quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Terras Brancas (parte 13)

 


De repente, os fios de fumaça azul pararam de flutuar. Estagnados, não tinham mais meio por onde transpassar e subir. Como se a película da atmosfera tivesse sido cutucada e se desfeito tal qual uma bolha de sabão, gravidade e ar escapavam e gradualmente deixavam de existir. As nuvens, antes amálgamas de intensa atividade contorcionista, pararam também. Tudo estagnado, abafado, sem movimento.

Levantei-me do chão, tentando captar qualquer brisa fraca. Nada movia-se. Meus pulmões buscavam ar fresco.

Nada.

Olhei em volta. Procurava qualquer ponto daquele ambiente em que eu pudesse tentar respirar melhor. Em certo ponto, não tão ao longe, era possível identificar uma transição natural, onde árvores começavam a despontar, pontilhando a planície com suas copas cada vez mais tomadas pela superfície branca conforme mais distantes se encontravam. O gramado acompanhava a transição, tendo suas folhinhas também cada vez mais alvejadas, tornando o verde - já enfraquecido - cada vez mais escasso.

Comecei a caminhar em direção ao branco, com a esperança de encontrar ar gélido para inundar os pulmões. Era como estar inserida em um lugarzinho fechado, claustrofóbico, quente, onde cada segundo que se passava aparentava ter menos oxigênio. Mesmo que, ao meu redor, o espaço aberto se esticasse confortavelmente em todas as direções.

Em minutos caminhando aceleradamente, cheguei até onde as árvores começavam. O oxigênio cada vez mais escasso. Nenhuma folha ousava mover-se em farfalhar. Nenhum átomo daquele lugar se aventurava a engatilhar qualquer movimento. Dentro do meu corpo, dormências percorriam em calafrios nas extensões dos músculos e das artérias. Sangue fugia do rosto. Tontura em meu cérebro tornava meu andar irregular. Tentava puxar mais ar, na vã tentativa de satisfazer-me. A tentativa esforçada fazia um barulho contraído e arrastado na garganta, que escapava pela minha boca aberta.

Aos poucos, meu ouvido começou a captar sons fluidos de água corrente. Meu caminhar se transformou em corrida, lenta e trôpega, em busca da fonte de água cujo som demonstrava estar cada vez mais perto. Torpor sob meus olhos embaçava-os com um esfumaçado escuro. As árvores sem mais verde, o chão completamente alvo, chegando a uma margem que escondia parcialmente o que vinha a seguir. Tinha que existir um lugar pra respirar.

Ao alcançar a margem, vi claramente um curso de rio com águas cristalinas, cujo leito refletia o céu por trás das copas brancas. Na imagem aquática levemente distorcida, entretanto, as nuvens ainda se moviam. Do outro lado da margem, as árvores continuavam, mas com dificuldade era possível ver ao longe que elas se tornavam verdes novamente. O rio, então, era um ponto central.

Meu corpo, em últimos esforços sob a agonia, se jogou nas águas. Frio e instável, o rio convidava meu mergulho até o limiar transparente de seu leito. Ao finalmente atingir o fundo, emergi na superfície do rio, adentrando ao ambiente espelhado e finalmente respirando na atmosfera das nuvens contorcionistas novamente. O ar fresco da brisa sobre o curso d’água submergiram em minhas vias respiratórias, eliminando rapidamente todo o torpor crescente.

Ainda permaneci um tempo dentro do rio, deleitando-me da água fria e do oxigênio em abundância tomado por gotículas cristalinas e frescas, antes de nadar em direção à margem e me jogar sobre a grama branca.

Olhando para o céu, tive a sensação de receptiva chegada.

Terras Brancas. Era ali onde eu estava.

~

Cheguei em casa como quem se deita em uma cova. As telas sendo carregadas com o peso de toneladas. Horríveis, medonhas. Minha arte quebrada, podre e fétida. Ninguém se atrevia a chegar perto, ninguém se atrevia a levá-las para casa. Eu não fazia nada de bom.

O tilintar das chaves ao tentar encontrar a certa para destrancar a porta queimava meu cérebro ao entrar pelos meus ouvidos. Meus dedos pareciam embaraçados em nós cegos. O molho caiu no chão, causando um som estilhaçado. Respirei, fechei os olhos, não para conter qualquer tipo de implosão das minhas veias, mas sim para tentar senti-lo.

Abaixei e peguei direto a chave certa, introduzi na fechadura e girei a maçaneta.

O ar quente com cheiro de louça suja agrediu meu rosto cansado. Entrei pelo ambiente mal iluminado, desviando dos objetos desorganizados e das roupas no chão. A casa vazia - ele provavelmente havia saído para tocar.

Chutei um pino de cocaína vazio e ele rolou e colidiu com outro. Não me surpreendia mais, não causava mais a mesma sensação gelada no peito. Nenhuma reação. Não me dei ao menos o trabalho de recolhê-los do chão. Apenas joguei as telas no canto do quarto e me deitei na cama.

O teto do cômodo parecia a centímetros do meu nariz, claustrofóbico. As teias de aranha dos cantos enrolavam em meu pescoço. Por onde eu olhava havia sujeira. Por onde eu olhava, ocre cinzento e verde oliva mesclado. Sem vida.

O limbo começara a engordar novamente há várias semanas. Insuportável. Há várias semanas que eu resistia à vontade de sentir. Em contraponto, cada vez mais o comportamento autodestrutivo de Léo piorava, como se estivéssemos correndo caminhos contrários simultâneos. Nem as cordas e as tintas se conversavam mais. Distorção de bemóis e cores frias existindo em realidades paralelas.

Não era capaz de não pensar na têmpera de uma linha vermelha. Eu precisava de uma linha vermelha em tudo isso.

Coloquei-me sentada na beira da cama. Minhas mãos tremiam. Aquela necessidade, aquele precisar, era a única coisa que eu sentia há tempos. Do ângulo em que eu estava, podia observar com detalhes o cinzeiro transbordando de restos de bitucas amassadas, cinzas se espalhavam, manchando mais pinos de plástico vazios. Círculos de líquido semisseco, grudentos e lodosos, estavam aderidos à superfície de madeira.

O cheiro etílico, ácido, queimado e fermentado.

Contraditoriamente, um vazio absoluto dentro de mim que não deixava espaço para aguentar mais nada. Não aguentava... mais.

Levantei-me da cama. Cada passo trêmulo meu ligando-se a um pensamento diferente conforme eu andava. Trovões, vermelho, cisne, fumaça, espelhos, desenhos, fluídos, amor, inércia, dor, vazio. Vazio.

Não restava nada para me apegar. Não restava cordas dissonantes para que eu me agarrasse.

Abri todas as gavetas, minha pele coçava. Mergulhava as mãos nos objetos bagunçados, buscando. Agarrei uma caneta, rasguei o primeiro pedaço de papel que tinha à vista e escrevi uma frase. Em seguida, peguei uma tela em branco, pequena, esperante. A pele dos meus dedos contava em sussurro para o tecido áspero: a espera era em vão, ela seria vazia para sempre.

Encostei a tela nos pés da mesinha, nos elementos imundos. Coloquei o pedaço de papel embaixo do peso do vidro do cinzeiro, de forma que ele caia pendente sobre o branco da tela.

Foda-se toda essa merda.

A esse ponto, todas as partes do meu corpo tremiam. A presença esmagadora do pensamento pincelava rudemente meu interior branco com um delicioso carmim. Meu coração se contorcia acelerado. Era inebriante a sensação de agonia pungente. Entretanto, que vida existia entre esses despejos momentâneos na corrente sanguínea, entre esses orgasmos doentios?

Caminhei até o banheiro e continuei procurando por outro objeto nas gavetinhas. No quarto, a tela jazia. Branca e vazia, como meu sentimento no começo e no fim.

"Que você me perdoe algum dia.", pendurado no ar estagnado, era sua única companhia.

[...]

Parecia que minha pele explodiria de dentro para fora. Olhei pela janela, o sol frio ainda tentava se desvencilhar dos braços das nuvens predominantemente espessas. Os lençóis brancos, o quarto branco, os curativos brancos em meus pulsos, tudo era desconfortavelmente amargo, com um cheiro forte de assepsia. A janela - centralizada nas cortinas também brancas – tinha uma tela de proteção, e fora dela uma grade de ferro. Em contraste com o quarto asséptico, a tela e a grade tinham camadas de poeira e fuligem preta encrustadas. A fuligem conjuntava-se a mim como únicos dois elementos sujos e impuros daquele ambiente, quebrando a perfeita harmonia alvejada.

Senti a presença de Léo ao lado da cama, próximo aos meus pés, então virei meus olhos a ele. Roupas amassadas envolviam um corpo exausto, olheiras marcavam sua feição abatida, e serviam como cama para os olhos negros que, por um segundo, cintilava aquela noite no prédio abandonado, diluindo um alívio quase imperceptível. Logo depois, tudo desapareceu, despencou em um infinito. Decepção e frustração profundas entraram no lugar. Um olhar que entendi, e que já sabia que veria se eu sobrevivesse.

O ambiente silenciava-se diante nós, olhando um para o outro. Ele engoliu uma parcela de ar abruptamente interrompida no meio, desistindo da frase que ia sair de sua boca. Minha mente limpara-se, assemelhando-se à assepsia da sala – nada crescia dentro dela para que fosse usado como fala. Suas mãos moviam-se junto às pernas, apertavam-se, os dedos se torcendo.

Muito tempo para um olhar de mútua imprecisão.

