terça-feira, 4 de agosto de 2015

Angelus (parte 1)








A areia que tocava meus pés trazia a paz que eu precisava. Era noite, e a lua minguante iluminava o infinito entre céu e mar. A tranquilidade noturna da praia era um ótimo escapismo para mim, onde eu podia fugir dos fantasmas que minha mente criara, numa busca incessante por minha própria identidade.  
Quem eu era?  
Amelie West. Uma garota comum. Cabelos quase negros, olhos castanhos, 20 anos de idade. Informações superficiais que não respondiam a pergunta. 
E por que minha memória era tão turva? 
Não lembrar de nada antes dos seis anos, inclusive do rosto dos meus pais, que morreram misteriosamente quando eu tinha essa idade, sempre me deixou intrigada.  
Os sonhos sombrios que eu tinha à noite não me assustavam mais como antes, mas ainda tinham o mesmo mistério. Eu queria muito entendê-los, mas as lembranças sobre meu passado eram muito confusas, havia muitas portas dentro da minha mente das quais eu não tinha a chave. As lacunas em minha memória queimavam meu coração, onde só existia uma floresta escura de espinhos guardando algo que nem eu mesma sabia o que era. Talvez minha inocência, ou minha sanidade, na verdade não importava, eu já estava acostumada com tudo isso. 
Deixando meus pensamentos de lado, olhei novamente para o banco de concreto na beira da praia, onde aquele estranho ainda estava sentado. Não sei porque ele chamava minha atenção, daquela distância, tudo o que eu conseguia ver era seu cabelo castanho caindo até um pouco acima do ombro. Ele estava lá desde que eu havia chegado, mas não me olhou uma vez sequer 
Voltei novamente meus olhos para o mar, e pensei ter visto um vulto escuro passar rapidamente a minha frente. Estranhamente, senti uma forte presença. 
"Ando sonhando demais", pensei. De fato, os sonhos estavam cada vez mais constantes e cada vez mais reais. 
Tentei voltar a mergulhar em pensamentos, mas a presença não sumiu. Repentinamente, algo passou por trás de mim com velocidade e fez um corte no meu braço esquerdo. Toquei o sangue que começava a escorrer, aquilo era real. O que estava acontecendo? 
Sem tempo de pensar em mais nada, o vulto me derrubou e me pressionou contra o chão com mãos negras e dedos longos. Meus olhos amedrontaram-se ao ver o que aquilo era. Uma criatura medonha, um demônio negro e fantasmagórico, que exalava um cheiro forte de enxofre. Minha garganta engoliu um grito seco, enquanto me debatia para tentar me soltar e correr. 
Foi quando olhei para seus olhos completamente brancos, e eles prenderam os meus. Eu não conseguia movê-los, era como se estivessem paralisados por um hipnotismo. Uma fraqueza então foi tomando meu corpo, minhas pernas já não tinham mais força para se debater e meus braços desistiram de tentar se soltar daquelas mãos cadavéricas, que me apertavam com cada vez mais força. Ele estava drenando minha vida, se alimentando dela, e eu podia sentir ela se esvair e dar lugar ao vazio da morte. 
Subitamente, um golpe rápido fez com que a criatura tombasse ao chão. Eu mal conseguia manter meus olhos abertos, mas me esforcei para ver. Era aquele estranho. Ele segurou contra a areia e esmagou com uma mão só a cabeça da criatura, que imediatamente se desfez como fumaça. 
O estranho, então, se aproximou de mim. A última coisa que vi foi uma chave antiga que pendia de seu pescoço, antes da escuridão tomar por completo minha visão. 
[...] 
O torpor no qual eu estava imersa começou a se desfazer. Abri meus olhos, eu definitivamente não estava em casa. 
A cama em que eu estava deitada era macia e larga, as paredes a minha volta eram feitas de madeira e a janela sem cortina convidava o sol a entrar. Lembrei-me do que havia acontecido, mas minha mente confusa não sabia definir se fora um sonho ou realidade. Busquei meu braço esquerdo, e meus dedos tocaram um curativo muito bem feito no lugar onde o demônio havia me cortado. Sim, dessa vez tinha sido real. 
Empurrei o lençol branco que me cobria para o lado e tentei apoiar-me com os braços para levantar da cama, mas eu ainda estava fraca. 
