quinta-feira, 2 de julho de 2020

Terras Brancas (parte 11)



Sem que eu percebesse o momento inicial, Lucas estava segurando minha mão pendurada. Ainda segurando o anjo, olhei para os cílios espessos que pesavam sobre um olhar sério. Abri a boca para dizer algo, entretanto desisti.
Ele me puxou levemente para baixo. Desci lentamente do pedestal, um pé de cada vez. Lucas começou a caminhar lentamente, guiando-me. Adentramos a planície, cujo gramado tinha as pontas esbranquiçadas, como se tivesse sido pincelado superficialmente com tinta branca. Absoluto silêncio. Ele não olhava para mim, apenas para frente.
Cada passo nosso seguia uma cadência rítmica perfeita. Um, dois, três, quatro. Era quase uma dança silenciosa.
Eu queria muito voar, mas meus pés pareciam bem presos à gravidade. Ao nosso caminhar.
Os céus moviam-se rápido demais. A grama crescia rápido demais. As nuvens corriam, as cores tilintavam. Em nossa passada lenta, passavam-se dias ou éons - impossível distinguir.
A caminhada culminou em uma árvore seca. Havia uma corda pendurada em um galho forte. Uma corda com um nó circular mal feito na ponta. Ela balançava com a passagem das sombras das nuvens que corriam em velocidade extrema.
Só então, Lucas olhou para mim.
E eu agradeci o seu silêncio.