Então ele virou-se lentamente em um movimento quebrado, parecendo lutar contra si mesmo. Abandonando a chance de dar vazão ao turbilhão de possibilidades de diálogo sobre o que eu fiz ou sobre como o dia poderia se desenvolver bonito lá fora, ele simplesmente virou as costas e saiu do quarto.

Seu olhar em desaprovação e intensas mágoa e tristeza foi minha última lembrança dele.


terça-feira, 9 de agosto de 2022

Terras Brancas (parte 12)



Lucas deitou-se sobre o gramado parcialmente branco e fixou os olhos no céu. Ainda suavemente intimidada pela corda pendente, fiz o mesmo. As folhinhas pequenas e estreitas eram esmagadas pelo meu corpo e, em contato com minha pele exposta dos braços, pinicava. Mesmo assim, era agradável sua textura pontilhista e sua calidez, tal qual como o sol tivesse incidido sobre elas durante toda a extensão do dia.
Opostamente a nós, o céu ainda movimentava-se. Dessa vez, tumultuado. Não havia ordem ou sentido ou frequência. As formas de nuvens iam e vinham, se encontravam, fugiam umas das outras. Se mesclavam, dividiam-se. 
- Aquela parece uma formiga gigante – a nostalgia naquela frase dele quase me fazia chorar.
Eu não enxergava nenhuma formiga, nem qualquer animal ou qualquer coisa distinguível. Apenas um desordenado borbulhar de vapor denso de água. Como se o tempo estivesse seguindo e voltando simultaneamente, colidindo-se.
À nossa volta, minha visão periférica captava fios de fumaça azul subindo, e eu os seguia indo em direção ao alto. Era algo consumindo-se, tentando desaparecer. Em certo ponto, misturavam-se com a visão das nuvens e passavam a fazer parte delas. Daquela amálgama.
- A gente tá chegando – Lucas afirmou.
- Onde?
- Em Terras Brancas.
Ele então fechou os olhos, e eu tive a sensação de que ele fosse desaparecer com a fumaça. Segurei sua mão e ele olhou pra mim.
- Por favor, não vá embora. – minha voz era de súplica – Por favor, fica comigo.
Ele sorriu.
-Eu não vou a lugar algum.
Assim que terminou a frase, ele não estava mais ali. Porém, sua presença permanecia nos meus ombros, perto da minha cabeça, nas folhinhas estreitas e nos fios de fumaça.
Ainda assim, eu me senti sozinha.

~

O segundo maço vazio jazia na lixeira da cozinha. A atmosfera pesava como em uma cena de crime. O piso da casa expelia aos olhos de qualquer pessoa manchas de sabão seco, o material da pia embaixo do escorredor de louças acumulava micro organismos viscosos e escuros, a poeira deitava preguiçosa e imóvel sobre as superfícies amadeiradas do quarto. As lâmpadas frias pareciam refletir mais intensamente tudo isso, deixando tudo especialmente incômodo. Poucas coisas naquele dia estavam certas.
- Vendi dois quadros hoje. – minha voz exprimiu uma dúbia sensação de esperançosa frustração. Havia dias que todas as telas que saíam de casa retornavam para ela ao anoitecer. Entretanto, encaminhar duas delas para outras pessoas estava longe de ser o ideal.
Léo estava tão distante que me aparentava ser minúsculo em meio ao silêncio esmagador que se seguiu. Eu quase podia dizer que ele não estava ali, se não fosse pela fumaça que saía de sua boca.
Em momentos como esse, minha mente jogava dezenas de jogos com ela mesma, e em todos eles eu saía a perdedora. Julgada culpada pela cena de crime que englobava a casa, o quarto, nós dois. Culpada por qualquer coisa que o tivesse deixado assim. Eu era a ré, a juíza e a algoz.
Desisti de falar mais e o deixei sozinho. Peguei uma roupa limpa e decidi tomar um banho. Demorei minutos intermináveis, imóvel sob a água quente, antes de sequer tocar no sabonete. O som da água caindo não era o suficiente para diminuir a angústia do silêncio aterrador.
Vapor saiu junto a mim pela porta do banheiro quando eu a abri. Toda a extensão da minha pele estava mergulhada em um enorme sentimento depressivo de consistência densa que inundava até o teto todos os cômodos daquela casa, jorrando intermitentemente do corpo quase vivo de Léo.
Impossível aguentar.
Atravessei toda a densidade até o sofá, onde ele estava sentado. Eu me ajeitei ao lado dele e deitei a cabeça em seu colo. Ele apagava e abandonava a bituca no cinzeiro, inerte.
- Conseguiu marcar? – quebrei novamente a densidade.
Ele me olhou nos olhos pela primeira vez naquela metade do dia, por apenas um segundo, e desviou o olhar para a raiz do meu cabelo.
- Não. Me disseram no posto que eles estavam sem psicólogo.
Léo desembrulhou um terceiro maço que estava em seu bolso, e acendeu outro cigarro.
- Me disseram também que eu preciso de um encaminhamento do clínico geral. E a agenda de consulta está fechada e sem previsão para abrir.
Ergui a mão e passei os dedos por trás de sua orelha. Não era só a negativa do posto de saúde que o estava deixando assim. Eu senti seus olhos mudarem e seu corpo enrijecer desde que vimos aquele casal na praça, enquanto o sol ainda ensaiava para reinar o centro do céu. Aqueles homens se olhavam com paixão vívida, sentados em um dos bancos de madeira. Mesmo que nenhuma das partes de seus corpos se tocassem – eu tinha certeza que por receio dos olhares desconhecidos e das piores possibilidades consideradas – permaneciam entrelaçados por um laranja avermelhado latente e pouco sombreado. 
Léo perdera os seus sorrisos sutis desde essa cena.
- Eu...
Longa pausa.
- ... um dos caras sentados no banco da praça namorou o meu irmão. – ele finalmente revelou, como se estivesse lendo os meus pensamentos através dos meus fios de cabelo.
Uma dor gelada percorreu meu corpo. Lembranças dolorosas pareciam refletir de suas têmporas.
- Você não acha que poderia ser bom... visitá-lo? – tentei.
Mais uma pausa silenciosa.
- Eu não me lembro do meu pai abandonando a gente. – rodeou - Mas ele se lembrava bem, ele estava lá, sentiu tudo. Uma coisa leva à outra. 
Pensei que nada mais ia sair de sua boca.
- Minha mãe não o aceitava como ele era. Acho que ela projetou nele o motivo do meu pai ir embora. Hoje eu vejo tudo isso, e eu posso estar errado, mas não consigo ver de outra forma. – a fumaça saia de sua boca em meio à frase. – Mas na época eu não vi nada disso. Eu achei que foi só minha culpa. Por ter chamado ele de viado.
Meus dedos se entrelaçavam nos pelos de sua barba, que já há algum tempo bagunçava-se em pelos rebeldes não aparados. Léo estremecia num desejo de chorar que não era atendido pois faltavam lágrimas – elas já haviam sido abundantes um dia, e hoje só restava cansaço. 
- Então não, não vai ser bom visitá-lo. – concluiu. – Assim como, de qualquer maneira, não vai ser bom fazer essa terapia que nem existe pra mim. Minha mãe já dizia: “Meu filho não é louco pra ter que ir nesses médicos.”
Mágoa cor de chumbo gotejou dentro de mim. Era muito difícil ter de ouvir sua desistência depois de todo o esforço que tive para convencê-lo a procurar ajuda. Muito difícil lidar com esse orgulho inútil que ele tinha. Eu estava cansada.
Levantei-me e peguei meu celular e chaves.
- Onde você vai?
Pensei em dizer um milhão de coisas. Pensei em dizer que a culpa não era dele. Que era culpa dele. Que o seu orgulho era uma tentativa falha de mascarar seu medo. Que poderíamos pagar um psicólogo, mesmo que o dinheiro mal desse para pagar a conta de luz, mas não importava, daríamos um jeito. Que eu não aguentava mais olhar pra ele e o enxergar com dez anos de idade, olhando paralisado para aquela porra de fresta da porta do quarto. Que ele nunca iria melhorar. Que eu nunca iria melhorar. Que eu também já havia perdido uma pessoa importante pra mim. Que nós... nós nunca iríamos melhorar.
- Eu vou respirar e já volto – eu disse por fim.
- Por favor, não vá embora.
A frase me atingiu como uma faca no estômago. Segurando as lágrimas, virei as costas e bati a porta da frente.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Terras Brancas (parte 11)



Sem que eu percebesse o momento inicial, Lucas estava segurando minha mão pendurada. Ainda segurando o anjo, olhei para os cílios espessos que pesavam sobre um olhar sério. Abri a boca para dizer algo, entretanto desisti.
Ele me puxou levemente para baixo. Desci lentamente do pedestal, um pé de cada vez. Lucas começou a caminhar lentamente, guiando-me. Adentramos a planície, cujo gramado tinha as pontas esbranquiçadas, como se tivesse sido pincelado superficialmente com tinta branca. Absoluto silêncio. Ele não olhava para mim, apenas para frente.
Cada passo nosso seguia uma cadência rítmica perfeita. Um, dois, três, quatro. Era quase uma dança silenciosa.
Eu queria muito voar, mas meus pés pareciam bem presos à gravidade. Ao nosso caminhar.
Os céus moviam-se rápido demais. A grama crescia rápido demais. As nuvens corriam, as cores tilintavam. Em nossa passada lenta, passavam-se dias ou éons - impossível distinguir.
A caminhada culminou em uma árvore seca. Havia uma corda pendurada em um galho forte. Uma corda com um nó circular mal feito na ponta. Ela balançava com a passagem das sombras das nuvens que corriam em velocidade extrema.
Só então, Lucas olhou para mim.
E eu agradeci o seu silêncio.

