ele pisava forte -, e via entre os pés das cadeiras e da mesa movimentos dos braços dela. Num dos pisões, ouvi um repentino barulho esquisito de estalo. Imediatamente em seguida, um grito de dor. Um único passarinho, gritando de forma ensurdecedora, com desespero e agonia, prestes a morrer.
Num impulso causado por algo muito assustador dentro de mim, eu invadi a cozinha até onde ela estava.
- Mamãe!
Ela segurava o braço esquerdo e gritava. Papai olhou pra mim, os olhos dele pareciam muito zangados. Ele perguntou se eu estava desafiando ele. Não entendi o que ele quis dizer, mas fiquei com muito medo. Apertei o Dorminhoco nos meus braços. Ele começou a vir até mim, e eu comecei a andar pra trás. Lágrimas começaram a cair dos meus olhos sozinhas. Eu tentava engolir o choro como sempre me diziam pra fazer, tentando fazer algo correto. Quem sabe se eu me esforçasse, tudo acabasse bem?
Papai vinha desequilibrando. Segurou na porta da geladeira, se apoiando para tirar um dos sapatos grandes. Continuou vindo, com o sapato na mão, o outro no pé, e o outro pé com uma meia preta. Eu fiquei parada, encostada na parede branca e fria. Fiquei parada como se fosse uma árvore. Grudei as raízes dos meus pezinhos no chão. Se eu corresse, ele ia ficar mais zangado. Se eu corresse, ele diria que eu estava fazendo bagunça.
Era isso. Eu tinha feito bagunça. Ele tinha ficado bravo por minha causa. Eu não devia ter corrido depois, ele deve ter visto eu correndo. Eles brigaram porque fui desobediente, porque fiz coisa errada.
Papai então falou pra eu pedir desculpas. Era isso. Era minha culpa.
- Desculpa... - minha voz saiu mais para dentro do que para fora.
Ele estava perto. Mamãe ainda gritava. Ele pegou meu braço com muita força, me puxou, levantou o sapato e me deu um golpe no quadril, acertando um pouco da cintura. Doeu muito mais do que as quedas que eu tinha correndo no parquinho. Muito mais do que a vez que eu cai da cama. Muito mais do que tudo que eu já tinha sentido, porque doía meu corpo e doía no meu peito, lá dentro, no meu coração. Doía tanto, porque tinha dor, culpa e medo. Engoli outra vez o choro, mas as lágrimas ainda saíam sozinhas.
Mamãe gritou pra que ele me largasse. Ele então virou-se pra onde ela estava e me soltou.
Eu ainda apertava o Dorminhoco com força. Tinha raiva das minhas lágrimas que saíam sem eu deixar.
Eu queria que o meu pedido se realiza-se agora. Exatamente agora. Queria deixar de grudar as raízes apenas para sair flutuando para longe. Voar para onde estavam indo as estrelas azuis. Para onde eu nunca mais precisasse ter aniversários, para nunca mais fazer nada de errado, para nunca mais ver a mamãe e o papai assim. Nunca, nunca mais eu queria uma festa de aniversário, porque esse era o motivo de tudo acontecer.
"Por favor.", eu pedi, "Por favor!"
Tentei me impulsionar para cima, sair pelo ar, seguir as estrelas. Para os confins do universo. Mas meus pés não saíam do chão. Colados.
As reverências de todos não eram capazes de realizar meu pedido.
Eu não podia fazer nada.