quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Angelus (parte 12)



Guilherme repentinamente puxou Dantalion pelos cabelos e o jogou para longe de mim. Eu não sabia exatamente o que sentir.
Eu estava surpresa, talvez assustada, extremamente confusa. Uma nefilim? Era isso que eu realmente era?
Eu... descendia de anjos?
Guilherme me olhou nos olhos. Sua boca sangrava. Não houve muito tempo para que eu o dissesse qualquer coisa, ele se virou para Dantalion e os dois mergulharam novamente em ilusões.
Uma onda súbita e estranha, porém suave, soprou em mim. Uma pequena agonia, que atingiu meus pulmões de leve. Vi um sorriso maléfico surgir no rosto do demônio, e Guilherme percebeu que ele estava fazendo algo.
- Você não irá imergi-la!
Pulou para cima dele com os olhos verdes brilhando intensamente no escuro da floresta. Apertou seu pescoço com as mãos ao derrubá-lo, mas Dantalion não desmanchou sua feição maléfica.
Foi quando senti essa onda crescer em mim. Com muita rapidez, o lugar à minha volta foi tomando outra forma. Tudo foi engolido por um vermelho alaranjado flamejante, as árvores estavam sendo consumidas por fogo e exalavam um cheiro de enxofre que quase me fez vomitar. O calor do lugar cresceu, até se tornar insuportável e queimar-me de dentro para fora. Minha respiração sumiu de repente, e meu peito se apertou em dor. Simplesmente fui ao chão, contorcendo em uma respiração agônica que não levava ar aos meus pulmões. Meu sangue parecia ferver, borbulhar em minhas artérias, enquanto minha pele parecia estar sendo mergulhada em ácido. Eu já havia ido muito além do meu limite de falta de ar, mas nenhum torpor apareceu para me aliviar. Eu era cruelmente obrigada a perecer naquela agonia. Torturante. Incessante. Aquilo me colocava à beira da insanidade. A morte parecia-me uma ideia confortavelmente perfeita, e eu só queria que alguém me acalentasse com esse tão desejado fim.
Eu tinha certeza: aquilo era o inferno.
- Amelie! - ouvi Guilherme se agitar.
Apesar da dor que me flagelava, olhei para o lado. Em meio ao fogo, numa visão turva, vi os olhos de Guilherme aflitos descuidarem-se diante da minha tortura. Dantalion aproveitou-se de sua guarda baixa. Com os dedos pontiagudos encobertos de trevas, perfurou com violência seu peito.
Uma dor pior do que a do inferno feriu minha alma.
A ilusão parou e a agonia em mim desapareceu.
- O teu erro, criança, foi permitir-se amar essa mulher. - Dantalion murmurou, com os dedos ainda dentro da carne de Guilherme.
Seus olhos arregalados não tiveram força para permanecerem verdes.
Eu não pude evitar um grito de desespero. Aquela cena congelou meu coração.
- Agora... - o demônio ria malignamente - Deixe-me finalmente deliciar-me com o resto de tua vida.
Dantalion o forçou a olhar em seus olhos, para que pudesse se alimentar de sua vida. Eu me levantei e corri em direção à eles. Juntei toda a força que havia em mim para não deixar a apreensão obstruir minha magia, movi toda a luz que eu poderia suportar e a impulsionei para fora do meu corpo. Uma silhueta de luz saiu de mim e penetrou no corpo de Dantalion, que a absorveu, enrijeceu e tombou, removendo os dedos compridos do peito de Guilherme. Ele também desabou, levando a mão até o ferimento e apertando-o.
Despenquei em cima de Guilherme. Desesperada, coloquei minhas mãos sobre a sua, sentindo seu coração acelerado e a pressão do sangue que escapava intermitentemente para fora de seu tórax e espalhava-se rapidamente sob sua roupa, entre os seus e os meus dedos, escorrendo até a terra. Minhas lágrimas não encontraram resistência nenhuma para sair.
- Guilherme... - não tive controle sobre minha voz trépida.
Ele respirava com muita dificuldade através da boca aberta. Uma respiração completamente irregular, quase sem nenhuma expiração, com um som atormentador. O suor frio em sua testa molhava seus cabelos e sua pele pálida me apavorava. A poça viva, vermelha e brilhante de sangue sob nós espalhava-se com velocidade e cada vez mais, assim como a angústia que me contraia. Não, ele não podia morrer assim.
O espaço e tempo que me envolviam foram esquecidos por minha mente. Tudo o que ela se permitia receber era o desespero perante aquela cena aterradora. Eu não sabia o que fazer. Eu era inútil. Eu... não poderia salvá-lo.