~

-Bora, Sam! - Caio virou a cabeça em direção ao corredor para gritar, enquanto terminava de bolar.
-Depois vocês enchem a boca pra estereotipar que mulher demora pra se arrumar. - Ana brincou.
Léo e eu estávamos sentados em um dos sofás. Ana estava encostada no batente da porta do corredor, enquanto Caio acendia o beck com o isqueiro da Paula, que estava ao lado dele, sentada no braço do outro sofá com as pernas jogadas de lado. Rafael praticamente se espalhava no chão, mexendo no celular desde que entramos no apartamento do Sam. O barulho do chuveiro cessara finalmente há alguns minutos.
-Sem pressa, amor - Paula ergueu a voz, pegando o beck da mão do Caio - Cê sabe que eu gosto de ver o nascer do sol, e a gente vai sair daqui bem na hora dele.
Ana gargalhou, Caio também.
Léo esperava o amigo dedilhando um violão. Ele olhava pra mim a cada vez que soava um lá menor, e sorria em resposta ao meu sorriso.
-Me deixa brincar um pouco - Rafael recolheu o celular, e Léo entregou o violão a ele, em seguida passando o braço por trás de mim.
Paula estendeu o beck para Ana, mas ela recusou. Então, ela o passou para mim.
Enquanto eu tragava, Sam saiu do banheiro. O cabelo castanho claro comprido estava impecável.
-Cês são muito chatos, na moral - ele bufou.
Paula levantou-se e o seguiu até o quarto, enquanto eu passava para Léo. Rafael adaptava seus solos de baixo ao instrumento acústico, os cabelos negros caíam na frente do rosto e os escondiam em outro mundo enquanto tocava.
Não demorou muito para que o casal anfitrião voltasse pronto.
-Bora - Sam se estendeu na palavra.
Rafael posicionou o violão no canto da sala, Léo apagou o baseado e guardou, e todos saímos em direção ao metrô.
A noite já havia caído há algumas horas. Na caminhada, Rafael, Sam e Caio entraram sem qualquer contexto específico em um papo filosófico. Paula e Ana pegaram um efluente da conversa, mas seguiram um outro caminho próprio. Eu me peguei observando o pneu dos carros rodando pela rua e a interrupção da sua elipse pela dureza horizontal do asfalto durante um tempo incalculável, antes de perceber que estava chapada. Léo segurava minha mão, mas estava longe dentro de si.
Não muito longe da estação que ficamos, descemos por uma rua até chegarmos em uma casa. Sam, Rafael, Caio e Léo, a essa altura, conversavam sobre uma ideia de música nova, surgida depois do triálogo do caminho.
-Hoje você vai dançar comigo nem que eu tenha que te obrigar. - Ana surgiu, cruzando seu braço com o meu.
-Eu vou pensar.- ri.
Assim que abriram o portão, Ana já me levou para dentro rapidamente, empolgada.
A noite se seguiu animada. Depois de dividir um copo com Ana, eu consegui dançar com ela. Paula dançava grudada em Sam, o cabelo liso e loiro agitava-se com o seu movimento, dançando junto. Os dois dividiam uma garrafa d'água - a água não aparentava ser um elemento solitário no recipiente - que permanecia na mão de Sam. Sob as luzes coloridas no ambiente de luz apagada, eu podia ver os dreads presos de Caio passando pra lá e pra cá, sempre perto de uma garota diferente. Minha visão não captava Rafael nem Léo.
O visor do celular apontava três e meia da manhã quando eu finalmente o vi. Eu havia sentado e deixado Ana com as bocas que ela tanto queria. Léo vinha em minha direção, perceptivelmente alterado. Olhava em volta, paranoico.
-Você tá bem?
-Tem... alguém aqui. Vamos pra fora, por favor.
Eu olhei ao redor, e tudo o que eu vi era a pequena multidão frenética e as luzes. Segurei sua mão e o guiei para fora. Ele precisava de um ar.
-Ei, o que você ta sentindo? - eu tentei perguntar.
Léo só olhava para a extensão do céu, e em seguida ao redor novamente.
-As estrelas... - ele não terminou.
Ergui os olhos, mas o céu estava completamente nublado.
-Eu quero ir pra casa.
-Tudo bem, a gente vai. Eu vou avisar...
-Me leva pra casa agora.
Os olhos dele suplicavam por ajuda. Foda-se todo mundo. Sua mão ainda segurava a minha, então eu só puxei ele dali.
Saímos à rua. Eu usei o meu celular para tentar pedir um transporte. O tempo de espera eram minutos intermináveis.
-Logo a gente tá em casa. - tentei acalmá-lo.
Entretanto, poucos segundos depois, ele começou a subir a rua.
-Espera, calma. - eu segurei seu braço e tentei contê-lo.
-Eu preciso ir pra casa.
-Eu sei, nós estamos indo.
-Eu preciso ir pra casa.
Não conseguia segurá-lo, então eu o segui. Os passos eram difíceis na calçada molhada de uma provável chuva passageira. Ele ainda olhava para trás a cada cinco segundos.
-Eu preciso ir pra casa. A sombra vem. Eu preciso ir pra casa. - os passos dele se aceleravam.
Tudo o que eu queria era magicamente me teleportar até em casa imediatamente. Estávamos quase correndo.
-Ei, tá tudo bem. Olha aqui pra mim.
Léo parou e me olhou. Suas íris eram sobrepujadas por sua pupila, o olhar era de medo genuíno. Então, com os olhos arregalados, ele se afastou lentamente até tocar as costas no muro e deslizou para baixo, sentando-se no encontro imundo do concreto da parede e da calçada. Eu abaixei perto dele.
-O que foi?
-Ela está aqui. Ela vai levá-lo. Ela vai me levar e te levar.
Meu coração acelerou. Peguei meu celular do bolso.
-Ninguém vai levar você. - tranquilizei enquanto ligava para Ana. Consegui pedir ajuda a ela antes que ele desse um grito.
-Tira ele da corda! Tira ele!
-Ele quem?
Léo apontou para uma árvore na calçada. Ele tremia.
Começou então a se empurrar para trás com as pernas. Ele se pressionava contra o muro como se estivesse tentando atravessá-lo. As mãos raspavam o concreto em desespero.
-A fresta da porta me aperta. Eu não consigo - engoliu o ar com dificuldade - respirar.
A laringe subia e descia por baixo da pele do pescoço enquanto ele tentava engolir a saliva, ofegante. Numa tomada longa de ar, ele apoiou-se no chão, abaixou a cabeça e vomitou ao lado do corpo. Os dedos que apoiava tinham as pontas feridas e sangue brotando por baixo das unhas. Seu diafragma espasmava com violência.
Quando ele voltou a cabeça para o muro, seus olhos estavam vidrados no céu por trás da copa da árvore que apontara.
-O anjo não olha pra mim. O anjo de pedra está chorando. O anjo de pedra. Ele não quer olhar.
A respiração entrecortada desesperava-se novamente.
-Tira ele da corda!
E então ele chorou. Começou a chorar compulsivamente e a bater a cabeça contra o muro.
-Não, para! - eu puxei o corpo dele contra mim, perdendo o equilíbrio e sentando. Léo caiu sobre meu colo, esticando o corpo sobre a umidade pútrida da calçada. Ele chorava e gritava. Saliva escorria da sua boca aberta.
Tudo o que eu conseguia fazer era segurar sua cabeça. Ele ainda tinha movimentos desesperados, porém lentos. Ainda repetia as mesmas frases.
Estava perdida. Tinha tanta adrenalina dentro de mim que eu não conseguia pensar. Não percebi o momento que Ana chegou com Rafael. Sob os ruídos desesperados de Léo, algum dos dois parecia fazer uma ligação.
A única coisa que meus olhos conseguiam ver e meus ouvidos conseguiam captar era o surto de Léo. Ele permanecia sem forças em cima de mim.
-A sombra está puxando a corda ela puxa a corda ela puxa os mortos ela puxa a corda.
-O que ele usou no rolê Rafa? - eu perguntei com a voz trêmula de adrenalina.
-Eu não sei.
-O que ele usou, caralho!?
-Eu não sei que porra que ele usou! - Rafael bradou com a tensão - Ele cheirou pra caralho e sei lá o que mais!
-Ele deve ter misturado. - Ana tentou dizer com o máximo de calma que a situação permitia.
Meus olhos transbordaram em lágrimas. Eu não aguentava mais ouvir ele falar de sombra e de fresta e de corda.
-A gente já chamou ajuda, Dia. Fica calma, por favor.
As palavras de Ana ricocheteavam no choramingo de Léo no meu colo. As lágrimas embaçavam totalmente a minha visão.
Eu só queria tirar com a mão o que quer que estivesse em sua corrente sanguínea agora.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Terras Brancas (parte 10)



