quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Angelus (parte 2)


O dia pesava como uma rocha em meus ombros. Após outro sonho intenso e tenebroso, eu me fazia as mesmas perguntas que me acompanhavam pela vida inteira. E, dentre elas, uma que me deixava deveras confusa.
Porque pensar na morte dos meus pais não me trazia tristeza?
Esse pensamento deveria me proporcionar sentimentos obscuros, mas ao invés disso, me trazia uma sensação calorosa e agradável, que quase podia curar minhas cicatrizes. É claro que eu gostaria de me lembrar deles, e gostaria ainda mais que eles estivessem vivos. Mas uma parte primitiva em mim me dava consolo, acalento. E assim como tudo o que acontecia dentro de mim, isso era uma coisa que eu não era capaz de explicar.
Depois daquela noite, não tive mais contato com Guilherme e nem com nada que não fosse humano. Alguns dias se passaram, arrastando-se mais monótonos do que deveriam. Evitei ir àquela praia desde então, não por medo, mas porque não queria ocupar minha mente com coisas que pudessem tornar os meus dias ainda piores.
A campainha tocou. Era Daniela. Ela me ligara a semana inteira dizendo que passaria para me ver.
Saí para abrir o portão para ela, que me esperava impacientemente do lado de fora.
- Não faça essa cara. - eu disse, enquanto destrancava o portão e deixava que ela entrasse.
- Que cara quer que eu faça? - ela me deu um abraço, como sempre fazia.
Nós entramos, e Daniela se jogou no meu sofá.
- Quer chá? - perguntei.
- Quero explicações. Estou cansada de falar pra você não me deixar sem notícias suas.
Sentei no sofá ao lado dela.
- Eu mereço mais consideração sabia? Afinal, eu te tirei daquele orfanato quando sua idade te impedia de sair de lá tão fácil.
- Você sabe que meus dias não têm novidades.
- Sim, eu te conheço. Se eu deixasse, você ficaria meses isolada sem nem me ligar. - ela empurrou os óculos para ajustá-los ao rosto - E você ainda não me explicou onde esteve os três dias que sumiu.
- Eu já disse, precisei viajar para resolver uns problemas. - eu não podia prever a reação de Daniela se ela soubesse o que realmente aconteceu.
- Bom, tudo bem. De qualquer forma, eu aceito o chá. - ela sorriu.
Ficamos ali a manhã toda. Daniela era sozinha, mas diferente de mim, era muito ativa, o que fazia com que sempre tivesse novidades a contar.
De fato, ter me tirado do orfanato na minha adolescência me fez considerá-la uma ótima pessoa. Não uma mãe, mas uma irmã mais velha. Embora eu tivesse uma relação distante com ela, Daniela fazia questão de ligações, visitas e demonstrações de sua preocupação. Eu retribuía algumas vezes, mesmo não sendo da minha personalidade, porque sentia que precisava agradecê-la de alguma forma.
Depois de uma conversa quase interminável sobre como tinham sido os seus dias e de um almoço que me ajudara a fazer, Daniela se desculpou por não poder ficar mais e pegou sua bolsa que tinha deixado na estante.
- Ainda tenho muito o que fazer hoje. - ela colocou o cabelo loiro atrás da orelha - Não precisa sair, eu tenho a cópia da chave.
- Se você tem a cópia da chave, por que sempre toca a campainha?
Ela me respondeu com um sorriso e uma piscadela.
- Fique bem. - disse, antes de sair pela porta.
Ouvi a batida do portão e deitei confortavelmente no sofá. Passei alguns minutos olhando para o teto e ouvindo o tic tac do relógio. Minutos que pareceram horas. Olhei para a estante, o pedaço de papel ainda estava lá, ao lado das chaves do portão.
"Não", pensei. "Você não precisa disso".
Afundei minha cabeça na almofada. A casa parecia estar me apertando e sufocando contra as paredes brancas. Relutei o máximo que pude antes de pegar o celular e discar o número que ficara gravado na minha cabeça. Depois de chamar algumas vezes, uma voz fria inconfundível atendeu.
- Alô?
- Guilherme? É Amelie.
- Amelie... - disse, aparentemente surpreso por eu ter ligado - Aconteceu alguma coisa?
- Não. Eu só queria... conversar com você. - falei, ainda hesitante. Não acreditava no que estava fazendo.
- Podemos nos encontrar naquela praia, se você quiser.
Isso definitivamente era melhor do que ficar mais um segundo dentro de casa. Mesmo não tendo certeza se deveria, aceitei o convite.


[...]


As nuvens gélidas cobriam o sol e pintavam todo o céu de gris. Estar naquele lugar não era mais tão emocionante quanto eu gostaria que fosse, mesmo depois de ter sido atacada por uma criatura que até então eu não sabia que existia. Guilherme estava lá, sentado no mesmo banco de concreto onde eu o vira pela primeira vez, e eu senti um certo alívio ao vê-lo novamente. Sentei ao lado dele, sem demonstrar qualquer indício desse alívio.
- E então, o que te fez ligar? - murmurou, dispensando qualquer saudação.
- Eu queria saber mais sobre os demônios.
- Você quer se tornar uma caçadora? - disse, numa ironia quase imperceptível em sua voz estática.
- Quem sabe? - devolvi a ironia.
Ele passou a mão no cabelo para tirá-lo da frente dos olhos e manteve o olhar fixo no mar agitado.
- Bom, eles são de um mundo inferior, como você deve imaginar, e vêm à terra procurar vidas para se alimentar. Quanto mais vida conseguem, mais fortes se tornam. Existem demônios bem mais poderosos que aquele que você viu, mas esses não se dão o trabalho de vir até aqui. Eles têm pouca tolerância à luz do sol, o que significa que podem se expôr à ela, mas por um curto período de tempo. Por isso os mais fracos vêm à noite, e os que têm um pouco mais de poder se apoderam do corpo das pessoas para terem acesso livre a esse mundo.
- Então eles também possuem pessoas?
- Só as de alma fraca, ou aquelas que permitem ser dominadas pelo ódio.
- Há como exorcizá-los?
- Sim. Mas até onde eu sei, a pessoa nunca sai com vida.
Ele olhou para mim. Estava procurando algo, como se estivesse me estudando.
- Como você sabe de tudo isso? - perguntei, tentando ignorar seu olhar avaliativo.
- Uma vida inteira enfrentando essas coisas. Eu tinha que saber, ou já estaria morto.
Guilherme retornou seu olhar ao mar, e eu o observei por alguns segundos, imaginando pelo quê ele já teria passado. Um rosto que não transpassava nenhuma emoção, um jeito de ser aparentemente frio, tudo nele esboçava um passado aterrador no qual eu não me atreveria a tentar visitar.
As poucas vezes que o vi, ele estava sempre tão distante que eu não conseguia decifrar nada além daquilo que era óbvio. Era misterioso, sim. E certamente era solitário também, assim como eu. Estar com ele ali me permitia perceber melhor as coisas, e de uma forma completamente inexplicável fazia com que minhas lembranças deixassem de ser turvas e se tornassem alvas. Ainda confusas, porém alvas. Como se eu estivesse a ponto de recuperá-las.
Pensei se ele não teria mais nada a fazer durante o dia, mas algo me dizia que o seu dia estava sendo tão monótono quanto o meu. Pelo resto da tarde permanecemos ali, absorvendo o horizonte cinza silencioso. Era como se estivéssemos diante de um espelho, um espelho que refletia o nosso interior. Eu não quis dizer mais nada, só quis me afogar naquele espelho, que ao lado de uma pessoa como ele, não parecia tão soturno quanto deveria ser.