quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Angelus (parte 7)



Guilherme dirigia em alta velocidade na estrada. Alguns demônios seguiam o carro, ele mantinha a Desert Eagle em uma das mãos, atirando nos que alcançavam a janela dianteira. Como ele conseguia atirar, recarregar a arma e dirigir ao mesmo tempo, era um mistério.
Eu tentei sentir a energia em mim. Eu sabia que ela estava lá, no fundo, mas eu me sentia pesada, aflita. Sentimentos ruins que se misturavam, que tomavam-me por completa, não permitiam que eu a movesse. Obstruíam-na. Tudo o que eu podia fazer era observar as criaturas nos alcançando.
Olhei novamente para Guilherme, para a pistola em sua mão. Talvez fosse a hora de colocar em ação o que eu havia aprendido.
Eu me virei, puxei a mochila preta que estava no banco de trás e trouxe-a ao meu colo, abrindo e retirando dela uma pistola Glock 18. Guilherme apenas me olhou por um segundo, e em seguida voltou a atenção aos demônios. Ejetei o cartucho para conferir se ele estava carregado. A munição prateada brilhante enchia-o por inteiro. Empurrei-o de volta, desci o vidro da janela do carro e coloquei a cabeça e o braço para fora, empunhando a arma e mirando nos demônios que voavam bem próximos a nós. Sem pensar demais, puxei o gatilho, segurando firme a pistola automática que lançou uma bala seguida da outra e controlando sua força de recuo. Os projéteis atingiram quatro demônios, pude ouvir um grunhido estridente emitido por cada um deles. Ao caírem no chão, afundaram, como se o asfalto tivesse derretido de repente, num liquido negro borbulhante semelhante ao que eu acabara de ver em minha casa. Quando sumiram, liberaram a visão para outros demônios iguais ao que possuíra o colega de Daniela que corriam com velocidade. Um deles deu um salto alto e longo para alcançar o carro. Ele grudou na traseira do veículo com os quatro membros e tentou vir até mim andando como uma aranha. Dei três tiros, acertando-o em cheio. A criatura soltou da lataria e ficou para trás, sendo absorvido pelo líquido assim que atingiu o chão.
As criaturas que ainda corriam tornaram-se cautelosas. Eu tentei atirar neles, porém desviaram rapidamente das balas. Guilherme acelerou ainda mais. Os demônios ficaram um pouco mais afastados com a diferença de velocidade, mas não por muito tempo. Seis deles partiram para cima com tanta velocidade que quase não pude vê-los se movendo. Num reflexo rápido, desferi vários disparos que derrubaram a maior parte deles. Ao puxar o gatilho para ferir o último, a pistola não respondeu e nenhum projétil foi atirado. A munição havia acabado. Antes que eu pudesse voltar meu corpo para dentro para repor as balas, o demônio segurou meu braço e alcançou a janela. Olhei para ele sem deixar que meu olhos fossem aprisionados pelos seus. Um flash da cena pavorosa do corpo morto de Daniela veio em um instante à minha visão. O sentimento ruim e pesado que estava em mim tornou-se de súbito esbraseante, queimando-me por dentro. Eu usei essa energia mordaz que havia acabado de surgir para lhe desferir socos violentos em seu rosto monstruoso. Eu sentia que podia socá-lo até que meus músculos não pudessem mais se mover, e ainda sim aquele sentimento não iria ser saciado.
Um disparo forte interrompeu meus golpes na criatura. A bala passou muito próxima ao meu rosto, atingiu a testa do demônio e o impulsionou para longe. Virei-me para Guilherme, que apontava a arma para o meu lado da janela. Ele a recolheu em seguida.
- O que você está pensando? - bradei, irritada.
- Não dê entrada para eles, Amelie. Você não pode deixar o ódio tomar você.
Respirei fundo. Só então percebi o quanto aquela energia que utilizei era maligna.
- E além disso, eu nunca acertaria você.
- Nem pensei nisso. - eu simplesmente confiava inteiramente nele.
- Quer ajuda para se acalmar?
- Não é necessário. Já estamos chegando, posso me controlar.