Cada copa de cada árvore inclinava-se, os galhos e as flores eram puxadas para nordeste. O vento repentino incidia sobre elas com força brutal. Todas apontando para a mesma direção.
Parei de rir. O vento era insistente, fazendo minha visão ser atravessada pelos feixes do meu cabelo que chicoteavam meu rosto. Levantei-me lentamente, tentando não desequilibrar com o empurrão do ar. A floresta de ipês inteira era de repente uma bússola, insistindo para que eu seguisse o caminho.
Fui atravessando os troncos, escorando-me a eles, seguindo a direção indicada. Eles pareciam abrir caminho para mim, deslocando-se para o lado, dando passagem. Ao longe, eu já avistava uma figura imóvel que ia se destacando com mais precisão a cada passo lento e temeroso.
Os ipês apontavam para um anjo de pedra.
Eu me aproximei cautelosamente. O anjo olhava para para cima e para o lado, a cabeça em ângulo, o olhar vazio e cinzento ao longe, bem longe de mim. As sobrancelhas estavam retas, a expressão de uma tristeza sutil, porém complacente. Os cabelos encaracolados longos acompanhavam a nuca e caíam por trás dos ombros. Suas mãos se encontravam a uma altura um pouco abaixo do umbigo, tocando-se. A mão direita parecia segurar o indicador esquerdo. Tecidos pendiam da curva do braço esquerdo levemente flexionado, e tinham sua origem nas vestes leves amarradas ao corpo, que caíam até os pés descalços depositados sobre um pedestal cúbico de rocha. 
Uma figura tão pacífica, mas de uma presença tão esmagadora. Por um único segundo, esqueci-me que era feito de pedra. Mergulhei nos detalhes de sua feição benevolente. Olhando para o longe acima da planície em que estava. Tão solitário.
Algo escorria pelo seu rosto e pingava do queixo. Escorria de seus olhos.
Eu cheguei bem perto, apoiei-me em seu braço e, pisando próximo aos seus pés no pedestal, impulsionei-me para cima, para perto de seu rosto. Eu então sequei suas lágrimas.
As asas tímidas recolhiam-se às suas costas. Atrás delas, o céu não era azul. Poderia se dizer qualquer cor entre as neutras, quentes ou escala de cinza.
Azul, não.


~


Eu não conseguia dormir.
Sentada na beira da cama, eu ouvia a respiração pesada da garota infligir rachaduras no silêncio absoluto. Meus olhos acompanhavam as peças de roupas femininas espalhadas pelo assoalho. Eu não conseguia ao menos mantê-los fechados. Todas as escolhas e consequências pesavam dentro da minha pele.
Um pequeno feixe de luz adentrava ao quarto pela fresta da cortina. Atingia minhas coxas e minhas mãos sobre elas. Eu não conseguia desviar meu pensamento ao fato de que cada músculo meu - mais do que isso, cada estímulo e cada sinapse e cada parte do meu consciente e inconsciente - movia-se até um abismo há muito premeditado. Meu corpo e minha mente faziam coisas alheias a qualquer resquício de sentimento genuíno que ainda latejava em instantes excepcionais. Minhas mãos não eram minhas, meus dedos não eram meus, minhas pernas não eram minhas. Minha boca, língua, boceta.
Eu não pertencia a mim mesma.
Eu era uma sucessão de nós em uma corda. Eu era meus vícios alimentados deliberadamente.
Levantei-me da cama. Os pés descalços doíam no chão gelado. Atravessei o pequeno estúdio no escuro até o canto dos cavaletes - a cada dia eles tomavam cada vez menos espaço no estúdio - e acendi uma luminária perto das telas. Ainda existia uma tela inacabada posicionada no cavalete do meio. Eu a retirei e a substituí por uma em branco. Na luz da luminária, localizei o branco e o preto, depositei-os em gotas na tela e os misturei ali mesmo. Um cinza fluido e mesclado. Tracei uma linha irregular vermelha cortando o cinza. Era o que estava dentro de mim. Era tão... deplorável.
Eu tentei aumentar o vermelho. Joguei laranja e marrom. Evitei o azul.
Alguns potes maiores de cores frias estavam no chão, próximo ao ângulo da parede. Elas não sairiam dali essa noite. Como não saíram na noite anterior. Eu não as conseguia tocar e consequentemente minhas telas acabaram se tornando escassas e o aluguel do estúdio atrasou. Sem as cores frias, elas se reduziam a nada.
Atrás dos potes, uma peça quadrada escondia-se por baixo de uma lona. Ela estava protegida ali, atrás da fortaleza de cores frias intocadas. Acho que para sempre manteria-se ali, oculta, exercendo sua presença esmagadora.
Eu procurei alguma bisnaga que eu poderia usar entre as que restavam próximas a mim. Embaixo de uma variedade pequena de cores, eu avistei. Paralisei minhas mãos. Como ele estava ali?
Um azul ofuscante despontava da tampinha de uma bisnaga moribunda, já tão amassada e apertada que escondia-se por baixo das outras despercebida.
Minha mão, que não era minha, pegou o azul sem que ao menos eu pudesse pensar antes.
Na verdade, eu estava enganada. Talvez fosse a única ocasião em muitas em que minha mão era realmente minha. 
Eu coloquei todo o resto de azul na tela. Eu peguei o meu pincel mais macio e o espalhei com carinho. Era o único elemento diante de mim que fazia sentido.
Larguei o pincel. Eu finalmente havia percebido.
Eu queria ser como a guitarra arrastada e subversiva. Tentava com tudo o que tinha.
Mas eu nunca seria.
Aquilo era patético. Eu queria ser um mar sem conseguir tocar no azul e no roxo. Era horrível. Era tudo horrível. Meus olhos doíam ao olhar para o cinza. Minha garganta doía. Tudo doía.
Uma onda esbraseante tomou conta de mim. Meu mar era negro e vermelho.
Peguei a primeira espátula que pude localizar e com violência cravei no tecido, puxando para baixo e abrindo em um rasgo transversal. Eu puxei a moldura de madeira com seus trapos de tecido pendurados ainda molhados, joguei no chão, pisei em uma das arestas e puxei a outra brutalmente, quebrando a moldura no meio.
- Tá tudo bem? - a voz sonolenta da garota retirou-me do transe de ódio.
Olhei para ela, que se apoiava com o cotovelo para levantar sua expressão assustada até minha direção. Só então senti a deformação nas minhas linhas do rosto e minha respiração ofegante.
- Desculpa te acordar. - fui até a cama com calma, deitando-me ao lado dela. Eu a acolhi em meu peito, e não demorou muito para que sua respiração ficasse pesada novamente. 
A luminária permaneceu acesa, e meus olhos não se desgrudavam da bagunça. Eu esperava que ela fosse embora de manhã sem me perguntar nada, mas seria ingenuidade minha achar que fosse acontecer.
Depois que tudo dentro de mim se acalmou, fui engolida pelo mesmo vazio de todos os dias e todos os momentos. Eu sabia que ele não seria completado por nenhum do meus vícios. Nenhuma luxúria ou autoindulgência falha. Mesmo assim, eu continuava agindo da mesma forma. Deixava que a "não-eu" controlasse as rédeas, pois quando eu as controlava, era isso que acontecia.
Eu definitivamente não dormiria aquela noite. Passei o resto das horas tentando não permitir que meu olhos fossem atraídos pela tela sob a lona e sua presença esmagadora.
Tudo ainda me lembrava dele.
Tudo.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Terras Brancas (parte 9)



Acordei com um sopro quente levantando as folhas. Sobre mim, o céu estava claro. Laranja e amarelo. Eu levantei-me devagar, ainda receosa sobre as raízes.
Quando apoiei os pés no chão, pode sentir que não doíam mais, e estavam tão livres quanto as folhas secas que o vento levava. Eu soltei um suspiro aliviado.
Em minha frente, agora com o ambiente iluminado, eu podia ver o final do bosque. Algumas últimas árvores altas antecediam um declive de grama. Eu me enchi de empolgação e corri até ele, atravessando os troncos derradeiros.
No topo do declive, toda uma extensão de ipês amarelos invadiam meus olhos. Eles estavam esperando por mim lá embaixo. Eu não pude resistir a correr contra o vento na descida verde e mergulhar naqueles tons de amarelo vivo dançantes. Rodeei-me deles em poucos segundos, tocando com as mãos as sensações de alegria, conforto e, consequentemente, um medo iminente de que tudo sumisse.
Mas eles estavam ali, tingindo energeticamente tudo ao meu redor. Não tinha motivos para temer, eles estavam ali.
Havia, em meio àquelas árvores, uma sensação intensa de reencontro. Entusiasmada por essa sensação eufórica, despontei a dançar ao redor delas. Toquei em cada variação do amarelo, em cada casca de madeira. Pulando e pulando, adentrando o quando pudesse.
A floresta de ipês abraçava-me.
Sem mensurar tempo, eu encostei em cada elemento arbóreo que se colocava diante de mim. Poderia jurar que reconhecia um elemento diferente em cada tato.
Rindo e rindo, eu sentei-me sob um deles. Senti seus pés. Seu braços sobre mim.
Eu recostei a cabeça em seu tronco. E ri.

