quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Angelus (parte 4)



Ao meu redor, árvores envoltas em luz emanavam um verde musical, que me acariciava como folhas da primavera. Não só o azul preenchia o céu, ele também me cobria com cores que não se pode ver com olhos humanos. Sozinha, eu deitara para permitir que aquele lugar resplandecente me acolhesse e me iluminasse. Eu nunca me sentira tão confortável.
Acordei com um suspiro profundo, o que fez com que Guilherme retirasse os olhos da estrada e olhasse para mim. Decepcionei-me ao perceber que ainda estávamos no carro.
- Cinco minutos foram suficientes para que você tivesse um pesadelo? - perguntou ele.
- Não, não foi um pesadelo... - murmurei, me dando conta de que depois de muitos anos, eu enfim havia tido um sonho bom.
Olhei para a estrada à frente, e vi que ele não estava me levando para um lugar que eu conhecesse.
- Onde estamos indo? - perguntei.
- À casa de um amigo. Por ora, é o lugar mais seguro.
Seguimos por mais alguns minutos até um bairro de classe média alta da cidade, e paramos em frente a uma loja de computadores. Um estreito portão fechado ao lado do estabelecimento indicava que alguém morava nos fundos. Guilherme olhou para os lados, e só disse para que saíssemos quando teve certeza de que estávamos sozinhos.
Descemos do carro e ele tocou a campainha. Sem muita demora, ouvi passos e um tilintar de chaves, que pausaram por tempo suficiente para que fôssemos identificados pelo olho mágico. O pequeno portão então se abriu.
- Guilherme? - disse um cara que aparentava ter a mesma idade que ele. - Quem é a garota? - seus olhos escuros olhavam pra mim.
- Deixe-nos entrar, Tuan. - falou Guilherme, apressado.
Ele nos deu passagem para um corredor longo e pouco iluminado, enquanto trancava novamente o portão. Segui Guilherme até uma porta entreaberta, e notei que assim como na sua casa, ali também havia sal na entrada. Adentramos em uma sala desorganizada, onde computadores desmontados foram deixados sobre a mesa de jantar e um sofá encoberto por uma colcha laranja parecia aconchegante para mim.
- Você nunca mais apareceu. - disse Tuan, entrando por último - Veio trazer mais demônios para mim de novo?
- Ela é quem eu tenho procurado todo esse tempo. - ele foi bem direto.
Tuan me olhou imediatamente. Agora em um ambiente mais claro, pude vê-lo melhor. Seu cabelo castanho-escuro e levemente desarrumado combinava com seus olhos de lua nova. Possuía um corpo sutilmente magro, uma cicatriz no braço direito e um rosto jovial, embora aparentasse ser mais velho do que eu.
- Tá brincando? - um sorriso se abriu em seu rosto. - Definitivamente, você veio trazer mais demônios pra mim.
- Agora eu não posso mais arriscar. Preciso de armas.
- Eu só estava esperando você pedir.
Ele levantou o tapete da sala e revelou um alçapão. Convidou-nos a entrar assim que abriu a portinhola, e nós descemos por uma escadinha até um arsenal que fora montado no porão. Lá, armas de fogo de todos os tipos estavam organizadas sobre um balcão que acompanhava as quatro paredes.
- E o que vai ser? - Tuan perguntou a ele.
- Impressione-me.
Ele abriu outro sorriso radiante, enquanto procurava entre as armas. Pegou uma pistola semi-automática e a entregou a Guilherme.
- Desert Eagle .50, essa aqui derruba qualquer criatura. Devo avisar que é uma arma pesada, mas isso não deve ser problema para você. E por ser pesada, ela tem um coice do "demônio".
Guilherme o olhou sério em reação à piada sem graça. Eu deixei escapar uma pequena risada.
- E as balas? - perguntou.
- Ela suporta sete. É claro, todas de prata.
- Então... prata realmente mata demônios? - questionei.
- Não. A prata é um material puro e místico, mas não os mata, ela só os manda de volta para o mundo deles. O único capaz de matar demônios é esse cara aqui. - ele apontou para Guilherme.
Fiz uma expressão de desentendida.
- O quê? Ele não te contou das ilusões?
- Ilusões? - olhei para ele, curiosa.
Então era isso que ele fazia? Esperei por uma explicação melhor, mas Guilherme simplesmente continuou a analisar a arma.
- Eu sabia que você ia gostar. - disse Tuan.
- E a munição?
Tuan indicou para que fôssemos por uma porta até um ambiente de azulejos brancos. Eu fiquei para trás. Estava desgastada demais para ouvir qualquer explicação técnica.
- Você não vem, senhorita? - perguntou para mim.
- Não, vou ficar por aqui.
Ele sorriu e desapareceu pela porta, seguindo Guilherme. Eu subi a escada e retornei à sala, aquele sofá tinha chamado por mim desde que eu entrara. Ter expulsado aquela energia do meu corpo havia me exaustado de tal maneira que até os pensamentos exigiam uma força enorme para surgir em minha mente. Eu sentei no sofá, e deixando que o cansaço me tomasse, adormeci.


[...]