Demorou menos de dois minutos para chegarmos a casa de Guilherme. Tenho certeza que vi carros passando por nós, mas não sabia dizer se aquelas pessoas tinham visto algo, e nem o que pensaram a respeito da cena. Ele parou o carro de qualquer jeito, rapidamente desligando o motor. Descemos do carro e corremos para a porta de entrada. Ele se certificou de que o sal ainda bloqueava a passagem, e então abriu a porta, dando passagem para mim e fechando-a logo em seguida.
Eu olhei pela janela assim que entrei na sala. Vi os demônios de longe, olhando para a casa, e em seguida indo embora.
- Eles não vão nos importunar aqui. - Guilherme disse.
Ele se aproximou de mim, com uma expressão preocupada. Tocou com os dedos meu pescoço, onde o demônio me segurou. Julgando pelos seus olhos que não conseguiam esconder a raiva, devia haver uma marca bem feia ali.
- O banheiro fica na segunda porta do corredor. Tome um banho. Eu vou arrumar o quarto para você. - ele disse, num tom onde ele não conseguia controlar as sensações ruins que estava sentindo.
Talvez ele nunca tivesse vivido uma situação assim. Talvez ele não soubesse como agir diante desse sentimento de preocupação.
Guilherme deu as costas, entrando pelo corredor. Voltou segundos depois com uma camiseta verde escura nas mãos.
- Eu não tenho roupas limpas para você. Mas talvez você ache isso confortável. - ele me entregou a camiseta.
Não tive tempo de agradecer. Ele deu as costas novamente para ir preparar o quarto para mim.
Segui até o banheiro. Ao fechar a porta, voltei meu rosto ao espelho. Uma marca levemente roxa e algumas escoriações circundavam meu pescoço. Tirei a roupa e soltei meu cabelo, dando uma última olhada no espelho antes de ligar o chuveiro. A água quente caiu sobre mim, e eu deixei ela lavar as coisas ruins.
Daniela. Por mais que eu parecesse distante, por mais que eu não ligasse com frequência. Ela era minha irmã mais velha.
Eu a amava. À minha maneira.
E agora ela estava morta por minha causa.
Dei um soco na parede de azulejos. Era luz. Só luz. Por que tinha que atrair desgraças? Por que tantas vidas tiradas, tantas vidas destruídas? Por causa de luz?
Eu simplesmente terminei o banho, me sequei com uma das toalhas dobradas e empilhadas em cima do armário e me vesti com a camiseta macia de Guilherme, cujas mangas chegavam no cotovelo e que me cobria até quase metade das coxas. Eu não me lembrava dele ser tão grande. Ou talvez eu que fosse pequena.
Sai e fui em direção ao quarto de hóspedes, onde eu havia dormido pela primeira vez. Um travesseiro branco e um cobertor fino, cinza e felpudo me aguardavam.
Olhei para trás. Guilherme estava parado na porta, com o mesmo olhar de preocupação e culpa.
- Por favor, pare. Não há nada pelo que se culpar. - falei, sentando na cama.
- Eu não deveria ter deixado você entrar lá sozinha.
- Do que você está falando? Não importa se eu estava sozinha, eu o matei.
- Você poderia ter morrido.
- Mas eu não morri!
Minha voz saiu num tom mais alto do que eu pretendia.
- Desculpe. - ele murmurou - Eu quero proteger você. Eu não quero que aqueles desgraçados com aquelas mãos imundas tentem te machucar.
- Guilherme, confie em mim, na minha capacidade. - suspirei - Eu sou capaz de matá-los, sou capaz de me defender sozinha.
Ele não quis dizer mais nada, apenas me fitou por longos segundos, e a cada instante, toda a carga daquela noite crescia em mim.
- Eu... Sinto muito por sua irmã. - disse por fim.
Ele apagou a luz e se virou para sair dali.
- Espere. - eu o impedi.
Pela primeira vez naquele dia, não pude evitar que a carga transbordasse. Lágrimas começaram a escorrer dos meus olhos.
- Fique comigo essa noite. - eu pedi.
Guilherme veio até a cama, sentou-se e me abraçou. Eu deitei e me aninhei em seus braços deixando as lágrimas escorrerem enquanto elas tinham força.
Embalada pelo seu calor e pelos batimentos do seu coração, eu então adormeci.