~

Pairava uma estranha atmosfera sobre cada elemento daquele recinto, sobre cada amontoado de pessoas mais íntimas, salpicadas pelos cantos, e cada pessoa dentro desses amontoados, falando baixinho entre si, como se o volume dos diálogos pudessem acordar os mortos ali próximos. Cada planta alimentando-se da luz branda do sol por trás dos vidros das janelas, cada botão no estofado das poltronas e cada centímetro do chão frio de mármore pareciam encobertos por um tecido lúgubre. Ainda era manhã, perto do horário do almoço, e o enterro só aconteceria no fim da tarde. Até lá, eu haveria de receber todos os abraços carregados e pesados.
Avistei Ana entrando pela porta de vidro. Os cabelos negros e lisos até um pouco abaixo do queixo balançava enquanto ela andava sob as roupas do uniforme. Eu dera a notícia à ela bem cedo naquela manhã. Os olhos dela ligaram-se imediatamente a mim e ela pareceu ser puxada por uma corda até a poltrona onde eu estava.
-Dia - sentou-se do meu lado - Eu consegui sair mais cedo pro almoço pra dar um pulinho aqui. Como você está?
-A princípio, estou aliviada por não estar recebendo outro abraço.
Ela expeliu o ar, fazendo-se perceber que ela segurou a expressão espontânea por medo de que rir fosse um desrespeito.
-Sabe, - eu olhei para minhas mãos - Você foi a primeira pessoa a perguntar verdadeiramente sobre o que estou sentindo. Todas essas pessoas que estão aqui não estão interessadas nisso. Elas se preocupam em cumprir todas as formalidades das condolências para manter a imagem preocupada. Mas elas não se importam, nunca se importaram.
Um silêncio respeitoso se seguiu.
-Você pode me dizer o que aconteceu com a sua mãe?
-Bom - eu suspirei - ela sofria de pressão alta e de estresse crônico. O médico disse a ela que o problema dela era decorrente do estresse. Ela tinha sintomas de transtorno pós-traumático. O ideal seria um tratamento decente e um psiquiatra, mas meu pai não permitia que ela fizesse qualquer tipo de terapia.
Algumas pessoas saíram da salinha onde estava o caixão e foram em direção ao meu pai, que estava de pé em um canto. Faziam gestos perto dele, colocavam a mão sobre seu ombro, demonstrando expressar seus sentimentos para o sofrimento dele.
-Ela começou a passar mal na sexta, mas não quis dar trabalho pra ele. Demorou até que ele a levasse para o hospital. Do Mirante, depois que vocês me deixaram na estação, eu já fui direto pra lá. Disseram que ela teve um AVC seguido de parada cardiorrespiratória. Ela ficou pouquíssimo tempo em coma antes de falecer. Não houve tempo nem pra entender muito bem o que tinha acontecido.
Ana não dizia nada. Ela sabia bem como ouvir.
-Ele matou ela, Ana. Eu sei disso, você sabe disso, todo mundo aqui no fundo sabe disso. Mas eles utilizam toda a energia necessária pra ignorar esse fato e a violência que ela sofria. Ninguém quer se sentir culpado por não ter metido a colher.
Eu olhei de novo para ele, parado perto das plantas. No final de tudo, ele acabara como uma vítima do destino. Simplesmente um viúvo.
-Dia, se você precisar de alguma coisa, você pode me procurar. O que eu puder fazer você sabe que eu farei.
-Obrigada. - eu sorri.
Ela sabia que agora eu estava inserida nas portas de um inferno premeditado.
-Você perguntou como eu estou. - meus dedos procuravam alguma maneira de interagir entre si - Eu não sei dizer como eu estou. Às vezes parece raiva, às vezes parece medo, às vezes parece tudo junto e outras não parece nada. Eu não sei como me sinto em relação à morte dela. Sinto que não consigo perdoá-la. Não consigo perdoar ninguém. Não estou sofrendo como se tivesse perdido alguém cuja importância fosse recíproca. Ela não se importava comigo, Ana. Não se importava com ela mesma, só se importava com ele. Então, eu também deixei de me importar. Eu já a havia perdido há muito tempo.
Algumas pessoas começaram a sair, provavelmente para procurar algum lugar para almoçar.
-Vai lá Ana, você ainda precisa almoçar pra voltar pro trabalho. Obrigada por ter se preocupado em vir, eu estou bem.
-Tudo bem - ela se levantou, sem fazer objeções. Devia estar atrasada, mas do jeito que era, não falaria nada antes que eu dissesse. - Não se esqueça, qualquer coisa, pode me ligar. - ela olhou em direção ao meu pai, e em seguida para mim. - Ok?
-Ok.
Ana deu um último sorriso antes de se virar e andar de forma musical até a porta.
Após a sua saída, ainda permaneci alguns minutos sentada. O ambiente se esvaziava aos poucos, dando espaço aos ecos soturnos estranhos que pareciam colidir em uma camada que me revestia por dentro. Poucas pessoas ainda faziam com que meu pai e eu não fossem as únicas almas ali. Remexi desconfortavelmente na poltrona. Era impossível ignorar sua opressão sobre meus sentidos. Sem conseguir aguentar mais muito tempo, levantei e saí.
Desci os degraus de mármore além da porta de vidro, em seguida virando à esquerda para ter acesso ao portão de ferro, que permanecia aberto. Passei por ele, avistando os jazigos de pedra sob os ipês amarelos. Respirei fundo o ar ensolarado. Caminhando calmamente nos caminhos de paralelepípedos, pisando nas flores amarelinhas caídas, deixei minha mente se encher.
Por que ela não foi embora comigo quando disse que iria? Por que ela se importava mais com ele do que comigo? Por que ela se permitiu e me permitiu viver um inferno?
A camada que me revestia não deixava qualquer coisa entrar ou sair. Eu não podia me livrar ou entender os sentimentos que se agitavam e logo se amorteciam.
Ela disse que íamos embora quando eu tinha doze. Ela morreu na mesma casa enquanto eu tinha dezenove.
Eu nunca a perdoaria.
Sentei sob um dos ipês e tirei um papel e um lápis do bolso. Passei o resto da tarde traçando flores mortas. Apenas o sol laranja começando a se deitar conseguiu trazer-me novamente para o presente, e o meu coração gelou.
Eu não voltaria para aquela casa com ele. Eu preferia a morte.
Levantei-me depressa e voltei o papel e o lápis para o bolso. Logo seria realizado o enterro, o que certamente eu não fazia questão de presenciar. Saí do local sem me importar se me veriam ou não.
Em metade de uma hora, depois de pegar um metrô, eu estava em casa. Subi correndo as escadas, como se a polícia estivesse em meu encalço. Em uma mochila, coloquei algumas mudas de roupa, meus lápis, pincéis e tintas que eu ainda tinha, mais papel e, por último, o cisne de cristal da mesinha ao lado da cama. Deixei todo o resto dispensável lá. Passando pela sala, abri a adega e peguei de lá uma garrafa de whisky doze anos que o filho da puta guardava sabe se lá com que milagre - álcool nenhum se sustentava por muito tempo ali. Com a mesma velocidade que entrei, vesti um casaco e saí daquela casa pela última vez.
Em menos de um par de horas desde que eu saíra do cemitério, eu já me encontrava sentada no meio fio de uma rua qualquer, iluminada pelo amarelo alaranjado das luzes dos postes que era disputada pelos insetos voadores noturnos. A mochila permanecia nas costas. Pouco me importava o que acontecesse ou para onde eu poderia ir. Era certo que não haveria para onde voltar. Talvez eu ligasse para Ana mais tarde. Por ora, sem entender com exatidão o motivo, longe de tudo e de todos, eu deixava os soluços e as lágrimas emergirem, enquanto eles tivessem força para atravessar a camada.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Terras Brancas (parte 8)



Com mais calma, espalhei as folhas secas e esfreguei a sola dos pés na terra sob elas.
Todo o rebuliço das raízes estremecia em mim. Eu sabia que tinha que deixá-las para poder andar. Eu tinha de arrancá-las dos meus tendões.
Puxei o calcanhar para frente e para cima. Uma dor profunda e elástica intensificava conforme eu movimentava. Meus nervos aparentavam estar sendo puxados pra fora. Era impossível continuar, suportar a dor. Cedi, e meu pé retornou ao chão com força elástica. A pressão causou um choque em meus nervos e um consequente estado de dormência. Eu respirava tremulamente, tentando engolir a agonia seca.
Na calmaria roxa do bosque, uma luminosidade sutil começou a despontar ao longe, além das árvores. Vinda do além do horizonte escuro, trazia um vento quente diurno. Muito, muito sutil. Quase imperceptível.
Era o amanhecer?
Não tinha como ter certeza. Parecia apenas uma extensão da madrugada. Era apenas a minha vontade de ver a luz do dia, projetada na realidade. Indução de pensamento.
Contudo, eu precisava. Precisava que fosse. Mesmo que eu não conseguisse distinguir se a luz estava realmente crescendo, ou se meus olhos me iludiam.
Eu tinha a necessidade instintiva e impulsiva de correr em direção ao possível amanhecer. Eu o queria, como se o precisasse para viver.
Juntei tudo o que havia dentro de mim para puxar os tendões. Toda a coragem e força visceral. A dor de puxar mil elásticos rígidos fez irromper um grunhido incontrolável em minha garganta. Impulsionada pela luz opaca, puxei com força. Um seguido do outro, vários ligamentos arrebentados causavam um pequeno impacto. Barulho áspero de matéria orgânica rompendo. O último rompimento fez meu pé vir para frente de súbito devido à força empregada. O choque subia até atrás dos joelhos, pela panturrilha.
Aproveitando-me do estresse da dor e da adrenalina, puxei com ainda mais força o outro calcanhar. Gritando madrugada adentro, rompi todos de uma vez, desequilibrando para frente e caindo sobre as folhas.
Eu estava livre.
Meus olhos captaram o laranja e o rosa invadindo o roxo, atrás das árvores agitadas, antes de cair em um torpor escuro.

