terça-feira, 11 de agosto de 2015

Angelus (parte 3)



Começava a escurecer, e eu pensava se não era melhor ir embora enquanto estava dia, para evitar encontrar aquelas criaturas novamente, mas eu não queria ir, e não queria deixar que esse tipo de coisa me impedisse de andar à noite.
Guilherme ainda permanecia do meu lado, olhando fixamente para o oceano, cujas águas começavam a se tornar negras. Eu não esperava que ele estivesse ali só para me fazer companhia, ele não parecia se importar dessa maneira com as pessoas. Entretanto, ele fora prestativo comigo as minimas vezes que nos encontramos, e além disso, tinha me salvado da morte.
Lembrar disso me fez pensar, não podia ser coincidência um cara como ele estar aqui, justamente na noite em que eu seria atacada.
- Como você sabia que precisava estar aqui naquela noite? - fui bem direta, mas incerta.
- Eu simplesmente sabia.
Sua resposta imediatamente fez com que flashes da minha memória viessem bruscamente à tona. Eu não conseguia defini-los, pareciam somente mais um sonho, mas eu via perfeitamente uma luz branda e um nome. Um nome que aparentemente eu desconhecia.
- Você sabe quem é Alexiel? - perguntei num impulso.
Guilherme retirou os olhos do mar para olhar diretamente pra mim.
- Onde você ouviu esse nome? - ele pareceu surpreso.
- Em um sonho, ou em uma lembrança, não sei.
Ele me fitava, seus olhos estavam claramente pensativos.
- Você quer saber porque eles me perseguem, não é? - falou calmamente. - Tudo o que os demônios querem é matar todos nós, espalhar o caos e o ódio, trazer tudo de ruim que existe no mundo deles para o nosso mundo. Por isso, tudo o que eles têm feito talvez envolva um plano maior. Eles começaram a aparecer na terra há muito tempo atrás, e foram agindo lentamente em prol de algo que ninguém sabe o que é. Antigamente, existia um clã de guerreiros que lutavam contra os demônios. A líder deles, Ann, tinha visões perfeitas sobre o futuro. Ela previu que antes que conseguissem realizar o que pretendiam, os demônios seriam destruídos por uma descendente de Alexiel, uma antiga e poderosa maga da luz. Para que a profecia não se concretizasse, os demônios mais poderosos começaram a caçar os magos da luz, e temendo que fossem exterminados, eles se esconderam de todos e aos poucos desapareceram. Com o propósito desesperado de mudar de destino, e não encontrando mais os magos, os demônios vêm desde então perseguindo e matando o clã de guerreiros, para que eles não permitissem de alguma forma que os magos voltassem. A minha linhagem é sobrevivente desse clã e encarregada de encontrar e proteger essa descendente.
- E você acredita que essa descendente... sou eu?
- Talvez. O fato é que, alguns dias antes, eu vi essa praia e uma lua minguante no céu. Eu não tenho visões, essa foi a primeira e provavelmente a única. Eu não sabia o que iria encontrar, mas sabia que seria algo grandioso e que precisava estar aqui.
Guilherme olhou em volta, preocupado.
- Eu acho melhor irmos embora. - eu disse.
- Sim, tem toda razão.
Nos levantamos rapidamente e eu o segui até o seu carro. Ele arrancou em direção à estrada cercada de árvores, que estava vazia e levemente mais escura que o comum. Tentei me convencer de que era só uma impressão minha.
- Mas se eu tenho poderes, por que eu nunca soube disso? - perguntei, intranquila.
- Não faço ideia, me diga você.
De súbito, algo pesado bateu no teto do carro.
- Eles estão aqui. - disse, fazendo um zigue-zague para balançar ao máximo o veículo.
Com o movimento, a criatura que estava em cima do carro rolou e caiu no asfalto, ficando para trás. Olhei pela janela, e vi dois demônios tentando acompanhar a velocidade , voando assustadoramente com asas que surravam o ar. Um deles bateu com força no vidro, e eu me afastei bruscamente da janela.
