quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Angelus (parte 8)



Fui tocada pelo sopro matinal. Lentamente acordei, lembrando-me do que havia acontecido no dia anterior. A tristeza pesou meu coração novamente.
Olhei para o lado, e percebi que Guilherme não estava mais ali. Uma lembrança vaga o mostrou beijando minha testa enquanto eu dormia, e dizendo que iria até minha casa e voltaria em breve.
Eu me levantei da cama e abri as cortinas da janela. A luz do sol me banhou com suavidade, enquanto eu tentava novamente procurar a energia em mim. Eu havia percebido então que eu não poderia usá-la enquanto não tivesse domínio sobre mim mesma.
Voltei para a cama, dessa vez sentando com as pernas cruzadas. Eu já havia feito isso antes, há muito tempo atrás. Em meu mesmo instinto primitivo que fazia-me saber o que fazer com a luz, eu sabia que isso me ajudaria. Deixei que meus olhos pesassem e se fechassem, de pouco em pouco, fui deixando meus membros, esquecendo meu corpo físico, mergulhando na escuridão da minha consciência evidenciada através da minha mente vazia. Concentrada no ritmo da minha respiração e do meu coração, eu sentia apenas a fonte de energia emanando luz entre os dois pólos emocionais do peito e do umbigo, além da consciência completamente revelada. Era bem diferente da última vez que havia meditado. Eu não lembrava-me de ter conseguido ir tão fundo.
Eu deixei tudo fluir naturalmente, deixei que tudo se movimentasse sem nenhum tipo de trava ou impedimento. A luz brilhou e começou a caminhar por todo o meu eu, até encontrar a tristeza e o pesar. Ela os encobriu, levando um certo tempo até desmanchá-los por completo.
Lentamente, fui voltando a inundar meu recipiente. Senti meus músculos, minha pele. Pensamentos voltaram a habitar a mente. Por fim, abri os olhos.
No mesmo momento, movimentei minhas mãos, fiz a energia percorrer até elas, dessa vez sem obstruções, e ela as iluminou com intensidade.
Meu momento de satisfação foi interrompido pela campainha. Guilherme já havia voltado? Não, ele não tocaria a campainha.
Eu vesti rapidamente minha roupa do dia anterior e fui para a porta da sala, verificar quem era. Um rapaz magro, vestindo uma camiseta azul clara e uma calça jeans, aguardava do outro lado do olho mágico. Abri a porta, e ele sorriu ao me ver.
- Bom dia, senhorita. - Tuan me cumprimentou, levemente surpreso.
[...]
- Eu lamento por sua perda, Amelie.
Eu sorri, agradecendo.
Ele se servia com o café que o ofereci, encontrado por mim na cozinha, certamente preparado por Guilherme antes de sair.
- Bom, um dos motivos da minha visita é perguntar se vocês estão cientes da bagunça que fizeram.
- Como assim?
- Você não andou vendo o noticiário de hoje, não é?
Peguei o controle na mesa de centro e liguei a TV. Depois da previsão do tempo do dia, os repórteres falaram sobre um tiroteio misterioso numa das estradas locais. Não tinham muitos detalhes a fornecer, mas diziam que as testemunhas contaram sobre duas pessoas armadas num carro preto em alta velocidade.
- Ah, caramba... - eu me surpreendi.
- Eu não tive dúvidas de que eram vocês dois.
Ele deu risada antes de continuar.
- E eu daria tudo pra ver a cara dessas pessoas, quando viram vocês atirando em demônios no meio da noite.
Eu também ri ao imaginar de repente a cena.
- Com certeza esse detalhe elas não deram aos jornalistas. - falei.
Nunca em minha vida eu imaginei essa situação. Nem nos meus breves devaneios loucos.
Eu abrira meu coração para achar graça das coisas. A meditação permitiu que o pesar sobre a morte de Daniela não impedisse meus sentimentos bons de surgir, da mesma forma que não impedia minha energia de correr. Eu ainda o sentia, porém ameno, como se eu a tivesse perdido há vários anos, como se eu simplesmente tivesse superado.
Observei Tuan levando a xícara à boca, atento ao noticiário.
- Como vocês se conheceram? - perguntei, curiosa.
- Ah... - ele pareceu se empolgar.
Sorveu o último gole de café e deixou a xícara vazia na mesinha.