~

A tela em branco esperava pacientemente o carinho das cerdas molhadas do pincel. Os caminhos sinuosos coloridos que davam-na sentido de existência. A mão que segurava o instrumento, por sua vez, ainda doía, devido ao movimento da articulação que esticava a pele e forçava os cortes ainda não cicatrizados completamente. Era a primeira vez em muito tempo que eu tentava fazer algo fluir através delas. Entretanto, mesmo há minutos diante da superfície branca, nenhuma cor ousava pousar em minha mente.
Léo então entrou pela porta da sala. Irredutível, andava com a solidez de uma estátua de gesso. Há quatro dias não olhava para mim. Eu o ouvia chegar no meio da madrugada a cada última noite, fazendo ruídos na cozinha, com a mente flutuando em algum outro lugar, estimulada por seu cérebro sob efeito de qualquer coisa que o tornasse entorpecido, pegasse-o com mãos gigantes e macias e o sustentasse longe da sobriedade. Deitava pela sala mesmo, com a roupa ébria que trazia da rua. Era sua própria anestesia, seu jeito de atingir o mesmo objetivo que o meu, por meios diferentes e mais ortodoxos.
Léo trazia na mão a guitarra, que há tempos também não tocava, senão por ocasiões necessárias à nossa renda, sem criação. Em três anos, eu nunca tinha visto isso acontecer.
Tentei não deixar que minha consciência colocasse a frente qualquer elemento que fortalecesse ainda mais o bloqueio. Sentada, de costas para ele, fechei os olhos. Eu queria ver qualquer cor, qualquer uma, que não fosse o negro inquebrável do meu interior.
Subitamente, o som arrastado de uma das cordas medianas atingiu meus ouvidos, e ao mesmo tempo, uma névoa roxa pulsou dentro das minhas pálpebras. Logo em seguida, uma sequência lenta de notas escuras, tocadas com sentimento latente. Tons profundos de púrpura. Abri os olhos, e mergulhei as cerdas na tinta roxa. Com lentidão, tracei linhas tímidas no apático branco.
Ele tocava com a intensidade pungente do sofrer e do amar. Ele enfim estava criando algo. E era lindo.
Eu segui traçando, misturando, colorindo todo o espaço. Azul marinho, fúcsia e um pouco de cinza escuro.
Ele dedilhava destemidamente um caminho tortuoso, como se estivesse tentando atravessar um mar tempestuoso e profundo. Como se a noite fosse infindável. A melodia subia e descia como um pedaço de madeira à deriva. Estava tentando não se afogar nas próprias ondas, em si mesmo.
Eu o sentia.
As notas, lenta e suavemente, deslizaram para um final calmo. A calmaria de um amanhecer róseo. No horizonte mareado, com suavidade esfumacei o fim da madrugada com tons claros, apenas o suficiente para que se houvesse dúvidas se o amanhecer realmente viria.
Alguns segundos longos após o final do soar da última nota, dentro de um silêncio massivo, senti-o se aproximar. Léo se ajoelhou devagar do meu lado esquerdo, pegou minha mão borrada de tinta com o cuidado que se toca em algo rachado, levou à boca e beijou os cortes. Imediatamente, as lágrimas saíram dos meus olhos, transbordando o mar que ele havia acabado de transformar em música. Ele puxou minha outra mão e beijou também as linhas avermelhadas dela. Beijou os pulsos. Só então levantou os olhos de lua nova até os meus.
-Eu senti tanta falta dos seus olhos... - não pude evitar dizer em meio às lágrimas.
Ele me abraçou, aninhando o rosto em meu peito. Eu envolvi sua cabeça com meus braços. Meu coração não sabia mais como se mover. Senti as lágrimas dele molhando minha blusa e os soluços tremendo seu corpo.
-Me perdoa... - foi só o que ele conseguiu murmurar.
Deixamos por longos minutos que o mar nos balançasse e nos inundasse. A noite avançava lá fora. O silêncio confortavelmente nos abraçava, permitindo vir as ondas fortes. Por um momento eu queria não ter pegado a lâmina. Queria não ter causado isso a ele. Mas não consegui. Eu precisava. Precisava sair daquele limbo de torpor, que só cedia para dar lugar àquela tristeza profunda. Precisava da minha anestesia. 
-Se você tivesse feito, se tivesse realmente feito, eu não sei se conseguiria... - ele pausou para dar espaço a mais lágrimas - Se um dia você fizer, Dia, eu não sei se posso lidar.
-Eu sei.
-Me perdoa.
-Não tem o que ser perdoado - eu o abracei mais forte.
Eu conhecia cada parte - algumas não reveladas - do seu interior. A sua intensidade, a sua sensibilidade, mas o seu orgulho também. Ele abaixou as águas para se permitir ceder, dessa vez. Entretanto, eu sabia o quão marmóreas poderiam ser as suas decisões. Ele conhecia os problemas nos quais eu estava imersa, porém eu também conhecia os dele. Haviam coisas que eu tinha em mente que não poderiam ser perdoadas. Nunca.
Depois que as lágrimas cessaram, ele olhou com atenção o quadro. Não estava terminado, eu ainda traçaria alguns delineados, mas continha todos os sentimentos em forma de cores. A ideia do mar noturno agitado e do céu roxo sobre ele, um provável amanhecer púrpura, as nuvens escuras. Elementos não claros e nítidos, mas instintivos.
-Talvez eu coloque um piano, uma progressão de acordes diminutos ou menores pra contextualizar a melodia. No final posso fazer um contraponto com o piano arpejando em maior.
-Isso quer dizer que há um amanhecer afinal?
Léo olhou para mim novamente.
-Eu amo você. Amo como nunca amei e como nunca poderei amar ninguém.
Relaxei todo o meu corpo. Ele me perdoara. Respirei o ar que faltava.
-Noturno. - ele ponderou - É assim que vou chamá-la.
-Diz muito sobre você.
Eu aproveitei a proximidade para beijar sua testa.
-Eu também amo você, com tudo o que tenho.
Léo abriu espaço para um sorriso. Ele levantou-se, suspirando, na mesma delicadeza com a qual ajoelhou-se, e caminhou até a janela fechada da sala, arrastando a mão sobre o maço de cigarros e o isqueiro sobre a mesinha enquanto passava. Abriu as cortinas e escancarou a janela, dando passagem para que a noite urbana adentrasse o recinto e soprasse o ar movimentado em meio ao apartamento estagnado. Acendeu um cigarro, e mergulhou o olhar no longínquo.
Eu levantei-me e juntei-me ao seu lado na janela, estendendo a mão para que ele me desse um cigarro. Ele sorriu ao virar-se para mim, nos olhos havia o brilho das lembranças.
Permanecemos ali, desfrutando a presença um do outro, soprando fumaça para o céu noturno estrelado. Dividindo calor, fitávamos a mesma extensão celeste escura, cuja imensidão, por mais que tentasse, não era capaz de equiparar em número e tamanho as sensações que entrelaçavam-se entre nós. 

domingo, 29 de março de 2020

Meu Girassol


- Meu Girassol
Permitas-me ser teu Sol
Guiar-te durante o dia
Só de ver-te, que alegria

Pobre do Sol
Tão distante do Girassol
Apesar de singulares,
Como podem não se amares?!
                       
- Sou apaixonado por ti
E enquanto eu existir
Estarei aqui
Mesmo que possa apenas te assistir

Mas de alguma forma
Eles se completam
Como o Mar e Lua
A felicidade do Girassol é poder ser tua

- Primeiro raio da manhã
És a ti a quem dedico
Meu belo Girassol
Existo para ser teu Sol

E mesmo durante a noite
O Sol esta lá por ela
E Girassol mal imagina
O quanto ele ama ela



domingo, 8 de março de 2020

Terras Brancas (parte 7)



Escolhi o caminho da esquerda. Comecei a andar lentamente por ele, carregando meu medo irracional. Os troncos escuros subiam até além das nuvens roxas. Eu os cruzava com a sensação de que eles era braços, evitando que a extensão celeste caísse e convergisse brandamente com a extensão do solo. Lençol sobre a cama. Eu estava no meio das camadas.
Andando sob o silêncio ensurdecedor, fora da inebriante canção acolchoada e da prazerosa - porém, de certa forma, limitadora - anestesia que ela me causava, detalhes minuciosos chegavam à minha pele. Minúsculos movimentos se desvelavam, e os mínimos sons eram percebidos pelos meus ouvidos.
Eu sentia todo um sistema radicular se agitando no solo abaixo dos meus pés. Árvores gigantescas enraizadas, tentando se movimentar, tentando ser diferentes, porém contidas pelas raízes profundas, presas ao mesmo lugar.
Elas estavam na terra. Estavam nos meu pés. Segurando o meu sentir, o meu pensar. Estavam em mim.
Como se move e se muda algo que está enraizado tão profundo?
O caminho que meus pés traçavam parecia difícil de ser percorrido. Pesos invisíveis contendo meus tendões para baixo e para trás. Eu puxava e puxava. Tão difícil...
Meu corpo assemelhava-se aos troncos escuros. Estagnados no mesmo lugar. Eu tinha dado passos tão arrastados, com tanto esforço, por que eu ainda parecia continuar no mesmo lugar?
Então, parei. Parei de puxar, de me mover. Apenas respirei fundo. Eu não podia fazer nada.
Não podia.
Fazer nada.
Minha memória reconheceu a imobilidade. Eu já passara por isso antes?
As lembranças que surgiam em minha mente seguiam despreocupada cronologia aleatória. Como num sonho, onde tudo acontece ao mesmo tempo. Passado, futuro e presente. Elas se mostravam como queriam se mostrar, puxadas pelos elementos que eu interagia em meu caminho. Apareciam, invadindo a minha memória límpida. Os fragmentos, as cores, as raízes.
Sim, eu me lembrava. 