Seus olhos não deixavam em nenhum momento os meus. Eram os mesmos olhos assustados da visão em seu quarto, porém agora também conformados, serenes. Eles tentavam me dizer o que ele não conseguia falar, na ausência de sua voz. E eu os entendia.
- Eu também amo você...
Ele colocou a outra mão fria e sem força sobre as minhas. Não consegui dizer mais nada a ele, nenhuma palavra.
A respiração dele tornou-se mais fraca, juntamente com seus batimentos que eu não conseguia mais sentir. Num último impulso, Guilherme ergueu a mão e tocou no meu rosto. Instantaneamente, senti uma energia diferente entrando em mim, se fixando em minha alma. Algo forte, que impactou-me, que me fez inspirar profundamente e arrepiar o corpo inteiro. Um sopro ameno acariciou meu interior. Meu espírito reluziu. O verde apareceu em seus olhos apenas para deixá-los novamente, dessa vez desaparecendo suavemente para sempre. Embora ele nunca tivesse me dito que fazer isso era possível, eu sabia exatamente o que ele havia feito. Ele não precisava falar, eu sentia.
Sua mão escorregou do meu rosto, manchando-o com seu sangue, sem mais nenhuma força caindo sobre minhas pernas ajoelhadas. Uma última puxada de ar, fraca e trêmula, afligiu meus ouvidos. Seus olhos, pelos quais eu me apaixonara tão intensamente, lentamente foram perdendo o foco, até toda a vida esvaecer do mel que os inundava.
Meu grito doloroso de sofrimento ecoou na noite escura.
- Guilherme... Não, não, não! - os soluços que minhas lágrimas formavam em minha garganta quase não permitiram que as palavras saíssem.
Eu toquei em seu rosto frio, recusando-me a acreditar que ele estava morto.
De súbito, uma pancada em minha cabeça me fez tombar no chão. Uma tontura estremeceu minha visão, mas enxerguei Dantalion, sangrando pelos olhos, nariz e boca, destruído por dentro, em pé diante de mim.
Eu tentei me arrastar pelo chão para longe dele, porém, o demônio pisou em meu peito, imobilizando-me.
- Garota maldita! - sua voz monstruosa cheia de ódio era pavorosa - Híbrida nojenta! Magos? Mas que eufemismo falacioso! Alexiel nunca deveria ter descido à terra para dar a oportunidade de existência à seres repugnantes como vós! Ela é a prova do quão putrefato é o amor! Faz corromper a pureza de um anjo, dá à luz criaturas cuja própria existência coloca todas as dimensões em colapso! - ele colocou mais peso sobre mim, quase quebrando minhas costelas sob seu pé - É por isso que morrerás agora, e eu terei o prazer de levá-la comigo ao lugar de onde teus ascendentes fazem parte!
Eu movimentei meus braços para trás numa última tentativa de fuga, e um deles encontrou algo duro entre as folhas secas. O chifre quebrado de Dantalion. Ele abaixou-se para chegar mais perto de mim. Nesse momento, dentro da minha mente, relembrei da ilusão do inferno que ele havia colocado sobre mim, cada detalhe dela. Fechei os olhos e constitui toda a cena com a maior perfeição possível. De uma forma que era impossível de se descrever com exatidão, empurrei esse pensamento usando a energia que Guilherme passara à minha alma, e o senti se desprender de mim, encobrindo os sentidos de Dantalion com uma aura esverdeada. Eu podia enxergar o cenário real à minha volta, e ao mesmo tempo ver e controlar o meu cenário fictício. Surpreendi-o com a ilusão inesperada, e utilizei o único segundo em que ele se distraiu para embeber completamente o chifre com minha luz, puxá-lo e fincá-lo com força na lateral de seu crânio vulnerável.
O demônio caiu para o lado na mesma hora, dessa vez, definitivamente morto. Ele desmanchou-se em cinzas e esfumaçou no ar, desaparecendo.
Ainda caída no chão, observei o céu por trás das copas negras das árvores. Um vento frio atravessou toda a floresta, espalhando as folhas secas caídas e agitando as sombras sob o firmamento noturno. Juntei minhas ultimas forças para me arrastar novamente até o lado de Guilherme. Eu deitei meu rosto habitado por uma única expressão vazia em seu ombro. Desolada, permiti que a tristeza se apoderasse de mim, levando mais lágrimas aos meus olhos opacos.
Meu coração contorcendo-se em dor não teria nenhum consolo essa noite.