quarta-feira, 22 de maio de 2019

Terras Brancas (parte 4)



Caí com ímpeto no piso frio e empoeirado do chão ao atravessar a película da porta que separava água e ar, encharcando-o com a porção de água que me acompanhou para dentro da porta. Levantei-me, ainda com muita água escorrendo pela minha roupa e pelos meus cabelos. Analisei o local, que se mostrava como um corredor carmim e se estendia para os dois lados. À direita, havia uma porta fechada. À esquerda, terminando o corredor, uma mesinha de madeira escura com um rádio antigo, que tocava uma música familiar. A mesma melodia longínqua da floresta, porém, com falhas de transmissão e som monolítico, chapado e arranhado de tecnologia antiga. Mesmo assim, se podia ouvir a harmonia trabalhada de acordes ligeiros e encorpados de um tom menor. A melodia dançando em meio à harmonia, subindo e descendo, entrelaçando. Uma história sendo contada pelas cordas de um piano subversivo e de uma guitarra arrastada e preguiçosa. Notas que acariciavam o coração.
Na parede do corredor, alinhavam-se quadros graduais de uma arte em evolução. O primeiro da esquerda era apenas uma ilustração confusa em grafite do que poderia ser uma garota sem rosto metamorfoseando-se em milhares de mariposas, sob um lampião sinuoso. As sombras do desenho não deixavam que ele fosse claro e nítido. Apenas cinza e embaçado.
Os quadros seguintes eram ilustrações em um traço preto fino e certeiro, de pessoas sem rosto ou de costas. Eram tingidos de cores - a princípio com lápis coloridos, mas logo em seguida, na escala gradual dos quadros, com tinta - aleatoriamente pinceladas ou derramadas, despreocupadas com o limiar dos traços, vazando para onde queriam vazar, como se estivessem em uma camada diferente, em uma outra realidade paralela. Como se fossem sentimentos. Alheias. Por vezes, apenas cores frias, pingadas sobre as costas nuas de uma mulher sentada. Azul e verde água. Por outras, cores quentes, esbraseantes, pinceladas com agressividade sobre uma silhueta esguia que mantinha a mão sobre onde seria a boca - embora não possuísse elementos faciais.
"Cale-se ou será pior", foi a frase que senti ao olhar a obra. Talvez fosse um bom nome.
Os últimos quadros já não tinham ilustrações. Eram apenas representações de sentimentos coloridos de um abstratismo falho. Eles queriam ser como a guitarra e como os acordes que me invadiam os ouvidos, mas suas cores se tropeçavam, se atrapalhavam. Não havia padrões, não havia sentido, não havia nomes, não havia nada. Por vezes, havia um único traço preto solitário e amorfo, que seguia seu próprio caminho sem lógica, no meio da tempestade de cores quentes e frias utilizadas ao mesmo tempo. Roxo e verde e púrpura e castanho. Uma tentativa desesperada de se encontrar.
Depois do último quadro à direita, cheguei então até a porta. Todas aquelas cores pelas quais eu passara se aderiram à mim, e tingiram cada pedaço de fragmento, cada sulco, cada rachadura. Eu apenas as aceitei. Aceitei todas elas, e contemplei o que estava feito.
Abri então a porta. Adentrei, era um quarto apagado. Uma cama com um lençol bege estava perfeitamente arrumada e esticada, e permanecia levemente iluminada entre dois abajures amarelados de pouca luz. A janela estava aberta, mas não havia um único som que ousava entrar por ela. A única coisa que a transpassava era a noite escura que se estendia lá fora.
O quarto me trazia uma sensação de acolhimento. Calor, paixão e leveza. Eu apenas aproveitei a sensação acolhedora para sentar e então deitar na cama confortável.
Fechei os olhos, e deixei a música do rádio antigo ser a minha canção de ninar.

~

Estava em meu quarto. Luzes apagadas. Era noite, depois do jantar. Dois pratos tinham espatifado propositalmente no chão. Minha mãe catava os cacos e limpava tudo. Meu pai estava lá fora. Era outra casa, outra cidade, mas os vizinhos ainda paravam para ouvir ruídos contundentes de suas janelas. Algumas coisas não mudam.
Minha mãe havia prometido que íamos embora juntas quanto eu tinha doze. Eu já estava com quinze.
Debrucei sobre meu travesseiro e, debaixo dele, retirei uma lâmina. Entrei em meu banheiro, trancando a porta. Sentei no chão em frente à pia. Vários sentimentos liquidificados permeavam meu cérebro. Em destaque no meio deles, o ódio a quem eu era, ao que eu era, ao que havia me tornado.
Então eu aproximei a lâmina à minha mão esquerda.
Eu era a culpada. Eu merecia. Tinha de fazê-lo. Aliviaria a culpa, aliviaria o ódio.
Sem força, risquei, sentindo lentamente a dor acalentadora que abria de leve a pele. Desenhos vermelhos, horizontais e superficiais, como os desenhos que saíam das minhas mãos até o lápis e do lápis até o papel, todas as vezes em que encontrava a mim mesma ociosa e talvez inspirada, sombreando as figuras cada vez mais, a cada dia. Exagerando. Cada vez mais sombras no desenho, numa tentativa técnica fracassada. Não, eu não cortaria tão fundo. Não nos pulsos. Havia covardia demais em mim para ser capaz de encarar a morte. Covardia demais para sombrear certeiramente o desenho. Embora, às vezes, fosse difícil negar ser uma ideia a se considerar.
O sangue brotou nas linhas tortas. Os sentimentos liquidificados adormeceram levemente, deitando em meu cérebro, suave e confortavelmente. Tomei alguns minutos para mim sob aquela luz amarelada. Meu coração se acalmava, dopado. A culpa não estava mais visível aos meus sentidos. Por ora.
Levantei em frente à pia sem me olhar no espelho. Não havia nada de bom para ver ali, por trás dos cabelos escuros que caíam sobre os olhos pobres. Não havia nada de bom no rosto distorcido e nos lábios ressecados. Nada de bom no ser esguio, faminto e fragmentado que habitava por baixo daquela pele. Aquele ser corrompido que eu odiava ter me tornado. O ser que se mostrava no reflexo do espelho, e que eu não encararia. Os olhos baixos eram apenas atraídos pelas gotas de sangue que caíam na louça branca da pia e escorriam. Tonalidade vívida. Talvez eu não apenas sombreasse os desenhos da próxima vez. Eu queria colori-los de ódio.
Liguei a torneira para levar o vermelho embora pelo ralo e saí do banheiro. Com a luz ainda apagada, deitei-me na cama, sem conseguir fechar os olhos. Um feixe de luz que vinha do corredor entrava pelas frestas da porta e iluminavam parcialmente o quarto. Em meio à semiluz, brilhava um objeto em cima da mesinha, ao lado da cama. O cisne de cristal, que tinha uma das bordas trincada, ainda tentava voar em meio aos seus espelhos. Eu o olhei profundamente, deixando as lágrimas apenas brotarem, silenciosas.
Meu amigo...