~

Balões coloridos decoravam todos os cantos das paredes da sala e da cozinha, que tinha uma mesa de jantar no centro, com tampo de mármore e pés de ferro branco. Sobre a mesa e sob os balões, um bolo de morango com cobertura cor de rosa reinava, imponente, com exércitos de docinhos sortidos ao seu redor e torres de garrafas de refrigerante. Tinha uma coroa de seis velinhas vermelhas acesas, prontas para serem apagadas e receberem um pedido. O ambiente estava escuro para enfatizar as chamas tremilicantes. Todos ao redor batiam palmas felizes, cantando um parabéns alegre. Eu não sabia muito bem o que fazer, tendo a atenção de todos voltada a mim. Portanto, eu me concentrava em olhar para as velinhas e balançava meu corpo de um lado para o outro, com as mãos juntadas atrás de mim. Meus dedinhos se entrelaçam uns nos outros, talvez tentando desembaraçar os sentimentos que eu ainda não sabia como lidar. Mesmo assim, eu estampava um sorriso tímido.
Olhei para o papai e para a mamãe, que estavam do lado direito da mesa, sorridentes. Quando todos começaram a repetir meu nome, mamãe moveu a boca, pronunciando palavras sem som: "Sopra, sopra."
Então eu mentalmente pedi: "Quero poder voar!", e soprei, apagando as seis velinhas - uma para cada ano.
Todo mundo vibrou e bateu palma. Mamãe e papai chegaram perto assim que as luzes se acenderam e ficaram parados atrás de mim, levemente debruçados. Disseram-me para olhar para frente, mas eu queria cortar o bolo, então estendi a mão em direção a ele bem no momento em que uma luz branca extremamente rápida invadiu todo o recinto por menos de um segundo. Eles então voltaram a se esticar, relaxando, enquanto meus olhos se acalmavam do pequeno susto que a luz repentina os causara. Todos bateram palmas novamente.
Eu não entendia muito bem porquê precisava de tudo isso, porquê não podíamos só comer o bolo e os docinhos. Porém, comecei a maquinar: e se o bolo fosse realmente uma rainha, e todos fossem obrigados a reverenciá-la, para que ela pudesse atender meu pedido? Então eu compreendi o motivo, e minha mente se aquietou.
Mamãe tinha dito que eu precisava escolher pra quem eu daria o primeiro pedaço do bolo, que precisava ser alguém a quem eu queria bem. Eu não queria mal a ninguém que estava ali, não gostaria de ter que escolher. Mamãe disse que eu tinha que escolher, que era tradição. Então eu o dei para ela mesma, porque queria muito bem à mamãe, e porque alguma coisa no rosto dela parecia pedi-lo pra mim. E foi muito gostoso ver o seu sorriso grande quando eu disse que o bolo seria dela.
Quando todos acabaram de comer, juntei-me novamente aos meus amigos e aos filhos dos amigos do meu pai - que se tornaram também meus amigos naquele momento - e decidimos brincar de pega-pega no quintal. Um correndo atrás do outro, não tínhamos noção de tempo ou de espaço. Adultos não existiam. Hora de ir embora não existia. Pelo menos até o momento que vinham chamar pra ir embora, e implorávamos tanto que deixavam que brincássemos mais.
No momento que eu corria atrás do Julio, passamos perto de algumas caixas de plástico grandonas, com várias garrafas de vidro marrom dentro. Eu percebi com o canto dos olhos algumas dessas mesmas garrafas em cima de uma mesa montada do lado de fora, rodeada por homens. Papai estava lá, falando alto demais. Tinha cartinhas na mão dele, e na mão de todos os homens. Disseram-me uma vez que era jogo de adulto e não me deixaram jogar, mas parecia divertido.
Uma voz de trovão fez eu parar de repente. Eu olhei para o papai, e ele estava olhando pra mim. Disse com uma voz muito esquisita para eu parar de fazer bagunça. Eu fiz que sim com a cabeça, meio triste. Eu não estava fazendo bagunça.
Saí do campo de sua visão andando devagar. Quando já estava mais longe, comecei a correr de novo. Meus amigos tinham se espalhado por toda a casa. Corri para dentro da cozinha para procurar alguém, e vi mamãe guardando as sobras. Outras mulheres estavam lá também. Ela parecia meio séria - o sorriso grande tinha desaparecido.
Encontrei alguns na sala, com suas mães. A explosão da brincadeira se dissipara de repente, rápido como sempre aconteciam as coisas na infância. Tive que me despedir deles, pois já era tarde e todos precisavam ir pra casa. Cada um levava consigo um pedaço de bolo e docinhos embrulhados em meio às camadas dos pratinhos descartáveis - um em cima e outro em baixo - e algumas bexigas coloridas. Um por um que saia da minha casa, meu ânimo se aquietava e dava lugar a um sono inevitável.
Eu queria deitar e dormir, mas mamãe não me deixou escapar do banho. Era nessas ocasiões que eu torcia para que o tempo passasse depressa, para outro aniversário chegar, e outro e outro, para então eu ser adulta e não ser mais obrigada a tomar banho. Ia ser maneiro.
Depois do banho, mamãe me levou para o quarto. No caminho, ouvi papai na cozinha, falando coisas que eu não entendia. Ele parecia bravo com alguém, mas não parecia ter mais  ninguém na cozinha. Mamãe apertou um pouquinho minha mão, me puxando um pouco mais rápido até o meu quarto, até minha cama. Finalmente, a minha cama quentinha e fofinha. Finalmente, o Dorminhoco. Abracei com vontade o ursinho de pelúcia cor de creme, que usava uma touca de dormir azul com estrelinhas pratedas. Mamãe me cobriu e me deu um beijinho de boa noite na testa antes de sair. O beijo fazia eu me sentir mais quentinha que o cobertor peludo.
Havia uma luminária azul com estrelas - que combinava harmonicamente com a touca do Dorminhoco -, girando e girando, na mesinha do lado da minha cama. Eu gostava de dormir olhando para as voltas infinitas das estrelas, deixando-as me levar até o mundo dos sonhos. Elas voavam até muito, muito longe. As voltas não traziam as mesmas estrelas, elas eram sempre novas, vindas dos confins do universo, e iam embora para sempre, para nunca mais retornar. E eu gostava tanto, tanto de azul...
Foi mergulhada no azul que ouvi o primeiro grito. Como um trovão, uma tempestade. E outro grito, como passarinhos fugindo da chuva forte. As estrelas na luminária tremiam nos meus olhos - não tinha como fechá-los.
Levantei da cama segurando o Dorminhoco. Puxei a porta do quarto devagar, revelando a escuridão do corredor invadida por reflexos azuis das estrelas. Vários passarinhos agitados na cozinha. Eu percorri as trevas até a escada, iluminada pela luz da sala lá embaixo. Desci devagar os degraus, silenciosa, temendo assustar mais os passarinhos. Atravessei a sala, inundada pelos sons abatidos vindos da cozinha, e cheguei de mansinho à entrada de azulejos brancos.
Papai estava de frente pra mamãe, chamando ela de nomes de animais. Ela chorava, e os passarinhos saíam da boca dela, fugindo pra longe. Ela falava coisas sobre bebidas e os jogos de adultos. Um outro estrondo saiu da boca do papai, e o raio caiu tão perto que quase me deixou surda. Foi quando, com a mão aberta, ele acertou com força o rosto da mamãe, que segurou com as duas mãos onde ele tinha atingido. Ela tentou dizer alguma coisa, mas com a mesma mão ele atingiu sua boca com os dedos fechados. Ela caiu no chão, atrás da mesa que estava atrapalhando minha visão. Eu o via pisando com força do chão, igual quando alguém mata formigas no chão - formigas gigantes, porque ele pisava forte -, e via entre os pés das cadeiras e da mesa movimentos dos braços dela. Num dos pisões, ouvi um repentino barulho esquisito de estalo. Imediatamente em seguida, um grito de dor. Um único passarinho, gritando de forma ensurdecedora, com desespero e agonia, prestes a morrer.
Num impulso causado por algo muito assustador dentro de mim, eu invadi a cozinha até onde ela estava.
- Mamãe!
Ela segurava o braço esquerdo e gritava. Papai olhou pra mim, os olhos dele pareciam muito zangados. Ele perguntou se eu estava desafiando ele. Não entendi o que ele quis dizer, mas fiquei com muito medo. Apertei o Dorminhoco nos meus braços. Ele começou a vir até mim, e eu comecei a andar pra trás. Lágrimas começaram a cair dos meus olhos sozinhas. Eu tentava engolir o choro como sempre me diziam pra fazer, tentando fazer algo correto. Quem sabe se eu me esforçasse, tudo acabasse bem?
Papai vinha desequilibrando. Segurou na porta da geladeira, se apoiando para tirar um dos sapatos grandes. Continuou vindo, com o sapato na mão, o outro no pé, e o outro pé com uma meia preta. Eu fiquei parada, encostada na parede branca e fria. Fiquei parada como se fosse uma árvore. Grudei as raízes dos meus pezinhos no chão. Se eu corresse, ele ia ficar mais zangado. Se eu corresse, ele diria que eu estava fazendo bagunça.
Era isso. Eu tinha feito bagunça. Ele tinha ficado bravo por minha causa. Eu não devia ter corrido depois, ele deve ter visto eu correndo. Eles brigaram porque fui desobediente, porque fiz coisa errada.
Papai então falou pra eu pedir desculpas. Era isso. Era minha culpa.
- Desculpa... - minha voz saiu mais para dentro do que para fora.
Ele estava perto. Mamãe ainda gritava. Ele pegou meu braço com muita força, me puxou, levantou o sapato e me deu um golpe no quadril, acertando um pouco da cintura. Doeu muito mais do que as quedas que eu tinha correndo no parquinho. Muito mais do que a vez que eu cai da cama. Muito mais do que tudo que eu já tinha sentido, porque doía meu corpo e doía no meu peito, lá dentro, no meu coração. Doía tanto, porque tinha dor, culpa e medo. Engoli outra vez o choro, mas as lágrimas ainda saíam sozinhas.
Mamãe gritou pra que ele me largasse. Ele então virou-se pra onde ela estava e me soltou.
Eu ainda apertava o Dorminhoco com força. Tinha raiva das minhas lágrimas que saíam sem eu deixar.
Eu queria que o meu pedido se realiza-se agora. Exatamente agora. Queria deixar de grudar as raízes apenas para sair flutuando para longe. Voar para onde estavam indo as estrelas azuis. Para onde eu nunca mais precisasse ter aniversários, para nunca mais fazer nada de errado, para nunca mais ver a mamãe e o papai assim. Nunca, nunca mais eu queria uma festa de aniversário, porque esse era o motivo de tudo acontecer.
"Por favor.", eu pedi, "Por favor!"
Tentei me impulsionar para cima, sair pelo ar, seguir as estrelas. Para os confins do universo. Mas meus pés não saíam do chão. Colados.
As reverências de todos não eram capazes de realizar meu pedido.
Eu não podia fazer nada.