- Você não deveria levantar agora. Dormiu por quase três dias. - disse uma voz grave e doce, que meus ouvidos nunca tinham experimentado antes. 
Meus olhos procuraram o dono daquela voz. Ele estava parado na porta do quarto, apoiado no batente. Uma camiseta preta básica e uma calça jeans escura realçavam seu porte físico grande e bem preparado. Seus braços fortes estavam cruzados, e olhos enigmáticos cor de mel olhavam para mim. A chave antiga antiga ainda estava pendurada por um cordão preto em seu pescoço, e refletia a luz que invadia o quarto. Esfreguei os olhos para acostumá-los à claridade. 
- Aquilo... - falei em meio a um suspiro. 
- Sim, era um demônio. 
Deixei que o silêncio dominasse o aposento. Eu estava, de certa forma, aliviada por não ter perdido a lucidez. 
- O que aconteceu naquela praia? 
- Ele tentou drenar sua vida, é o que eles fazem com humanos como nós. Eu o matei, mas você apagou. 
- E então... você me trouxe pra sua casa?  
- Você não queria que eu te deixasse morrer lá, não é? - a voz dele não exprimia qualquer emoção, nada que eu pudesse decifrar ou entender, era um tom único e misterioso, frio, mas muito agradável. 
- Vou te deixar descansar mais um pouco. Levante quando estiver melhor, você precisa comer alguma coisa. - ele deu as costas e sumiu pelo corredor. 
Depois que ele se foi, eu não demorei muito pra levantar daquela cama e me arrastar para fora do quarto, sendo atraída por um cheiro delicioso. Esse cheiro me levou até a cozinha, onde um prato chamativo de comida estava posto à mesa. Aquilo era pra mim? Eu não pensei duas vezes antes de sentar e comer com voracidade, movida pela fome. Olhei para o relógio na parede, seis horas, logo iria escurecer. 
Procurei por ele pela casa, até encontrá-lo jogado no sofá da sala. A TV estava ligada, mas ele não parecia estar prestando atenção nela. 
- Se sente melhor, Amelie? - perguntou ao sentir minha presença. 
- Como você sabe meu nome? 
- Era o que estava nos seus documentos. 
Não questionei o fato de ele ter mexido nas minhas coisas, eu teria feito o mesmo. 
- Sou Guilherme Lowell - disse sem esperar que eu perguntasse. 
- Será que você pode me levar para casa, Guilherme? 
Ele não respondeu de imediato, pareceu estar pensando. 
- Claro, pegue suas coisas. - ele desligou a TV e se levantou do sofá. 
Voltei para o quarto para pegar meus documentos e meu celular, onde eu os tinha visto antes. Ao sairmos de casa, notei fileiras de sal na beirada da porta e das janelas. 
Entramos no seu carro e ele dirigiu até a estrada vazia. Já havia escurecido, e as árvores que cercavam a pista pareciam somente sombras, movimentando-se com o vento. Eu tinha evitado pensar naquilo desde que ele saiu da porta daquele quarto, mas agora eu queria saber. 
- Você é uma espécie de caçador de demônios? 
- Não. São eles quem me perseguem. Sempre me perseguiram. 
- Por quê? 
- Não sei ao certo. - tive a leve impressão de que ele mentiu na última frase. 
Não falei mais nada. Simplesmente observei as árvores escuras passando uma após a outra enquanto o carro avançava. Guilherme acelerou um pouco mais, e diante daquelas árvores, fui pega por uma terrível sensação de estar sendo observada. Estariam eles aqui? Olhei para Guilherme, mas ele não demonstrava nenhuma reação, pelo menos nada que eu pudesse ler. 
A placa que indicava a saída da estrada surgiu à frente, iluminada pelos faróis do carro. 
- Por aqui. - eu indiquei. 
Ele seguiu minhas instruções até chegarmos à minha casa. Parou o carro em frente ao portão branco de ferro, e me olhou sem desligar o motor. 
- Obrigada. - eu disse, abrindo a porta. 
- Espere - ele tirou a carteira do bolso, abriu e retirou dela um pequeno pedaço de papel dobrado - Se precisar de alguma coisa, me procure. - falou ao me entregar. 
Saí do carro e o observei voltar pelo mesmo lugar de onde viemos. Quando ele virou a esquina, eu desdobrei o papel branco, onde um número de telefone estava marcado de caneta azul.