domingo, 8 de julho de 2018

Tentativas



Eu não conhecia todas as cores, quando morri.
Eu não sabia que águas poderiam ser tão quentes, e nem que florestas poderiam ser tão gélidas. Quando morri, o azul era o mais intenso dos aromas, mas talvez eu não tenha tido a oportunidade de sentir o violeta, ou o carmim.
Queria escuridão e sombras, queria noite calma.  Mas o que houve foi um dia atribulado de tarefas.
Quando morri, queria terra macia. Mas sob mim havia o chão duro da sala de casa.
Morri de mil formas diferentes. Em cada uma delas, senti que a vida nos entorpece. Descobri que o mundo cai sobre nós, com todas as suas complexas interações diplomáticas de significados vazios e sua obsessão pornográfica e seus vícios violentos e compulsivos. Ele cai sobre nós.
Porém, nada tinha sentido, no momento em que morri. Nada mais existia além das mãos que envolviam meu pescoço. Apertavam, irredutíveis. Mesmo que eu tentasse retirá-las para conseguir respirar. Mesmo que minhas pernas debatessem, meus braços se esticassem. Mesmo que o desespero fizesse minhas mãos e minhas unhas buscarem o rosto frio, os braços firmes, num esforço inútil de encontrar alguma forma de fazê-lo soltar. Batendo, arranhando, puxando, empurrando. Mesmo que eu tentasse.
Até meus músculos perderem a força, minhas pernas pararem de se mover e minhas mãos tentarem seus últimos golpes lentos. Meu rosto, dormente, sem reação. Meu cérebro pesado, levado até o seu limite pela agonia em meu peito e pela dor da constrição de minha garganta. Tudo se acalmando, dormindo, desistindo, desaparecendo em um infinito negro, mas não para sempre. Apenas até a próxima morte.
Onde eu quis um sol quente sobre os olhos fechados. Mas o que havia era uma garoa chata de início de tarde.
Quando morri, queria ter mergulhado no mar calmo de uma tarde de verão. Mas eu estava longe demais dentro de mim mesma. Ébria. Derrotada por mililitros alcoólicos de escapismo falho.
E talvez com uma ou duas linhas irregulares, os braços caídos, e a vida escorrendo através deles, numa noite solitária dentro de um banheiro.
Mesmo que eu tentasse.
Queria independência, coragem e um dia despretensiosamente bonito. Mas o que ocorreu foi medo e culpa.
Quando morri, queria ter tido um sonho bom à noite e acordado cedo com mensagem de bom dia. Mas eu não tive tempo de chegar em casa. Antes de me arrastar pela esquina. Um tiro no peito. A bala queimando atrás da costela, o sangue manchando o asfalto. O ar frio da madrugada difícil de ser respirado. Os olhos pesados, dor pungente, pensamentos inconsistentes. E depois, torpor. Para depois morrer novamente.
Queria uma morte sem dor. Por que dói tanto?
Eu só queria ter conhecido todas as cores.
Mas a vida nos mata a cada dia.
Mesmo que tentemos.
Apenas viver.