terça-feira, 1 de setembro de 2015

Angelus (parte 9)



Eu observava o caixão descendo sob a grama do cemitério e se tornando parte da terra. Daniela não tinha familiares de sangue e nem amigos muito próximos, portanto eu era a única presente naquele momento de despedida. Não quis que Guilherme me acompanhasse, achei que fosse melhor vivenciar aquilo sozinha.
A luz havia me ajudado a não permitir que a tristeza tomasse conta, entretanto, ela nunca substituiria a falta que Daniela me faria. Talvez eu deveria ter dito a ela o que estava acontecendo. Não sei se isso mudaria algo, mas ao menos ela saberia a minha verdade.
Quando o enterro terminou, e eu me vi a sós, sentei-me na grama diante de seu sepulcro.
- Agora você sabe, não é? - eu falei, esperando que Daniela me ouvisse - Eu queria ter te mostrado o que eu podia fazer. Queria ver a sua cara... - sorri comigo mesma - Eu também adoraria ter te apresentado a Guilherme. Tenho certeza que você iria gostar dele, e iria dizer disfarçadamente pra mim que ele era um gato.
Dei uma pausa. Não pude evitar que o sentimento que envolvia minha alma ao pensar em Guilherme se evidenciasse.
- Sabe, eu acho que o amo.
Em meio a um suspiro, olhei para o céu cujas nuvens brancas navegavam em frente ao sol mas não eram capazes de escondê-lo. Deixei minha visão ser levada até uma das árvores que habitavam o lugar. Bem-te-vis brincavam entre si, movimentando as folhas da copa cheia e verdejante. Um deles voou, o outro o seguiu. O vento balançou as folhas da árvore, acariciou-me e fez meus cabelos dançarem. Ele pareceu sussurrar em meus ouvidos coisas que não se mostram em palavras, apenas se sentem.
Sim, eu tinha certeza que eu o amava.
Sorri e olhei mais uma vez para onde Daniela descansava, despedindo-me antes de me levantar e caminhar para fora do cemitério.
Guilherme havia me emprestado o carro. Ele resolvera tudo para mim no dia anterior. Dera até um jeito na bagunça que ficara na minha casa. Eu entrei no veiculo e dei a partida para ir embora dali direto para onde eu morava.
Depois de seguir por um caminho alternativo tranquilo, eu cheguei em casa e rapidamente peguei minhas roupas e algumas coisas importantes. Dei uma boa olhada na sala. Era impossível não lembrar da cena pavorosa, e esse era um dos motivos pelos quais eu não continuaria ali. Eu conversara com Guilherme na noite passada, e ambos concordamos que não era uma boa ideia eu permanecer morando ali. Para mim, não me parecia estranho eu ir morar com alguém que eu conhecia relativamente a pouco tempo, considerando que, em resumo, esse alguém era Guilherme, além de tudo o que acontecera.
Com uma pequena mala nas mãos, girei a chave na fechadura e saí, em seguida entrando novamente no carro.
Voltei pelo mesmo caminho alternativo antes de seguir pela estrada para voltar para a casa de Guilherme. Resolvi ligar o radio. Uma estação de rock dos anos 80 foi a primeira a começar a tocar. Deixando-me levar pelo ritmo da música, não percebi o exato momento que um carro prata começou a me seguir. Olhei pelo retrovisor várias vezes durante o percurso, dois homens estavam no veículo, que mantinha-se a todo instante bem próximo à mim.
Subitamente, ele acelerou e bateu com força na minha traseira. Eu tive que me esforçar para não perder o controle do veículo.
Droga. Esses demônios já estavam me fazendo perder a paciência.
Acelerei para tentar fugir, ultrapassando os carros à minha frente e esquecendo completamente das regras de trânsito. Eles não desgrudaram, pelo contrário, também ultrapassaram os carros e aceleraram ainda mais, batendo em mim outra vez. Eu não pensei duas vezes, fiz uma curva, saindo da estrada e indo direto para uma construção paralisada que ficava por ali. A perseguição só acabou quando eu parei com o veículo no interior da construção e eles pararam logo atrás.
As paredes concretadas abrigavam duas enormes aberturas onde provavelmente seriam feitas janelas. Algumas colunas sustentavam a estrutura. Os raios de sol que entravam pelas aberturas destacavam a poeira que flutuava e aos poucos assentava-se no chão de cimento.
