quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Angelus (parte 6)



Ele havia me levado a um local desconhecido, um campo extenso e verdejante, que tinha como único acesso uma trilha fechada e escondida em meio às árvores. Completamente sozinhos, tínhamos espaço suficiente para destruir uma grande horda de demônios.
-Você esta pronta?
-Sim.
Eu me concentrei e deixei a energia tomar meus braços, pronta para sair.
-Guilherme, não amenize a dor. - eu disse.
Olhou-me como se estivesse perguntando se eu tinha certeza disso.
-Estou falando serio.
Ele assentiu com a cabeça.
O céu foi se tornando vermelho escuro aos poucos. Eu olhei em volta, e não o vi mais. À minha frente, em meio as árvores, surgiram quatro ou cinco demônios, que vinham em direção a mim.
- Eles têm uma couraça e uma carne resistente, o que os tornam duros de matar. - ouvi sua voz dizer - Não tenha dó de usar seu poder.
Certo. Coloquei mais intensidade na energia que fluía em mim, e a liberei através das minhas mãos, como eu havia feito sozinha em casa. A luz surgiu em forma de esfera novamente, mas eu a contrai, deixando a luz intensa compactada no tamanho de uma bola de gude. Joguei em direção a um dos demônios, como uma bala. Ela o atingiu no peito, penetrando através de sua couraça. Com o impacto, ele caiu para trás, e logo parou de se mover, esfumaçando em cinzas no ar.
Fiz o mesmo com outros dois, dessa vez com mais rapidez e usando as duas mãos. Eles caíram e se desfizeram da mesma forma que o primeiro.
Eu então experimentei algo novo. segurei com força a luz em meu braço, e um brilho começou a escapar dele. Quando eu já não podia mais conter, movimentei meu braço na diagonal com rapidez, lançado a luz em forma de lamina. Ela atingiu e cortou na altura do ombro os demônios que restavam.
Tudo o que eu realizava com a luz era movido por um instinto que ate então eu não sabia que tinha. Eu não pensava sobre o que eu estava fazendo, eu simplesmente fazia. E aquilo deixava-me satisfeita, confiante. Como se eu tivesse encontrado a mim mesma.
Por um segundo de distração, um outro demônio surgiu do céu. Ele pousou na minha frente, bem perto de mim, e me empurrou com força para o chão, caindo por cima e me segurando contra a grama, como na praia. Usou suas garras para me cortar nos braços e no tórax, a dor que Guilherme não amenizou afligiu minha pele. Automaticamente olhei em seus olhos, e então não consegui mais me mover. Ele puxou minha vida para si, me fazendo perder todas as forças. Tentei usar minha magia, mas ela não fluiu, e eu me desesperei.
A ilusão foi interrompida, todo o cenário então mudou em um segundo. O céu voltou ao azul habitual, o demônio desapareceu e minhas forças voltaram.
Guilherme caminhou até meu lado, e me olhou de cima. Eu permanecia deitada na grama, respirando ofegante.
- Jamais olhe nos olhos deles. - ele me disse, estendendo o braço. - E saiba que eles gostam de te fazer sentir dor antes de se alimentarem.
Eu segurei sua mão e ele me puxou, ajudando a me levantar.
- Você é boa. - ele falou, sem soltar minha mão.
- Você também. - referi-me à todas as suas habilidades - Como você faz para matá-los apenas com as mãos?
- Eu os deixo vulneráveis com minhas ilusões.
- De que jeito? - perguntei sem pensar.
Percebi seus olhos mudarem, ele não me respondeu. Aquela pergunta com certeza o incomodava.
- De qualquer forma, não importa. - acabei por dizer.
Eu o puxei até debaixo de uma árvore, e o convidei a sentar sob a sombra fresca.
- Eu estou gostando de estar aqui. Nesse lugar. Com você.
Nós nos beijamos intensamente, e ele me envolveu com um dos braços logo depois, sentado na grama ao meu lado.
Guilherme não disse nada e eu não me incomodei com isso. Pelo contrário, eu apreciava o silêncio ao lado dele, pois seu silêncio me contava mais do que suas palavras.
Ficamos o resto do dia naquele lugar. A cada hora que se passava, eu parecia me apaixonar mais por ele.
E a cada dia.
E a cada semana.
Dois meses correram mais rápido do que normalmente correria. Nesse tempo, Guilherme ensinou-me a atirar e a lutar, a pedido meu, caso eu precisasse. Eu nunca havia vivido à sombra de ninguém, e eu não viveria à sombra dele agora, não viveria restringida sob sua proteção.
Embora eu acreditasse que o breve treinamento havia surtido mais efeito do que o esperado, não tive muitas oportunidades de colocar minhas novas habilidades em prática, já que não houve muitos encontros com os demônios nesse meio tempo. Eles recuaram, sem um motivo aparente. Porém, isso não fez com que abaixássemos a guarda. Pelo contrário, eu e Guilherme estávamos preocupados com o que estava por vir.
