quarta-feira, 1 de julho de 2020

Terras Brancas (parte 10)



Cada copa de cada árvore inclinava-se, os galhos e as flores eram puxadas para nordeste. O vento repentino incidia sobre elas com força brutal. Todas apontando para a mesma direção.
Parei de rir. O vento era insistente, fazendo minha visão ser atravessada pelos feixes do meu cabelo que chicoteavam meu rosto. Levantei-me lentamente, tentando não desequilibrar com o empurrão do ar. A floresta de ipês inteira era de repente uma bússola, insistindo para que eu seguisse o caminho.
Fui atravessando os troncos, escorando-me a eles, seguindo a direção indicada. Eles pareciam abrir caminho para mim, deslocando-se para o lado, dando passagem. Ao longe, eu já avistava uma figura imóvel que ia se destacando com mais precisão a cada passo lento e temeroso.
Os ipês apontavam para um anjo de pedra.
Eu me aproximei cautelosamente. O anjo olhava para para cima e para o lado, a cabeça em ângulo, o olhar vazio e cinzento ao longe, bem longe de mim. As sobrancelhas estavam retas, a expressão de uma tristeza sutil, porém complacente. Os cabelos encaracolados longos acompanhavam a nuca e caíam por trás dos ombros. Suas mãos se encontravam a uma altura um pouco abaixo do umbigo, tocando-se. A mão direita parecia segurar o indicador esquerdo. Tecidos pendiam da curva do braço esquerdo levemente flexionado, e tinham sua origem nas vestes leves amarradas ao corpo, que caíam até os pés descalços depositados sobre um pedestal cúbico de rocha. 
Uma figura tão pacífica, mas de uma presença tão esmagadora. Por um único segundo, esqueci-me que era feito de pedra. Mergulhei nos detalhes de sua feição benevolente. Olhando para o longe acima da planície em que estava. Tão solitário.
Algo escorria pelo seu rosto e pingava do queixo. Escorria de seus olhos.
Eu cheguei bem perto, apoiei-me em seu braço e, pisando próximo aos seus pés no pedestal, impulsionei-me para cima, para perto de seu rosto. Eu então sequei suas lágrimas.
As asas tímidas recolhiam-se às suas costas. Atrás delas, o céu não era azul. Poderia se dizer qualquer cor entre as neutras, quentes ou escala de cinza.
Azul, não.


~


Eu não conseguia dormir.
Sentada na beira da cama, eu ouvia a respiração pesada da garota infligir rachaduras no silêncio absoluto. Meus olhos acompanhavam as peças de roupas femininas espalhadas pelo assoalho. Eu não conseguia ao menos mantê-los fechados. Todas as escolhas e consequências pesavam dentro da minha pele.
Um pequeno feixe de luz adentrava ao quarto pela fresta da cortina. Atingia minhas coxas e minhas mãos sobre elas. Eu não conseguia desviar meu pensamento ao fato de que cada músculo meu - mais do que isso, cada estímulo e cada sinapse e cada parte do meu consciente e inconsciente - movia-se até um abismo há muito premeditado. Meu corpo e minha mente faziam coisas alheias a qualquer resquício de sentimento genuíno que ainda latejava em instantes excepcionais. Minhas mãos não eram minhas, meus dedos não eram meus, minhas pernas não eram minhas. Minha boca, língua, boceta.
Eu não pertencia a mim mesma.
Eu era uma sucessão de nós em uma corda. Eu era meus vícios alimentados deliberadamente.
Levantei-me da cama. Os pés descalços doíam no chão gelado. Atravessei o pequeno estúdio no escuro até o canto dos cavaletes - a cada dia eles tomavam cada vez menos espaço no estúdio - e acendi uma luminária perto das telas. Ainda existia uma tela inacabada posicionada no cavalete do meio. Eu a retirei e a substituí por uma em branco. Na luz da luminária, localizei o branco e o preto, depositei-os em gotas na tela e os misturei ali mesmo. Um cinza fluido e mesclado. Tracei uma linha irregular vermelha cortando o cinza. Era o que estava dentro de mim. Era tão... deplorável.
Eu tentei aumentar o vermelho. Joguei laranja e marrom. Evitei o azul.
Alguns potes maiores de cores frias estavam no chão, próximo ao ângulo da parede. Elas não sairiam dali essa noite. Como não saíram na noite anterior. Eu não as conseguia tocar e consequentemente minhas telas acabaram se tornando escassas e o aluguel do estúdio atrasou. Sem as cores frias, elas se reduziam a nada.
Atrás dos potes, uma peça quadrada escondia-se por baixo de uma lona. Ela estava protegida ali, atrás da fortaleza de cores frias intocadas. Acho que para sempre manteria-se ali, oculta, exercendo sua presença esmagadora.
Eu procurei alguma bisnaga que eu poderia usar entre as que restavam próximas a mim. Embaixo de uma variedade pequena de cores, eu avistei. Paralisei minhas mãos. Como ele estava ali?
Um azul ofuscante despontava da tampinha de uma bisnaga moribunda, já tão amassada e apertada que escondia-se por baixo das outras despercebida.
Minha mão, que não era minha, pegou o azul sem que ao menos eu pudesse pensar antes.
Na verdade, eu estava enganada. Talvez fosse a única ocasião em muitas em que minha mão era realmente minha. 
Eu coloquei todo o resto de azul na tela. Eu peguei o meu pincel mais macio e o espalhei com carinho. Era o único elemento diante de mim que fazia sentido.
Larguei o pincel. Eu finalmente havia percebido.
Eu queria ser como a guitarra arrastada e subversiva. Tentava com tudo o que tinha.
Mas eu nunca seria.
Aquilo era patético. Eu queria ser um mar sem conseguir tocar no azul e no roxo. Era horrível. Era tudo horrível. Meus olhos doíam ao olhar para o cinza. Minha garganta doía. Tudo doía.
Uma onda esbraseante tomou conta de mim. Meu mar era negro e vermelho.
Peguei a primeira espátula que pude localizar e com violência cravei no tecido, puxando para baixo e abrindo em um rasgo transversal. Eu puxei a moldura de madeira com seus trapos de tecido pendurados ainda molhados, joguei no chão, pisei em uma das arestas e puxei a outra brutalmente, quebrando a moldura no meio.
- Tá tudo bem? - a voz sonolenta da garota retirou-me do transe de ódio.
Olhei para ela, que se apoiava com o cotovelo para levantar sua expressão assustada até minha direção. Só então senti a deformação nas minhas linhas do rosto e minha respiração ofegante.
- Desculpa te acordar. - fui até a cama com calma, deitando-me ao lado dela. Eu a acolhi em meu peito, e não demorou muito para que sua respiração ficasse pesada novamente. 
A luminária permaneceu acesa, e meus olhos não se desgrudavam da bagunça. Eu esperava que ela fosse embora de manhã sem me perguntar nada, mas seria ingenuidade minha achar que fosse acontecer.
Depois que tudo dentro de mim se acalmou, fui engolida pelo mesmo vazio de todos os dias e todos os momentos. Eu sabia que ele não seria completado por nenhum do meus vícios. Nenhuma luxúria ou autoindulgência falha. Mesmo assim, eu continuava agindo da mesma forma. Deixava que a "não-eu" controlasse as rédeas, pois quando eu as controlava, era isso que acontecia.
Eu definitivamente não dormiria aquela noite. Passei o resto das horas tentando não permitir que meu olhos fossem atraídos pela tela sob a lona e sua presença esmagadora.
Tudo ainda me lembrava dele.
Tudo.