terça-feira, 15 de setembro de 2015

Angelus (parte 13) - FINAL



Depois de várias horas madrugada adentro, o laranja diurno começou a despontar ao longe. Não dormira um minuto sequer, e nem teria como. Não havia em mim vontade alguma de me levantar dali, de ir para casa.
Senti então uma presença esmagadora, aquecida. Ergui meus olhos, e à minha frente, uma figura magnificente me observava. Uma mulher de cabelos castanhos ondulados que dançavam até sua cintura. Portava vestes alvas, com panos de seda brilhantes, enroladas envolta de seu corpo e pendentes até seus pés descalços que por centímetros não tocavam o chão. Asas majestosas ascendiam-se de suas costas, brancas e ofuscantes, cobertas de plumas volumosas cuja maciez eu podia sentir mesmo estando distante. Seus olhos eram dourados, donos de uma benevolência que só um anjo poderia ter. Eu não tinha dúvidas de quem era ela.
- Levanta-te, Amelie. - Alexiel disse, com uma voz suave que ecoou ao meu redor.
Eu atendi seu pedido sem ousar hesitar. A presença intimidadora de Dantalion não chegava nem aos pés da imponência de um ser celestial como Alexiel. Ela olhou para Guilherme, e em seguida voltou seu olhar para mim.
- Não te preocupes. Salvaste a alma dele ao matar Dantalion. Salvaste a alma de todos que esse demônio um dia capturou para si.
- E agora? O que eu faço?
- Terás de ser forte, e continuar lutando. Tens longos confrontos pela frente. Dantalion era um chefe de legiões poderoso, mas não o maior deles. Demônios mais perigosos virão, e terás de enfrentá-los com coragem.
- Mas... Eu estou sozinha agora.
Alexiel flutuou em minha direção e, bem próxima a mim, tocou meu ombro com leveza.
- Tu nunca estarás sozinha, minha criança. Eu sempre estarei contigo, amparando-te, fortalecendo-te. Eu estou dentro de ti, em teu sangue, em teu coração. É em ti que vivo. - ela sorriu - És forte, minha querida, e serás ainda mais. Descobrirás que tu e somente tu és capaz, com teu próprio fervor, de vencer tudo isso.
- Dantalion disse que os céus esqueceram-se de mim.
- Ele não faltou com a verdade, apenas a modificou. Entretanto, é para isso que estás aqui, é para isso que gerações lutaram. Tu irás salvar todos eles, Amelie, e levá-los de volta para casa, para os Jardins. Os demônios planejam há tempos o domínio de teu mundo terrestre, e através dele a guerra com os anjos. Porém, tu não permitirás que isso aconteça. A queda do submundo está próxima, os demônios carão sob teus pés, e conseguirás levar à ascensão todos os teus. Eu não mais existo espiritualmente, por isso pouco posso fazer, mas existo dentro de ti e de todos que descendem de mim. Sei de cada dor, de cada sacrifício. E tudo será recompensado, Amelie. Os céus proverão a justiça sobre vós.
Eu segurei sua mão delicada sobre meu ombro.
- Eu o amava tanto... - lamentei, com os olhos ainda opacos.
- Há obras do destino que não podem ser justificadas, infelizmente. Existe muito mais do que tua mente humana é capaz de compreender. Um dia saberás de tudo, mas por ora, permaneça, viva e lute. Ele estará esperando por ti.
O sol já havia nascido a essa altura, e então percebi que estava dentro de mim mesma, e havia me perdido completamente do tempo à minha volta.
- Agora, vá. A ajuda virá, se seguires teu caminho.
Alexiel tocou em meu queixo e ergueu meu rosto, beijando-me carinhosamente na testa antes de se afastar e inexplicavelmente desaparecer de minha visão.
Toda aquela luz que ela acomodava e que me inundou foi assentando-se em mim, e a dor e o vazio voltaram a vir à tona. Virei-me uma última vez, para olhar o rosto de Guilherme. Abaixei-me, retirei seu colar com a chave e coloquei-o em meu bolso antes de deslocar-me para fora da floresta. Ao sair do meio das árvores, escalei o breve barranco coberto de capim alto e coloquei-me de pé no asfalto da rodovia. Respirei fundo, e comecei a andar.
Os carros passavam com velocidade, levantando a poeira da estrada ensolarada do começo da manhã e trazendo o vento que batia em meus cabelos. Embora eu caminhasse, suja de terra e sangue, pelo acostamento, nenhum deles se prontificou a parar para me ajudar. Mas eu não me importava. Eu continuaria caminhando, sem saber ao certo para onde, deixando apenas a força da dor mover minhas pernas.
Um carro prata, ao passar por mim, desacelerou, acionou a seta e parou no acostamento, alguns metros à frente. Um rapaz saiu do veículo com o motor ainda ligado, e veio até mim correndo.
- Amelie? - ele disse ao chegar próximo.
Olhei bem para ele, e meus olhos reconheceram Tuan ao saírem do transe e voltarem a esse mundo.
- O que aconteceu? Onde está Guilherme?
Nenhuma palavra saiu da minha boca. Eu apenas o olhei, sem resistir às lágrimas que voltavam a escorrer dos meus olhos.
Compreendendo meu olhar, levou a mão à cabeça, cerrando os dedos por entre os cabelos.
Tuan se virou, olhou toda a extensão de árvores e tomou fôlego, engolindo um nó apertado na garganta.
- Venha, senhorita, eu vou tirar você daqui.