Novamente no campo verdejante escondido, sentei-me no chão, cansada, depois de matar demônios de mentira apenas com golpes corporais.
Guilherme olhou o sol, que começava a caminhar em direção ao poente.
- Eu acho melhor irmos. - falei, sem esperar que ele dissesse primeiro.
- Você está com medo?
- Eu posso enfrentar essas coisas, se elas aparecerem. Mas vamos evitar a noite, só por hoje.
Eu não sabia bem porque, mas naquele momento eu não me sentia confortável ao pensar no anoitecer.
Nós saímos pela trilha e Guilherme levou-me para casa, que não ficava muito distante daquele lugar.
- Posso vir te buscar amanhã novamente? - disse, ao estacionar na frente do meu portão.
- Claro que sim.
Ele me beijou levemente nos lábios.
- Até amanhã.
- Até.
Abri a porta do carro, mas Guilherme segurou meu braço.
- Espere. - ele olhou minha casa.
Eu procurei o que ele estava vendo, e vi a luz acesa através da cortina fechada da janela.
- Daniela tem uma cópia da chave. Ela deve ter vindo e entrado para me esperar.
- Tem certeza?
- Sim. Eu protegi a casa com sal.
Ele hesitou por alguns segundos.
- Vou esperar aqui na frente por um tempo. Se algo estiver errado, grite.
Eu assenti, mesmo achando desnecessário, e desci do carro. O portão estava trancado, a porta da sala encostada, tudo aparentemente normal. Porém, a visão de "aparentemente normal" mudou assim que entrei pela porta.
A parede da sala que ficava de frente para a entrada estava marcada com manchas de sangue que ainda pareciam frescas, e pelo chão, poças vermelhas e escuras se espalhavam. A sala revirada, cadeiras derrubadas, objetos pelo chão. Um rastro de sangue seguia até a cozinha, onde um homem de cabelos claros surgiu atrás do balcão. Ele me olhou com olhos devoradores e me direcionou um sorriso macabro.
- Você demorou, pequena maga.
Eu imediatamente olhei a beira da porta, e a fileira de sal que eu havia colocado não estava mais lá.
- Não podemos entrar com o sal bloqueando a passagem, mesmo dentro do corpo nojento de vocês. Mas não é difícil para nós manipular um humano para removê-lo.
Ele saiu de trás do balcão, arrastando pelos cabelos um corpo morto. Meu coração gelou.
Daniela.
Sua roupa estava ensanguentada e vários cortes profundos se espalhavam pelo seu corpo. O homem a jogou no chão, sem vida. Neste momento, esqueci de Guilherme do lado de fora, esqueci da voz que podia arrebentar em minha garganta com um grito, esqueci como mover as pernas para correr para fora.
- A luz do sol começou a se esconder. Já posso sair desse receptáculo imundo.
Ele começou a se contorcer, quebrando seus próprios ossos com movimentos brutos e emitindo um som horroroso. Ele inclinou-se para o chão, vomitou um líquido negro e viscoso, e em seguida caiu torto, também sem vida. Do líquido negro, uma criatura foi emergindo e rastejando, livrando-se aos poucos da poça que parecia profunda através do piso da sala. O demônio se levantou, mostrando-se diferente dos outros que eu já tinha visto. Ele era menos bestial, porém possuía largos espinhos elevando-se por baixo da pele espessa de seus braços.
O cheiro de enxofre misturava-se ao cheiro de sangue e fazia minhas pernas paralisarem. Ele se aproximou rapidamente de mim e ergueu-me pelo pescoço. Eu desviei meus olhos dos seus, para que ele não acorrentasse e puxasse minha vida. Porém, sua mão me apertava e me sufocava. Meu cérebro pesava, e minha garganta agonizava.
O instinto então despertou em mim de repente e meus olhos clarearam. Através de minhas mãos fracas que seguravam seu braço, transferi toda a energia que surgiu em mim. A luz entrou em seu corpo, e ele largou-me imediatamente. Meus pulmões, aliviados, puxaram todo o ar que podiam, e tosses dolorosas irromperam pela minha garganta. Eu olhei o demônio, que se debatia. Sua carne era torturada pela minha luz, e ele começou a desfazer-se de dentro para fora, sua couraça oca desmoronando aos poucos.
Quando me dei conta, Guilherme já estava segurando-me contra si.
- Por que você não gritou? - perguntou.
Eu não havia visto ele entrar, e não sabia o que tinha feito ele perceber que algo estava acontecendo. Eu simplesmente fechei os olhos e afundei meu rosto em seu peito, para não olhar nem mais um segundo aquela cena pavorosa à minha frente.
- Vamos sair daqui... - disse, apenas, com a voz trêmula.