- Eu era uma criança meio problemática, com pais mais problemáticos ainda. Inventei de fugir de casa aos 10 anos de idade, e acabei indo parar em uma outra cidade, com frio e com fome. Lembro-me muito bem dessa noite. Eu me perdi no interior de um bairro, e dei de cara com uma rua sem saída, com casas de veraneio que abrigavam o vento como as únicas habitações. Sentei-me no canto da calçada, para dormir ali mesmo e tentar encontrar o caminho de casa quando amanhecesse. Foi quando eu avistei uma criatura horrorosa que eu só tinha visto em pesadelos até então, que me olhava da calçada oposta. Aquilo correu em minha direção e eu nem tive tempo de fugir. Ele me feriu com as unhas afiadas e começou a sugar minha vida, que aliada à dor, era um prato cheio para ele. Guilherme me encontrou a poucos segundos da minha morte. Era uma criança como eu, mas matou a criatura e me carregou nos ombros até uma das casas vazias da rua, onde ele tinha um lugar improvisado para morar. Ele me contou sobre os demônios e sobre quem ele era. Na verdade, ele teve que me provar que fazia ilusões para que eu acreditasse. Nós nos tornamos parceiros, e desde então nos virávamos juntos pra fugir dos demônios e para sobreviver. Eu poderia ter tentado voltar para casa, não havia motivos para que eles me caçassem além do fato de eu estar com Guilherme. Entretanto, eu duvido que meu pais sentiram minha falta. Por que eu voltaria? Eu não o deixaria sozinho em troca de um teto e um prato de comida, em um lugar onde eu não era tão bem-vindo.
Tuan olhou bem para mim. Percebeu que eu estava atenta à história, e continuou.
- Mais ou menos aos 16 anos, mas com identidades falsas de 18, nós conseguimos nos estabelecer cada um em um lugar. Guilherme foi morar sozinho em uma casa pequena de um canto esquecido da cidade. Eu consegui ir morar com uma moça mais velha, mas não por muito tempo. Quando os demônios a mataram, percebi que nunca conseguiria voltar a ter uma vida comum ou me distanciar de Guilherme, pois eles tentariam chegar a ele através de mim, do meu ódio, do meu corpo.
Eu lembrei de Daniela novamente. Por um breve momento. Contudo, não lamentei.
- Foi nessa época que meu interesse, e é claro, minha necessidade, por armas se intensificou, e eu comecei a fabricar a própria munição quando descobri o que a prata fazia nos fedorentos.
Ele colocou um pouco mais de café na xícara.
- Diga-me uma coisa. - eu disse.
- Se eu puder.
- O que há nas ilusões de Guilherme que deixam os demônios vulneráveis?
- Bom, ele nunca me disse. Em todo esse tempo, minhas próprias deduções me disseram que a couraça dura que eles possuem é como uma armadura de batalha. Eles mesmos a endurecem enquanto estão nesse mundo. Guilherme faz com que eles de alguma forma relaxem, fiquem mais fracos. Mas não há como saber que tipo de ilusão faz isso.
Fomos interrompidos pelo motor do carro de Guilherme, que estacionava em frente a casa. Ele abriu a porta e entrou, nos vendo sentados no sofá.
- Tuan. O que o traz aqui?
- Bom dia pra você também, parceiro.
- Se é sobre o que passou no noticiário, eu já estou sabendo.
- Não é só sobre isso.
Guilherme percebeu o tom sério de Tuan, e veio sentar ao meu lado no sofá.
- O que está acontecendo?
- Não sei se você já percebeu, mas demônios mais poderosos estão aparecendo.
Eu me lembrei do que havia matado Daniela, mas pelo que eu tinha concluído, aquele era do tipo que se apoderava do corpo de humanos, um pouco mais evoluídos, mas ainda sim comuns. Ele certamente falava de demônios ainda mais fortes, que eu ainda não tivera a oportunidade de ver.
- Sim, eu percebi.
- Você sabe que eles não aparecem assim do nada. Isso não está me cheirando nada bem.
Tuan voltou seus olhos escuros a mim. Não olhos acusadores, e sim alertantes.
- É por minha causa. - afirmei o que eles já sabiam.
- Guilherme... - chamou a atenção dele, que estava pensativo. - O que você pretende fazer?
- Eu já previa isso há muito tempo. Não há muito o que ser feito.
Percebi o quanto o assunto os preocupava. Não perguntei, mas tinha certeza que eles já haviam tido um encontro nada agradável com esses demônios poderosos.
- Eu acho melhor vocês se prepararem. - Tuan avisou. - Algo me diz que há coisas terríveis por vir.