segunda-feira, 2 de março de 2020

Terras Brancas (parte 6)



Eu queria correr no escuro. Sem preocupações sobre o que quer que estivesse embaixo dos meus pés - embora certamente se assemelhassem consistentemente com folhas secas caídas. Cair através daquela noite nunca poderia ter sido tão lentamente sóbrio. E isso era bom, na verdade, pois permitira que eu analisasse cuidadosamente cada porção de fragmento. Cada porção do que eu era. E estava incompleto. Eu sabia que precisava ir além, precisava adentrar mais, precisava e queria correr.
Uma escuridão quase esmagadora pairava no bosque. Uma escuridão fraturada por manchas arroxeadas que vinham do céu noturno sobre as árvores altas. A música da clareira e do rádio no corredor ainda tocava, continuadamente, com notas de veludo transpassando os galhos e as raízes. Vinda de lugar nenhum. Era, em associação ao bosque arroxeado e à escuridão, acolchoadamente confortável. Transbordava paz.
Deixando essa paz inundar meus sentidos, parei de correr. Olhei com paciência cada pequena porção das árvores que me rodeavam. Olhei para cada caminho belo por entre elas, misteriosos e quietos, esperando que eu me aventurasse no escuro.
Repentinamente, a música parou.
Absoluto silêncio sob o bosque.
Eu observei novamente os caminhos. Eles ainda esperavam que eu me aventurasse, mas por que não pareciam mais tão confortáveis?
Não sabia por qual abertura adentrar, não sabia para onde ir.
O silêncio ficava cada vez mais aterrador. Um pavor irracional cresceu em meu estômago. Contudo, não havia escolha. Para onde eu iria voltar?

~

Eu procurava naquele lugar algo que pudesse levar minha consciência e minha atenção para longe de mim mesma. Música era sempre algo que elevava meus sentidos a um outro mundo, alheio à todos - ou talvez na verdade compartilhado por todos -, levitando a realidade tanto quanto o momento de imersão em minhas pequenas telas e papéis. Inclusive, esperava também encontrar alguma inspiração nas notas agressivas, depois de desperdiçar tanto tempo em ilustrações vergonhosas. Talvez aquilo desse às minhas ideias uma singela luz. Eu queria um choque, um golpe dilacerante nos meus conceitos gastos. E um pouco de loucura extasiante também.
Uma banda de metal extremo e outra de punk já haviam contado sua pequena história ácida e melodicamente contundente sobre o palco, que estava montado precariamente com pallets sob peças grandes de madeira plana, iluminado por algumas luzes vermelhas. O ambiente noturno, proibido e inabitável do prédio abandonado era densamente escuro e tinha pichações por toda a extensão das paredes e colunas, que milagrosamente ainda sustentavam a construção. Nos cantos, pessoas se banhavam de suas doses incansáveis de seus entorpecentes preferidos - cada um eleva seus sentidos de sua própria maneira. Sobre os pallets e as madeiras, as caixas de som de baixa qualidade recebiam os cabos, preparando-se para intensificar os instrumentos da próxima banda. Pude ver um cara de cabelos castanhos caídos até os ombros com um microfone na mão, quando virei minha cabeça em reação ao som do teste que ele estava executando. Eu permanecia virada para a abertura do prédio que levava até uma área externa, aparentando uma garagem, direcionada ao leste do palco, de costas para as pessoas que começavam a se aglutinar em frente ao centro das atenções. O cigarro que eu havia acabado de acender ainda queimaria durante uns minutos, antes de eu poder querer me aproximar do som.
Ana e Michel, os quais me convidaram a ir àquele covil, haviam desaparecido do meu campo de visão há vários minutos. Eu sabia que estariam provavelmente em algum dos cantos escuros ou então nos fundos da garagem, transando. Depois da fumaça queimar minha garganta ao entrar e sair, eu me perguntei se essa seria realmente a forma que eu gostaria de me matar, dentre tantas outras mais tentadoras e menos lentas. Um copo que contivera alguma mistura alcoólica barata, presenteado por Ana, jazia no chão ao lado do meu pé.
Em meio aos pensamentos, às tragadas e às observações engolidas pela leve alteração do meu cérebro sutilmente ébrio, não percebi a breve passagem de som, tampouco prestei atenção nas palavras do vocalista introduzindo a apresentação. Percebi apenas quando a primeira música começou, iniciada com um solo meio quebrado - mas incrível - da bateria. O baixo acompanhou a voz meio rouca, entrando ambos no mesmo momento. As palavras entravam em uma sintonia perfeita e poética, falando de algo que, a princípio, não tinha um sentido explícito. Depois dos primeiros versos, a guitarra finalmente soou.
Eu imediatamente olhei para o palco, para a banda. Para o guitarrista.
Aquelas notas implícitas, cáusticas, vermelhas como a luz que cobria o ambiente. Uma seguida da outra, porém independentes, descompromissadas com o próprio tempo. Elas pareciam dançar sem rumo, fugir, mas no final acabar se encontrando com o ritmo da bateria. Era agressivamente calmo. Princípio de insanidade. Aquelas cordas de distorção alternadamente leve e pesada chegavam em mim como uma contorcionista que faz malabarismos loucos sobre uma corda bamba, permanecendo contraditoriamente equilibrada, de forma perfeita. Antítese.
O dono dos dedos que corriam pelas cordas de aço tinha os olhos voltados a si mesmo. Como se não pudesse emergir da profundidade da qual estava retirando as notas. Diferente dos colegas, tinha o cabelo cortado na máquina, no mesmo comprimento de sua barba. As roupas escuras, porém simples, cobriam a pele morena. Ele não aparentava ter mais que dois anos de diferença de mim. Completamente imerso, ele emanava uma complexidade misteriosa. Cada nota era um pedaço que retirava de si. Cada nota carregada de circulação sanguínea pulsante, densa e linda.
Deleite-me até o último segundo da música. E da próxima. E da próxima.
Ana então apareceu com Michel, claramente apoiando-se nele.
- Ela não ta muito legal - disse ele alto e perto do meu ouvido ao se aproximar de mim - Vou levá-la embora. Você vem?
- Vou ficar mais um pouco por aqui. - tive que elevar a voz também, para competir com o som da banda.
Michel me fez um sinal de joia com o dedão e sumiu com Ana entre a pequena multidão em direção à saída.
Continuei acompanhando o restante do show. Levemente distante da aglutinação, preferi permanecer ali mesmo.
Ao final da apresentação - e com o fim do meu deleite - os rapazes deixaram o palco e as pessoas moveram-se novamente para os cantos, dispersando-se lentamente, para esperar a organização para o próximo e último show. Eu estava sozinha, em um lugar perigoso, incerta sobre o meu destino, sem hora pra voltar,. Isso me agradava muito. Era o mais próximo que eu chegava da felicidade. Aliás, para onde eu iria voltar?
Enquanto apreciava o sentimento desprendido, uma figura aproximou-se da extremidade oposta da abertura. O moço de roupas escuras e pele morena escorou-se com o ombro no batente, cruzou as pernas de forma relaxada e retirou um maço de cigarros do bolso da calça. Dele, retirou e levou um cigarro à boca, pegou um isqueiro do mesmo bolso e acendeu, protegendo a chama dos ares noturnos com a outra mão. A chama se apagou assim que ele recolheu as duas mãos, voltando a direita com os elementos para o bolso e repousando-a lá. Com a esquerda, ele pressionou entre os dedos indicador e médio o fumo e removeu da boca, levando para baixo e pendendo o braço com sutileza decisiva. A fumaça saiu com leveza pela sua boca e ele permaneceu olhando para frente, ao longe. Todos os seus movimentos eram estranhamente... atraentes.
- Ei. - eu chamei de forma solta, e seus olhos se viraram a mim. - Pode me arrumar um cigarro?
Ele imediatamente pegou o maço do bolso e o estendeu aberto a mim. Peguei um e ele o recolheu. Em seguida, me entregou o isqueiro.
Enquanto eu acendia, senti seus olhos em mim. Ao devolver o objeto, comprovadamente encontrei seus olhos negros diretamente. Um segundo longo se passou.
- Qual seu nome? - uma voz profundamente grave saiu de sua garganta.
- Diane. E o seu, guitarrista?
Ele soltou um sorriso de canto de boca ao ouvir a designação.
- Léo.