[...]

No final das contas, o destino colocava tudo em seu devido lugar.
Uma semana depois da morte de Guilherme e do encontro com Alexiel, retornei à praia. Sim, aquele lugar era uma oscilação de sentimentos. Por vezes não albergava nenhum, e por outras era o melhor lugar a se estar quando a dúvida e a tristeza chegavam. A praia era capaz de acalmar-me e revigorar-me, assim como era capaz de piorar a dor em mim. Tudo dependia do quanto eu estava disposta à receber as energias do local.
Novamente, a lua minguante estava lá, observando-me, acima do oceano escuro. As lembranças que ela trazia transportavam-me até aquele dia. Quando cheguei tão perto da morte. Quando conheci aquele que era a chave das portas trancadas em minha mente.
Quando me apaixonei por Guilherme, nunca planejei e nem sequer imaginei acontecimentos como casamento, ou filhos. Eu queria simplesmente tê-lo ao meu lado, queria que lutássemos juntos, que sobrevivêssemos juntos. E apesar de todas as circunstâncias, eu não chegava nem a cogitar a possibilidade de perdê-lo. Não daquele jeito. Mas mesmo assim, o pesar estava amenizando-se aos poucos. Não seria tão rápido quanto foi com Daniela, e vestígios ainda permaneceriam para sempre em mim. Afinal, eu realmente o amava. O amaria para sempre, e lutaria até o dia em que pudesse encontrar-me com ele novamente.
Além disso, eu sabia que Guilherme havia fragmentado a própria consciência para me dar seu poder, mesmo sem ter a certeza das consequências que isso traria. Poderia isso ter sido a real causa de sua morte. Ou não. E eu preferia acreditar que não. Mas o fato é que parte de sua consciência estava comigo, dentro de mim, acoplada à minha. Eu o sentia. Tínhamos uma ligação maior e mais íntima que qualquer outra, mesmo agora estando em mundos diferentes. Fronteiras entre universos não eram capazes de separar essa ligação. Nada era.
Eu conversara com Tuan sobre o que acontecera. Contei a ele que Guilherme já havia estado no inferno antes, mas que alguém o tirou de lá. Uma mulher. Tuan disse que nunca ouvira Guilherme falar nada parecido, nem um indício desse acontecimento, portanto não sabia dizer-me quem ela seria. Isso não importava muito, no entanto. Achei melhor, porém, não lhe contar nada sobre o que Alexiel me disse. Essa era uma luta minha, só minha, e a justificativa dela cabia somente a mim.
Eu estava pronta para dar tudo de mim. Para usar minha luz em sua plenitude, e aprender cada detalhe sobre as ilusões que agora me pertenciam. Eu mataria cada criatura imunda que tentasse algo contra esse mundo, não somente para salvar toda a minha linhagem, mas também para proteger os humanos. A luz em mim parecia fazer-me amar todos eles. Talvez fosse Alexiel, revelando-se em mim. O que eu tinha certeza era que nunca o ódio encontraria moradia em meu coração. Ele só tinha espaço para uma coisa.
Eu toquei a chave antiga, pendurada em meu pescoço, e não hesitei em dar passagem a um pequeno sorriso, que logo dissipou-se em meu rosto. Em seguida olhei para trás, para o banco de concreto, onde nenhum estranho estava sentado.
Eu definitivamente seria aquela que colocaria um fim em todo esse mal.
Por todos os que lutaram.
Por todos os que sofreram.
E, acima de tudo, por ele.


~Fim~