- Amelie... - murmurou Guilherme, delicadamente - É dia, já podemos ir embora.
A voz dele me fez acordar. Eu estava confortavelmente deitada no sofá, e depois do sono pesado que havia me capturado, eu me sentia revigorada. Coloquei-me sentada, enquanto ele ia à outro cômodo da casa. Assim que saiu, senti Tuan se aproximar de mim por trás do sofá.
- Ele te observou dormir quase a noite inteira. - disse, com a voz baixa - Seus poderes são tão perigosos assim?
- Eu não sei... Ainda não tenho noção do que posso fazer.
- Não falo só da luz. Você já percebeu que com você ele não é tão frio?
Agora que ele falou, eu me dei conta de que desde que Guilherme falou comigo pela primeira vez, sua voz tinha se tornado cada vez menos fria. Além disso, suas atitudes prestativas não pareciam compatíveis com a pessoa que ele aparentava ser.
- Você tem um poder incrível de amolecer o coração daquele cara. E isso é uma coisa que eu nunca vi em todo esse tempo que o conheço.
Guilherme voltou com uma mochila nas mãos, interrompendo nossa conversa. Ele lançou um olhar fulminante para Tuan, que se afastou de mim.
- Vamos? - ele disse.
Eu me levantei e Tuan abriu a porta para nós. Seguimos pelo corredor comprido até o carro que havia ficado lá fora.
- Obrigado. - agradeceu friamente.
- Mande-me sinais de vida de vez em quando.
Entramos no carro. Guilherme estava visivelmente mais pensativo que o comum, mas ele não estava distante como sempre esteve, eu estranhamente podia senti-lo próximo a mim. Ele deu a partida e nós voltamos pelo mesmo caminho de onde viemos.
O sol brilhava forte no céu à nossa frente e quase nos cegava. Ao contrário da noite anterior, a estrada estava movimentada, repleta de carros que iam e vinham. Guilherme pensava tão intensamente que eu quase sentia seus pensamentos ocuparem todo o interior do carro. Decidi não falar com ele durante a viagem. Somente quando chegamos à minha casa e ele desligou o motor, aquela nuvem carregada de pensamentos se dissipou, mas ele ainda permaneceu calado.
Aquilo que Tuan havia dito não saiu da minha cabeça. Guilherme me provocava um sentimento bagunçado, duvidoso, porém incrivelmente bom. Eu estaria provocando esse mesmo sentimento nele?
- Tudo bem? - ele perguntou.
- Você... está preocupado comigo?
- Claro. Eu preciso proteger você.
- Sabe, eu não acho que preciso ser protegida.
Sua expressão, por um segundo, perdeu a segurança que esteve sempre presente em seu rosto. Ele se descuidou e se deixou oscilar, ou talvez tenha feito de propósito.
- Não é só pelo fato de eu ser a descendente, não é? - aproveitei a brecha.
Ele me atingiu com um olhar que fez minha respiração parar. Um olhar intenso, que abalou tudo o que havia em mim, e que podia fazer com que eu confiasse minha vida à ele. Se eu tinha alguma dúvida sobre o que eu sentia por ele, essa dúvida desapareceu naquele momento.
- Não.
Uma única palavra. Um pulo intenso no meu coração.
Eu permiti que ele tocasse levemente meu rosto, e lentamente sua mão percorreu até a minha nuca. Minha respiração acelerou. O calor que emanava de seu corpo era convidativo, parecia me magnetizar. Então, eu não pude resistir.
No instante em que uma força me puxou para ele e meus lábios tocaram os seus, eu pude senti-lo. Senti-lo por inteiro, em sua essência. Eu podia sentir a sua dor, os seus pensamentos confusos, as suas memórias pungentes e o seu coração delirante. Eu podia sentir sua alma. Foi como se ele se tornasse apenas uma parte minha. Não, mais do que isso, era como se ele sempre tivesse sido uma parte minha, e eu nunca tivesse vivido um único dia sem conhecê-lo.
Meu coração se debatia. Não era mais um sentimento simplesmente "bom" o que eu sentia. Era avassalador, fervoroso.
De repente, não estávamos mais dentro de seu carro. Meus olhos estavam fechados, mas eu os abri assim que senti um lugar completamente diferente à nossa volta. Sob meus pés, a neve era suave e agradavelmente morna. O céu nos banhava com penas macias, que caiam brandamente sobre nós. Um aroma cinza-azulado flutuava em minha respiração e fazia minha mente esvoaçar. Suas asas eram como as asas cinzas da lua, e balançavam sobre mim como a brisa vinda do mar. Uma visão esplendorosa, uma sensação indescritível.
Tudo sumiu quando sua boca deixou a minha, e o verde luminoso de seus olhos deu lugar à doce cor de mel novamente.
- Foi você quem fez isso? - eu disse, deslumbrada.
- Sim.
Guilherme olhou profundamente pra mim, e pela primeira vez vi um sorriso surgir em seu rosto. Permanecemos em silêncio por longos segundos, apenas contemplando-nos.
- Eu venho te ver novamente amanhã. - ele precisou quebrar o silêncio. - Coloque sal nas janelas e nas portas.
Eu assenti, e dei-lhe um último sorriso antes de relutantemente sair daquele carro.
Observei-o voltar e virar a esquina como da última vez, mas agora, ele estava levando meu coração com ele.