quinta-feira, 23 de maio de 2019

Terras Brancas (parte 5)



Uma pequena presença chamou a atenção dos meus sentidos. Abri meus olhos e vi Lucas ao pé da cama, de pé, olhando serenamente para mim sob a pouca luz. Dei um suspiro de alívio.
- Pra onde você foi?
- Você caiu. Precisava ter caído.
- Precisava?
Ele não respondeu. Só riu aquelas risadas gostosas de criança e foi saltitando até a janela aberta enquanto eu me apoiava sobre os cotovelos para levantar o corpo e permitir que minha visão o acompanhasse saltitar.
- Você tem que saltar as janelas Diane. Salte as janelas.
Ele me olhava com determinação. Depositava em mim toda a expectativa mágica de uma criança sobre o que podemos ser.
Eu queria continuar ali, deitada, acolhida sob aquelas paredes cor de vinho. Entretanto, era exatamente isso que seus olhos diziam. Eu não chegaria a lugar algum se continuasse ali. Não haveria possibilidades ou incertezas e consequentemente não haveria nada. Apenas um limbo adormecido sob luzes fracas.
Há quanto tempo eu estava deitada ali?
Há quanto tempo inserida no limbo?
Levantei-me, decidida. Lucas vibrou, como se tivesse apostado corrida e ganhado. Meus pés descalços andaram pelo piso frio, sendo chamados pela noite lá fora. Quando encostei na janela, Lucas me abraçou o quadril. Eu tomei alguns segundos para reagir ao abraço repentino, dei um sorriso e envolvi o começo de suas costas com meu braço esquerdo, puxando-o levemente contra mim.
- O mundo pode ser belo às vezes, Diane.
Eu levantei o braço que o estava envolvendo e baguncei seu cabelo com a mão. Ele então soltou meu quadril, se afastando.
Coloquei meu pé descalço sobre o parapeito da janela e me impulsionei sem tempo de arrependimento, logo em seguida colocando o outro e terminando o impulso para fora do quarto e para dentro da madrugada. Meu corpo foi engolido por uma escuridão feita de árvores e de céu sem estrelas. Árvores que repentinamente tomaram todo o meu redor e esticaram-se para cima. Altas, muito altas. Tão altas que não se podia ver o chão que as sustentava e que aguardava minha queda. Tão altas, que pareciam ser a ligação entre a terra e o céu.
Eu não quis voar dessa vez. Eu precisava chegar ao chão. Eu precisava cair.
Mas eu sabia que levaria tempo até que meu corpo percorresse toda a altura da noite, e eu tomaria esse tempo para me manter acordada, e para lembrar que nenhuma queda seria capaz de subdividir meus fragmentos coloridos.
Não mais.

~

Era um daqueles dias onde o sol entremeia às folhas das árvores tristes da cidade, tentando avivar novamente aqueles seres que, um dia magnificentes, emanavam tudo que a vida necessita para ser mantida, mas que agora eram sobreviventes em meio ao cinzento e ao caos artificial. Mesmo assim o sol tentava, insistente, e assim nos proporcionava uma visão ensolarada agradável e inspiradora.
Alguns dos meus quadros finalizados estavam postos sobre cavaletes de diferentes tamanhos, posicionados em frente ao limite entre a grama e os pisos monocromáticos do caminho do praça, por onde pés ligeiros passavam para lá e para cá, seguindo seus próprios rumos, nunca realmente descompromissados. Por mais que um sábado de primavera brilhasse no céu. As ilustrações pequenas emolduradas eu mantinha encostadas sobre os pés de madeira dos cavaletes, para que tudo ficasse visível aos olhos apressados. Sentada com as pernas dobradas sobre uma canga azul-turquesa, eu deixara um esboço incompleto à minha esquerda no chão durante uma pausa para as mãos sujas de tinta e grafite e a mente anuviada de nós. Um cigarro de damiana e camomila queimava entre meus dedos indicador e médio, que estavam depositados sobre minha coxa. Levei-os até a boca e puxei a fumaça aromática, enquanto meus olhos acompanhavam os numismáticos e os artesãos sob as sombras de suas próprias barracas amarelas na extensão do caminho da praça. Algumas pessoas se preocupavam em parar para olhar o que tinham para expor e vender. Outras se preocupavam em diminuir o passo para deixar os olhos curiosos serem atraídos por alguns momentos - inclusive em frente aos meus quadros. Outras, ainda, não se preocupavam em se desligar da engrenagem que as levava para onde quer que estivessem indo. Olhos engessados.
Dei outra tragada. Voltando os olhos para os quadros, depois de algum tempo deixando-me devanear, percebi a presença de uma moça jovem - talvez apenas um pouco mais jovem que eu - parada em frente às telas, segurando as alças da mochila. Seu cabelo encaracolado e volumoso quase engolia os óculos de bordas medianas que, por sua vez, quase escondia as sardas que salpicavam a base de seus olhos. Um rosto tão inocente quanto os canários amarelinhos que brincavam na grama atrás de mim, alheios ao caos da cidade, das pessoas, do mundo. Entretanto, mesmo inocente, abrigava um olhar de identificação ao visualizar as pinturas. Um olhar que se encontrava em meio as cores que eu escolhera, que entendia a complexidade do sentir e do sofrer. Mesmo tão inocente.
Ela se agachou, dobrando o jeans apertado, para ficar mais próxima às ilustrações nos pés dos cavaletes. Em particular, a uma. Pequena e negligenciada. Centralizada entre uma moldura fina. Desesperançosa quanto ao seu destino.
- "Cale-se ou será pior" - eu disse, atraindo os olhos espertos da garota para mim - É o nome que eu daria a essa daí, se eu desse nomes a elas.
- Por que não dá? É uma boa ideia. - a voz era balanceadamente doce. Não de forma exagerada, não enjoativa. Era agradável e equilibrada. Como uma torta de limão.
- Sim. É uma boa ideia. - eu sorri.
Ela continuou contemplando a ilustração de pinceladas de cores quentes. O ser esguio de traço incerto segurando a boca.
- É como quando alguém te mapeia de acordo com as próprias concepções, aponta defeitos distorcidos, te toca a ferida, ignora a complexidade do ser e o resume em "certo e errado", esperando que você aceite, que não retruque ou rebata, e que também não se desculpe, pois desculpas é um ato de covardes. Alguém com poder sobre você. - ela não me olhava - Ou quando alguém quer te dizer o que é melhor pra você, sem se preocupar com o que realmente é melhor pra você, inclusive odiando aquilo que é melhor pra você. Alguém com autoridade sobre você. Ou simplesmente quando quer gritar e odiar, mas sabe que não pode deixar isso sair, ou sofrerá consequências. O que te resta?
- Calar-se.
- Sim. - dei a última tragada no cigarro moribundo, esfregando-o e apagando-o no chão - E assim seguimos, menina. Temos que ser engessadas e perfeitas e agradáveis, não temos?
- A todo momento.
Um silêncio se instalou enquanto eu retomava o esboço pausado. Ela sabia.
- Quanto você está pedindo nela?
Olhei para o rosto contemplativo.
- Por ela? - dei um suspiro - Todas as outras tem um preço, mas essa está há tanto tempo encostadinha aí. Pode levar por quanto o seu coração mandar.
A garota da voz de torta de limão abriu um sorriso sincero.
Acreditei, naquele momento, que o mundo às vezes podia ser belo afinal.