terça-feira, 18 de agosto de 2015

Angelus (parte 5)



- Diga-me logo, Amelie. Você está com alguém, não está? - a voz de Daniela no telefone transpassava nitidamente sua empolgação com a pergunta.
- Daniela... - eu bufei.
- Ora, conte-me!
- Digamos que sim.
Ela deu um grito de alegria e eu afastei o celular da orelha.
- Amelie, você sabe que eu sempre quis que isso acontecesse, não é?
- Eu sei.
Eu não tinha certeza se podia contar a ela como eu o conhecera e sobre quem eu era, ela surtaria, ou no mínimo me trancaria dentro de casa e não me deixaria mais sair.
Ouvi uma voz ao fundo.
- Quem está aí com você? - perguntei, desconfiada.
- É um colega de trabalho, está me ajudando em algumas coisas. - Daniela pareceu falar com ele, afastando o celular da boca - Amelie... vou desligar. Estou cheia de trabalho aqui.
- Ok.
- Fique bem. - falou, antes de encerrar a ligação.
Fiquei intrigada com aquilo. Daniela não levava conhecidos do trabalho para casa. Tentei tirar isso da cabeça, era uma coisa natural, mesmo para ela, não era motivo de desconfiança.
Eu aproveitei o resto do dia para resolver coisas que estavam pendentes, e a noite que se seguiu correu como o voo de uma borboleta, com sonhos que eu nunca poderia imaginar que teria.
Depois de um banho para despertar, eu deixara que tudo o que havia acontecido nos últimos dias invadisse minha mente. Olhei no espelho, meus cabelos caíam molhados até acima dos cotovelos e a franja dividida ao meio e frequentemente jogada para trás já havia passado um pouco da altura da orelha. Quem eu era? Uma pergunta feita insistentemente por tantos anos, agora com uma resposta completamente inesperada.
Amelie West. Maga da luz. Descendente de Alexiel.
Saber disso deixava-me, de certa forma, aliviada. Aliviada por finalmente ser alguém. Aliviada por me livrar da monotonia que me consumia.
Vesti-me com uma regata preta e uma calça jeans sutilmente apertada e fui à sala. Recusei ligar a TV, me jogando no sofá. Sem que qualquer pensamento de tédio surgisse, eu olhei minhas mãos. Virei-as, observei as palmas, mexi os dedos. O que será que eu podia fazer através delas?
De uma forma tão natural quanto mexer um músculo, eu procurei pela energia e a movi dentro de mim. Vinda do meu mais profundo interior, senti a energia percorrer minhas veias novamente. Movi-a pelo meu braço até minha mão, e ela brilhou intensamente entre os meus dedos. Tentei concentrá-la, fazê-la sair e flutuar, o que me exigiu uma certa força. Uma esfera luminosa formou-se sobre a palma da minha mão, e eu fiz o possível para que ela não escapasse ou se desfizesse. Olhei bem para o que eu havia feito. Era lindo
Fiz o mesmo com a outra mão, me concentrando em manter o equilíbrio entre a energia nos dois lados. Era como se eu sempre soubesse fazer aquilo, mas tivesse dificuldade depois de muitos anos sem praticar.
Juntei então as duas esferas para formar uma única, maior e mais brilhante, envolvida pelas minhas duas mãos. Parecia um pequeno sol. Só meu.
Aquilo era incrível.
Fechei as mãos, para que a luz desaparecesse. Ela se esfumaçou e se dissipou no ar.
Sorri comigo mesma. O que eu acabara de fazer me fez sentir viva como nunca antes havia me sentido. Eu estava completa.
Uma buzina então fez meu coração saltar. Puxei a cortina para olhar através da janela, e Guilherme me esperava em frente ao portão.


[...]


