terça-feira, 21 de maio de 2019

Atrasos


Quando eu o conheci, parecia que todos os sons eram um borrão zunindo em meus ouvidos e a minha mente finalmente ficou quieta. Eu já não ouvia meu cérebro esquematizando todos os próximos movimentos do meu dia milimetricamente planejado.
Quando ele disse pela primeira vez que me amava, tudo o que eu conseguia prestar atenção era a fina curva dos lábios dele esboçando um sorriso.
Ele sentia as borboletas dançando em seu estômago quando eu beijava seu pescoço e ria das minhas (falhas) tentativas de fazer piadas para tentar arrancar o sorriso estonteante que só ele trazia.
Ele achava engraçado quando eu montava a minha agenda no final do dia sem jamais ter ciência de que a falsa sensação de controle das pequenas coisas do meu cotidiano era a única coisa que desligava a energia do meu cérebro quando me deitava sobre o travesseiro - com exceção, é claro, dele.
Mas, um dia, ele não sorriu quando contei a piada que ensaiei dez vezes no espelho antes de soltar.
Ele não sentiu as borboletas agitadas quando debrucei sobre seu pescoço.
Os lábios dele formavam uma linha fina quando sussurrou opacamente que me amava.
Ele não achou engraçado quando planejei meu dia num pedaço de papel, sem jamais ter a ciência de que a falsa sensação de controle abranda o meu medo de me atrasar e de perder as coisas: o ônibus, a hora, eu, ele.