Um quarto demônio então pousou repentinamente no meio da estrada, fazendo Guilherme frear violentamente e jogar o carro para a direita. Os pneus cantaram no asfalto. Descemos pela grama alta da lateral da pista, e ele conseguiu brecar antes que batêssemos em uma árvore. Olhei em volta, mas não vi mais nenhuma daquelas coisas.
- Eu sabia que isso ia acontecer. Droga. - sua voz ainda permanecia fria, mas ele me olhou de um jeito diferente, como se estivesse se desculpando.
Ele abriu a porta e saiu do carro. Estava tudo muito silencioso, e eu não retirava os olhos dele. Um deles então apareceu e tentou atacá-lo. Ele segurou o braço do demônio, que ficou paralisado assim que tentou olhar para Guilherme, pegou a sua cabeça e esmagou-a contra o chão, do mesmo jeito que fez ao me salvar aquela noite, desfazendo-o no vento. Como ele fazia aquilo?
Um segundo tentou voar na direção do carro, onde eu estava, mas Guilherme o segurou pela asa e o jogou no chão. A criatura não revidou mais, permaneceu imóvel na grama. Ele então abriu o seu crânio usando as duas mãos, fazendo-o desaparecer como o primeiro.
Um pouco ofegante, olhou para mim para se certificar de que eu estava bem. Foi tempo de distração suficiente para que outro demônio caísse do céu em cima dele e o derrubasse. Eu agi num impulso, e sai do carro para correr em direção a ele.
- Fique dentro do carro! - ele gritou, mas eu já estava longe da porta.
Vi-o paralisar novamente a criatura. Dessa vez, eu olhei seus olhos, e o mel tinha dado lugar a um verde quase brilhante. Eu fiquei tão maravilhada com aquela cor, que não percebi o momento em que ele segurou aqueles chifres e arrancou aquela cabeça. Logo em seguida, olhou para mim. O mel já tinha voltado aos seus olhos.
Não tive tempo de dizer nada, mais demônios surgiram rapidamente por entre as árvores, e vinham por todos os lados. Muitos deles. Guilherme se aproximou de mim, e sem querer me tocou levemente no pulso. Um toque, quente, brando, mas devastador.
Fui atingida por um turbilhão de memórias. Tudo veio à tona de uma só vez e em um segundo apenas, o que quase fez minha cabeça explodir. O rosto dos meus pais, algo desconhecido pra mim. Minha mãe chamando meu nome, me acariciando e me abençoando. Uma bênção protetora, que me manteria segura até encontrar quem me protegesse. Uma luz em seus olhos castanho-escuros, o calor de um abraço, que tem misteriosamente me mantendo aquecida desde os seis anos. O nome que eu deveria guardar, Alexiel, Alexiel, Alexiel.
Eu sentia a mesma luz dos olhos da minha mãe crescer em meu coração, e ela devastou a floresta de espinhos que a mantinha protegida até então, ela invadiu minhas veias, inundou meu corpo, cada célula dele. Podia sentir meus olhos clarearem, brilharem, num suave e alvo amarelo. Eu quase não conseguia segurar essa poderosa energia dentro de mim. Então, deixei-a sair.
Uma onda forte de luz saiu brutalmente do meu corpo, transformando toda a noite em dia. Ela atingiu os demônios, que grunhiram e transformaram-se em cinzas.
Meus olhos aos poucos foram voltando ao normal e a escuridão do céu voltou a tomar a noite. Guilherme me olhava, perplexo. Toda a energia desapareceu de mim, fazendo minhas forças oscilarem e eu quase perder a consciência. Ele me pegou antes que eu despencasse ao chão. Suas mãos estavam sujas com o sangue dos demônios que matara, mas eu não me importei.
Seus braços me apertaram suavemente contra seu peito, e meu coração se agitou. Lutando contra o peso que minha alma fazia para continuar ali, em seus braços, eu me recompus.
- Você está bem? - essa foi a primeira vez que sua voz não me pareceu fria.
- Estou. Vamos sair daqui logo, antes que mais deles apareçam.
Ainda não acreditando no que havia acontecido, entrei no carro com Guilherme e não pensei em mais nada. Apenas fiquei olhando pela janela, mantendo minha mente vazia, enquanto ele dirigia apressadamente para um lugar seguro.