Sentados em uma das mesas no canto do restaurante, Guilherme e eu tínhamos acabado de almoçar. Era um lugar simples e informal, mas aconchegante. Um ambiente perfeitamente confortável para mim.
- Lidando bem com sua magia? - ele perguntou.
Sua voz não era mais fria como antes, porém permanecia firme, como se não fosse capaz de transpassar seus sentimentos.
- Eu andei praticando. - falei.
Guilherme riu de leve. Não achei que fosse vê-lo rindo tão fácil.
- Imagino que algumas coisas em sua casa acabaram quebradas.
Ele estava me chamando de desastrada?
Eu não pude evitar a risada.
- É claro que não.
Eu percebera em nós dois uma mágica mudança desde o dia em que nos vimos pela primeira vez. A floresta de espinhos que a luz havia destruído era a única coisa que prendia-me dentro de mim mesma. Eu entendia que era ela quem mantinha-me intocável até hoje, e mesmo que isso tivesse acarretado uma certa frieza em mim por um bom tempo, eu era grata por ela existir. De uma forma impossível de ser explicada, a luz purificou-me por dentro, tornando-me propícia a aceitar sentimentos bons. Todo aquele sentimento, a agitação em minha alma ao vê-lo, a vontade de estar perto dele, a sensação de conhecê-lo há muito tempo, eram coisas novas para mim. Mesmo nos tendo conhecido há pouco mais de duas semanas, parecíamos ser tão próximos que eu podia afirmar que isso tudo também acontecia de forma semelhante com ele. Guilherme ainda continuava sutilmente afastado e hesitante. Contudo, a capacidade de sorrir ao me olhar me fazia crer que ele estava aos poucos se revelando.
- Sabe... - ele começou - Eu posso dizer que sempre estive procurando por você, mas não esperava que realmente fosse eu o escolhido a te encontrar.
- E como você se sente?
- Sinto que minha vida não está perdida como eu achei que estava.
Eu olhei em seus olhos, e novamente imaginei pelo que ele já teria passado. Como teria sido sua vida até então, e como ela seria se não fosse ele a me encontrar e se não fosse eu a ser encontrada. Se precisássemos manter nossa linhagem existindo, para que talvez nossos netos ou bisnetos viessem a se cruzar algum dia.
Foi com esse tipo de pensamento que minha mãe viveu?
Que tipo de vida teriam tido os pais de Guilherme?
Preferi não ir mais adiante com essa breve reflexão. Eu sabia que, no final das contas, o destino colocava tudo em seu devido lugar.
- Conte-me sobre as ilusões, confesso que esse assunto me atrai. - mudei levemente de assunto - Você sempre soube fazê-las?
- Pode-se dizer que sim. É herança do clã. Não se sabe ao certo como começou, ou se sempre foi assim, mas temos uma alma diferente. Enquanto todas as criaturas tem uma alma completa, inteira e encapsulada ao corpo durante a vida, nós temos uma alma segmentada e podemos movê-la, desde que a consciência permaneça imóvel e firme. O tipo de segmento com que nascemos podendo mover, com o que nos identificamos naturalmente, é o que define o poder individual, que no meu caso é a ilusão. É bem mais complexo que isso, mas basicamente, eu constituo a ilusão com o pensamento e movo-a para os sentidos do demônio. Quanto mais forte e concentrado é o pensamento, mais real ela se torna.
- Isso é fascinante. - disse, impressionada. - O que mais se pode fazer?
- Dentre outras coisas, modificar lembranças, troca de energia vital, manipular sentimentos... E, com uma estrutura espiritual bem forte, pode-se até explodir demônios.
Tentei imaginar essa cena pitoresca, enquanto percebia novamente a chave pendurada em seu pescoço.
- O que isso significa? - questionei, curiosa.
- Essa chave? Uma mulher quem me deu quando eu ainda era criança.
- Quem era?
- Não sei.
Ficou claramente perceptível que ele não queria se estender no assunto.
- Bom... Eu queria te pedir um favor. - eu planejara isso no trajeto de carro até o restaurante.
- Diga.
- Eu quero ser capaz de matar um demônio. Quero poder aprender o que posso fazer diante de uma situação como aquela da estrada.
- Eu já sei o que você vai me pedir. - ele parecia sério.
- E então?
Pensou por alguns segundos, me fitando.
- Acho que isso pode funcionar. - disse por fim - Mas você deve saber que minhas ilusões são bem reais e englobam todos os seus sentidos, inclusive a dor. Posso amenizá-la ou intensificá-la, mas não posso removê-la.
- Eu não me importo.
Guilherme continuou me fitando. Ele olhava em meus olhos, e aquilo era confortavelmente doce. De repente, ele sorriu.
- O que foi? - perguntei.
Hesitou um pouco antes de falar.
 - Você é linda.
Eu nunca escutara essa frase de uma maneira tão intensa quanto aquela. Um sorriso inevitável surgiu em meu rosto.
Estava muito feliz por tê-lo conhecido.