~

-Bora, Sam! - Caio virou a cabeça em direção ao corredor para gritar, enquanto terminava de bolar.
-Depois vocês enchem a boca pra estereotipar que mulher demora pra se arrumar. - Ana brincou.
Léo e eu estávamos sentados em um dos sofás. Ana estava encostada no batente da porta do corredor, enquanto Caio acendia o beck com o isqueiro da Paula, que estava ao lado dele, sentada no braço do outro sofá com as pernas jogadas de lado. Rafael praticamente se espalhava no chão, mexendo no celular desde que entramos no apartamento do Sam. O barulho do chuveiro cessara finalmente há alguns minutos.
-Sem pressa, amor - Paula ergueu a voz, pegando o beck da mão do Caio - Cê sabe que eu gosto de ver o nascer do sol, e a gente vai sair daqui bem na hora dele.
Ana gargalhou, Caio também.
Léo esperava o amigo dedilhando um violão. Ele olhava pra mim a cada vez que soava um lá menor, e sorria em resposta ao meu sorriso.
-Me deixa brincar um pouco - Rafael recolheu o celular, e Léo entregou o violão a ele, em seguida passando o braço por trás de mim.
Paula estendeu o beck para Ana, mas ela recusou. Então, ela o passou para mim.
Enquanto eu tragava, Sam saiu do banheiro. O cabelo castanho claro comprido estava impecável.
-Cês são muito chatos, na moral - ele bufou.
Paula levantou-se e o seguiu até o quarto, enquanto eu passava para Léo. Rafael adaptava seus solos de baixo ao instrumento acústico, os cabelos negros caíam na frente do rosto e os escondiam em outro mundo enquanto tocava.
Não demorou muito para que o casal anfitrião voltasse pronto.
-Bora - Sam se estendeu na palavra.
Rafael posicionou o violão no canto da sala, Léo apagou o baseado e guardou, e todos saímos em direção ao metrô.
A noite já havia caído há algumas horas. Na caminhada, Rafael, Sam e Caio entraram sem qualquer contexto específico em um papo filosófico. Paula e Ana pegaram um efluente da conversa, mas seguiram um outro caminho próprio. Eu me peguei observando o pneu dos carros rodando pela rua e a interrupção da sua elipse pela dureza horizontal do asfalto durante um tempo incalculável, antes de perceber que estava chapada. Léo segurava minha mão, mas estava longe dentro de si.
Não muito longe da estação que ficamos, descemos por uma rua até chegarmos em uma casa. Sam, Rafael, Caio e Léo, a essa altura, conversavam sobre uma ideia de música nova, surgida depois do triálogo do caminho.
-Hoje você vai dançar comigo nem que eu tenha que te obrigar. - Ana surgiu, cruzando seu braço com o meu.
-Eu vou pensar.- ri.
Assim que abriram o portão, Ana já me levou para dentro rapidamente, empolgada.
A noite se seguiu animada. Depois de dividir um copo com Ana, eu consegui dançar com ela. Paula dançava grudada em Sam, o cabelo liso e loiro agitava-se com o seu movimento, dançando junto. Os dois dividiam uma garrafa d'água - a água não aparentava ser um elemento solitário no recipiente - que permanecia na mão de Sam. Sob as luzes coloridas no ambiente de luz apagada, eu podia ver os dreads presos de Caio passando pra lá e pra cá, sempre perto de uma garota diferente. Minha visão não captava Rafael nem Léo.
O visor do celular apontava três e meia da manhã quando eu finalmente o vi. Eu havia sentado e deixado Ana com as bocas que ela tanto queria. Léo vinha em minha direção, perceptivelmente alterado. Olhava em volta, paranoico.
-Você tá bem?
-Tem... alguém aqui. Vamos pra fora, por favor.
Eu olhei ao redor, e tudo o que eu vi era a pequena multidão frenética e as luzes. Segurei sua mão e o guiei para fora. Ele precisava de um ar.
-Ei, o que você ta sentindo? - eu tentei perguntar.
Léo só olhava para a extensão do céu, e em seguida ao redor novamente.
-As estrelas... - ele não terminou.
Ergui os olhos, mas o céu estava completamente nublado.
-Eu quero ir pra casa.
-Tudo bem, a gente vai. Eu vou avisar...
-Me leva pra casa agora.
Os olhos dele suplicavam por ajuda. Foda-se todo mundo. Sua mão ainda segurava a minha, então eu só puxei ele dali.
Saímos à rua. Eu usei o meu celular para tentar pedir um transporte. O tempo de espera eram minutos intermináveis.
-Logo a gente tá em casa. - tentei acalmá-lo.
Entretanto, poucos segundos depois, ele começou a subir a rua.
-Espera, calma. - eu segurei seu braço e tentei contê-lo.
-Eu preciso ir pra casa.
-Eu sei, nós estamos indo.
-Eu preciso ir pra casa.
Não conseguia segurá-lo, então eu o segui. Os passos eram difíceis na calçada molhada de uma provável chuva passageira. Ele ainda olhava para trás a cada cinco segundos.
-Eu preciso ir pra casa. A sombra vem. Eu preciso ir pra casa. - os passos dele se aceleravam.
Tudo o que eu queria era magicamente me teleportar até em casa imediatamente. Estávamos quase correndo.
-Ei, tá tudo bem. Olha aqui pra mim.
Léo parou e me olhou. Suas íris eram sobrepujadas por sua pupila, o olhar era de medo genuíno. Então, com os olhos arregalados, ele se afastou lentamente até tocar as costas no muro e deslizou para baixo, sentando-se no encontro imundo do concreto da parede e da calçada. Eu abaixei perto dele.
-O que foi?
-Ela está aqui. Ela vai levá-lo. Ela vai me levar e te levar.
Meu coração acelerou. Peguei meu celular do bolso.
-Ninguém vai levar você. - tranquilizei enquanto ligava para Ana. Consegui pedir ajuda a ela antes que ele desse um grito.
-Tira ele da corda! Tira ele!
-Ele quem?
Léo apontou para uma árvore na calçada. Ele tremia.
Começou então a se empurrar para trás com as pernas. Ele se pressionava contra o muro como se estivesse tentando atravessá-lo. As mãos raspavam o concreto em desespero.
-A fresta da porta me aperta. Eu não consigo - engoliu o ar com dificuldade - respirar.
A laringe subia e descia por baixo da pele do pescoço enquanto ele tentava engolir a saliva, ofegante. Numa tomada longa de ar, ele apoiou-se no chão, abaixou a cabeça e vomitou ao lado do corpo. Os dedos que apoiava tinham as pontas feridas e sangue brotando por baixo das unhas. Seu diafragma espasmava com violência.
Quando ele voltou a cabeça para o muro, seus olhos estavam vidrados no céu por trás da copa da árvore que apontara.
-O anjo não olha pra mim. O anjo de pedra está chorando. O anjo de pedra. Ele não quer olhar.
A respiração entrecortada desesperava-se novamente.
-Tira ele da corda!
E então ele chorou. Começou a chorar compulsivamente e a bater a cabeça contra o muro.
-Não, para! - eu puxei o corpo dele contra mim, perdendo o equilíbrio e sentando. Léo caiu sobre meu colo, esticando o corpo sobre a umidade pútrida da calçada. Ele chorava e gritava. Saliva escorria da sua boca aberta.
Tudo o que eu conseguia fazer era segurar sua cabeça. Ele ainda tinha movimentos desesperados, porém lentos. Ainda repetia as mesmas frases.
Estava perdida. Tinha tanta adrenalina dentro de mim que eu não conseguia pensar. Não percebi o momento que Ana chegou com Rafael. Sob os ruídos desesperados de Léo, algum dos dois parecia fazer uma ligação.
A única coisa que meus olhos conseguiam ver e meus ouvidos conseguiam captar era o surto de Léo. Ele permanecia sem forças em cima de mim.
-A sombra está puxando a corda ela puxa a corda ela puxa os mortos ela puxa a corda.
-O que ele usou no rolê Rafa? - eu perguntei com a voz trêmula de adrenalina.
-Eu não sei.
-O que ele usou, caralho!?
-Eu não sei que porra que ele usou! - Rafael bradou com a tensão - Ele cheirou pra caralho e sei lá o que mais!
-Ele deve ter misturado. - Ana tentou dizer com o máximo de calma que a situação permitia.
Meus olhos transbordaram em lágrimas. Eu não aguentava mais ouvir ele falar de sombra e de fresta e de corda.
-A gente já chamou ajuda, Dia. Fica calma, por favor.
As palavras de Ana ricocheteavam no choramingo de Léo no meu colo. As lágrimas embaçavam totalmente a minha visão.
Eu só queria tirar com a mão o que quer que estivesse em sua corrente sanguínea agora.