Com a energia pronta para sair por qualquer parte do meu corpo, desci sem medo. Os dois homens também. Ambos eram bem parecidos, magros, com barba por fazer e cabelos escuros que em um quase passava dos ombros e estava em parte preso para trás e em outro eram curtos e formavam um topete bagunçado. Vestiam roupas pretas e coturnos militares, e suas feições mostravam que provavelmente eram irmãos, quando humanos. Tinham olhos tão negros quanto o abismo mais profundo, dos quais eu não me recordava ter percebido no primeiro possuído que eu havia visto. Esses dois definitivamente eram diferentes daquele.
- Olhá só! - o de cabelo curto e talvez o mais novo disse para o outro - A menininha que brinca com luz está tentando bancar a corajosa.
- Pode fazer a festa com ela, mas deixe a alma para mim, "irmãozinho".
O primeiro veio até mim com um sorriso macabro que eu já conhecia, e tentou bater no meu rosto para me derrubar. Porém, eu esquivei do seu golpe e rapidamente segurei sua face com a minha mão, envolvendo-a com meus dedos abertos. Transferi a energia e coloquei luz dentro dele. Gritos de dor mesclados a grunhidos foram emitidos de sua garganta, a luz escapava pelos seus olhos, boca e por onde mais encontrasse espaço para sair. Ele caiu e se contorceu no chão, até parar de se mover.
O mais velho então veio furioso para me matar de vez. Sem dúvida, a força que ele possuía superava a minha, portanto, eu teria que ser bem ágil.
Ele me pegou pelo braço com brutalidade, mas eu coloquei a luz sobre minha pele como uma blindagem, e ele queimou a mão ao me segurar, soltando-me. Sem perder tempo formei esferas luminosas e empurrei-as contra ele. Elas não surtiram o efeito que eu pretendia, causando-o apenas queimaduras. O homem possuído então desferiu-me um soco doloroso que atingiu-me na boca.
Desgraçado.
Carreguei o máximo de energia que pude em meus membros. Puxei sua cabeça para baixo pelo cabelo e lhe dei uma joelhada, que brilhou ao acertá-lo. Fechei com força minhas mãos, que cintilavam uma aura amarelada, para socá-lo o quanto conseguisse. Eu não tinha muita força para bater, mas a magia ajudava em muito, tornando meus golpes mais intensos do que normalmente seriam. Ele tentou segurar meus braços para me parar, mas ele não era capaz de suportar a queimadura ao tocar na luz da minha pele.
No instante em que o percebi mais fraco - por conta da magia que o estava ferindo - chutei-o para que ele perdesse o equilíbrio e caísse. Assim que o derrubei, joguei-me por cima dele para não deixá-lo levantar, formei uma estaca afiada de luz na palma da minha mão e cravei em seu peito. O corpo humano físico nada sofreu, porém, vi seus olhos se arregalarem e seu pulmão puxar de repente o ar, mostrando que o havia ferido no coração de seu espírito maligno. Demorou poucos segundos para que ele não se manifestasse mais.
Levantei-me e passei o dorso da mão na boca, para limpar o sangue que escorria por um corte em meus lábios, resultado do seu soco. Foi uma sorte eu só ter sofrido isso, sem dúvida nenhuma minha blindagem de luz me protegera. Caminhei até o carro a fim de ir embora daquele lugar, mas algo chamou minha atenção e impediu que eu seguisse meu rumo. O homem mais novo despertou e, com uma certa dificuldade, olhou em volta. Fui até ele e percebi que seus olhos não eram mais negros, e haviam dado lugar a um azul celestial.
- O que aconteceu comigo? O que... aconteceu aqui? - ele me perguntou ao me avistar.
Surpresa por vê-lo vivo, corri até o outro que eu havia acabado de matar e tomei seu pulso, que estava um pouco fraco, mas ainda presente.
Eu havia os livrado. Tinha dado a eles sua vida de volta.
Virei-me ao que acabara de despertar. Seu olhar ainda era confuso, sem entender o porquê de estar naquele local.
- Simplesmente vá para casa. - eu disse à ele - E cuide do seu irmão.
Eu o deixei antes que ele fizesse qualquer pergunta. Ainda um pouco perplexa, peguei o carro e saí dali.